Nêmesis Isaac Asimov O ano é 2236. A Terra e suas cem colônias espaciais estão super-povoadas, decadentes, ultrapassadas. A dois anos-luz de distância, escondida por uma nuvem de poeira, está Nêmesis, a estrela mais próxima do Sol, em torno da qual gira o planeta Megas, com o satélite natural Eritro e o artificial Rotor. Quando Nêmesis foi descoberta, os rotorianos a consideraram como a última esperança da raça humana, ponto de partida para uma nova civilização. E foi sob a liderança do comissário Janus Pitt, homem de forte personalidade, que eles viajaram secretamente para o sistema nemético com o objetivo de fundar uma sociedade mais forte, mais pura, mais organizada que aquela que haviam deixado para trás. Mas Marlene, uma mocinha rotoriana dotada de uma incomum habilidade de interpretar, pelos indícios do corpo, as mais bem guardadas emoções humanas, descobre que a promissora estrela é, na verdade, uma terrível ameaça para a Terra. Pitt está a par de todo o segredo, mas se recusa a prevenir os terráqueos; e Marlene sabe que se não agir rápido, o desastre será inevitável… Durante quase quarenta anos, Isaac Asimov vem empolgando leitores em todo o mundo com suas famosas séries da Fundação, dos Robôs e do Império. Embora Nêmesis não pertença a nenhuma série, possui a força de estilo e precisão de detalhes técnicos que caracterizam seus romances anteriores. A ênfase ao fator psicológico acrescenta, no entanto, uma dimensão inteiramente nova à obra do grande mestre da ficção científica. Isaac Asimov Nêmesis A Mark Hurst, meu estimado copidesque, que, em minha opinião, trabalha mais duro do que eu nos meus originais. Tradução de Ronaldo Sergio de Biasi Este livro não faz parte da Serie da Fundação, da Série dos Robôs ou da Série do Império. É uma obra independente. Achei melhor alertar o leitor quanto a este ponto, para evitar mal-entendidos. Naturalmente, posso um dia escrever um outro romance que ligue esta historia as demais, mas não garanto que vá fazê-lo. Outro ponto. Faz muito tempo que decidi seguir uma regra capital em todos os meus trabalhos: escrever com clareza. Abri mão de todas as pretensões de escrever de forma poética, simbólica, experimental ou em qualquer das outras variedades que poderiam (se eu fosse suficientemente bom) conquistar para mim o prêmio Pulitzer. Limito-me a escrever com clareza, estabelecendo desta forma uma relação de amizade com o leitor; quanto aos críticos profissionais… ora, eles que pensem o que quiserem. Entretanto, às vezes minhas histórias se escrevem sozinhas, e nesta, descobri, para minha surpresa, que a ação transcorre em dois planos. Uma série de eventos está ocorrendo no presente da história, enquanto outra tem lugar no passado, embora se aproximando o tempo todo do presente. Tenho certeza de que o leitor não terá dificuldade alguma para assimilar o padrão, mas, já que somos amigos, decidi mencionar o fato logo de saída. PRÓLOGO Estava ali sentado, sozinho. Do lado de fora estavam as estrelas, e uma estrela em particular, com seu pequeno sistema planetário. Podia vê-la com os olhos da mente, mais nitidamente que a veria na realidade se se desse ao trabalho de tornar a janela transparente. Uma estrela pequena, avermelhada, da cor do sangue e da destruição e com um nome apropriado. Nêmesis! Nêmesis, a deusa da vingança divina. Pensou novamente na história que ouvira na infância: uma lenda, um mito, uma fábula a respeito de um dilúvio universal que dizimara a humanidade pecadora, deixando apenas uma família para começar tudo de novo. Desta vez, não ia haver nenhum dilúvio. Apenas Nêmesis. A degeneração da humanidade tinha acontecido de novo e a vinda de Nêmesis era um castigo apropriado. Não seria um dilúvio. Nada tão simples quanto um dilúvio. Mesmo que houvesse sobreviventes… para onde iriam? Por que não sentia nenhuma tristeza? A humanidade não podia continuar daquele jeito. Estava morrendo aos poucos, em conseqüência dos próprios crimes. Se a morte lenta e sofrida fosse substituída por uma muito mais rápida, isso seria motivo de tristeza? Ali, em órbita em torno de Nêmesis, havia um planeta. Em órbita em torno do planeta, um satélite. Em órbita em torno do satélite, havia Rotor. No antigo dilúvio, os sobreviventes haviam usado uma arca. Tinha apenas uma idéia vaga do que era uma arca, mas Rotor desempenharia o mesmo papel. Levava com ele uma amostra da humanidade que estava a salvo e que construiria um mundo novo e muito melhor. Para o velho mundo, porém… só havia Nêmesis! Pensou de novo na questão. Uma estrela anã vermelha, em sua trajetória inexorável. Ela própria e seu sistema planetário não corriam nenhum perigo, O mesmo não se podia dizer da Terra. Terra, Nêmesis está chegando! Trazendo com ela a Justiça Divina! UM MARLENE Marlene tinha visto o Sistema Solar pela última vez quando tinha pouco mais de um ano de idade. Não se lembrava de nada, naturalmente. Havia lido muito a respeito, mas nada nessas leituras a fizera sentir que um dia ela havia sido parte do Sistema Solar. Em todos os seus quinze anos de vida, só se lembrava de Rotor. Sempre o considerara como um mundo muito grande. Afinal, tinha oito quilômetros de diâmetro. Desde os dez anos, de vez em quando — uma vez por mês, quando tinha tempo — dava a volta completa a Rotor. As vezes, usava os caminhos de baixa gravidade, para poder planar um pouco. Caminhando ou planando, era sempre divertido passear em Rotor, com seus edifícios, parques, fazendas e pessoas. A volta levava um dia inteiro, mas a mãe não se incomodava. Considerava Rotor totalmente seguro. — Não é como a Terra — costumava dizer, sem explicar por que a Terra não era segura. Era das pessoas que Marlene menos gostava. Dizia-se que o novo recenseamento revelaria que a população de Rotor havia aumentado para sessenta mil habitantes. Gente demais. Todos usando máscaras. Marlene detestava olhar para aquelas máscaras e saber que havia algo diferente atrás delas. Entretanto, nada podia fazer. Havia comentado a respeito, quando era mais moça, mas a mãe ficara zangada e a proibira de mencionar o assunto. Quando ficou mais velha, pôde perceber mais claramente a falsidade, mas isso deixou de incomodá-la. Aprendeu a aceitar o fato como natural e a passar a maior parte do tempo sozinha com seus pensamentos. Ultimamente, esses pensamentos se voltavam com freqüência para Eritro, o planeta em torno do qual estavam girando havia tantos anos. Não sabia por que, mas freqüentemente se dirigia à plataforma de observação e ficava olhando para o planeta, com vontade de estar em Eritro. A mãe lhe perguntava, com impaciência, a razão para esse comportamento; que havia para fazer na superfície de um planeta estéril, inabitado? Ela não sabia o que responder. Estava olhando para o planeta no momento, sozinha na plataforma de observação. O lugar era pouco freqüentado pelos rotorianos, que pareciam não compartilhar do seu interesse por Eritro. Ali estava ele: parte iluminado, parte na sombra. Recordava- se vagamente de que alguém a segurara no colo para vê-lo aparecer, de que o vira aumentar aos poucos de tamanho enquanto Rotor se aproximava cada vez mais. Seria uma memória real? Afinal, devia ter menos de quatro anos na ocasião, de modo que era difícil ter certeza. De repente, aquela memória — real ou não — foi substituída por outros pensamentos, por uma súbita compreensão de quão grande podia ser um planeta. Eritro tinha mais de doze mil quilômetros de diâmetro, em vez de apenas oito. Era um tamanho difícil de imaginar. Não parecia tão grande assim na tela. Não podia avaliar o que sentiria se um dia se visse de pé na superfície do planeta, podendo ver uma extensão de centenas ou mesmo milhares de quilômetros. Só sabia que desejava passar por essa experiência. Aurinel não estava interessado em Eritro, o que era decepcionante. Ele dizia que tinha outras coisas com que se preocupar, como preparar-se para a universidade. Tinha dezessete anos e meio. Marlene tinha acabado de fazer quinze anos. Isso não fazia muita diferença, pensou, orgulhosamente, já que as meninas amadureciam mais cedo. Pelo menos, deviam amadurecer. Olhou para o próprio corpo e pensou pela milésima vez, desanimada, que ainda parecia uma criança, baixa e atarracada. Olhou de novo para Eritro, belo e avermelhado na parte iluminada. Era suficientemente grande para ser um planeta, mas na verdade, como sabia muito bem, era um satélite. Girava em torno de Megas, e era Megas (ainda maior) que era o planeta, embora todos chamassem Eritro por esse nome. Os dois juntos, Megas e Eritro, e Rotor, também, giravam em torno da estrela Nêmesis. — Marlene! Marlene ouviu a voz atrás dela e viu logo que era Aurinel. Ultimamente, não se sentia muito à vontade com o rapaz. Voltou-se e murmurou, tentando não enrubescer: — Olá, Aurinel. O rapaz riu para ela. — Está olhando para Eritro, não está? Ela não respondeu. Claro que era o que estava fazendo. Todos sabiam como se sentia a respeito de Eritro. — Que veio fazer aqui? — (Diga que estava à minha procura, pensou.) — Sua mãe me mandou. (Droga!) — Para quê? — Disse que você estava deprimida e que sempre que se sentia triste vinha para cá. Pediu-me para vir buscá-la porque, se ficasse muito tempo aqui, ficaria ainda mais deprimida. Por que você está triste? — Não estou. E se estiver, tenho meus motivos. — Que motivos? Ora, vamos! Você não é mais nenhuma criança. Precisa aprender a se expressar. Marlene levantou as sobrancelhas. — Eu sei me expressar muito bem. O motivo é que eu gostaria de viajar. Aurinel riu. — Você viajou, Marlene. Viajou mais de dois anos-luz. Ninguém, em toda a história do Sistema Solar, viajou mais que uma pequena fração de ano-luz. Isto é, ninguém exceto nós. De modo que você não tem razão para se queixar. Você é Marlene Insigna Fisher, Viajante Galáctica. Marlene teve que se controlar para não rir. Insigna era o nome de solteira da mãe e sempre que Aurinel dizia o seu nome completo, fazia uma careta e batia continência. Havia algum tempo que não fazia aquilo. Talvez fosse porque estivesse ficando adulto e achasse que devia se portar com mais seriedade. — Não me lembro da viagem. Você sabe que não me lembro, de modo que essa viagem não conta. Estamos aqui, a mais de dois anos-luz do Sistema Solar, e nunca mais vamos voltar. — Como é que você sabe? — Ora, vamos, Aurinel. Já ouviu alguém falar em voltar? — Mesmo que a gente não volte, que importa? A Terra é um planeta superpovoado, e todo o Sistema Solar está ficando velho e superlotado. Estamos melhor aqui… senhores de tudo que exploramos. — Não é verdade. Exploramos Eritro, mas não podemos ir até lá para sermos senhores do planeta. — Claro que podemos. Temos um Domo funcionando em Eritro. Você sabe disso. — Não é para nós, mas apenas para alguns cientistas. Estou falando de nós. Não temos permissão para ir até lá. — Um dia vamos ter. — Um dia, quando eu for uma velha… ou já tiver morrido. — Não seja tão pessimista. Seja como for, saia daqui, volte para o mundo e faça sua mãe feliz. Não posso ficar mais tempo. Tenho coisas para fazer. Dolorette… Marlene sentiu um zumbido nos ouvidos e não conseguiu ou vir o resto da frase. Dolorette! Ela odiava Dolorette, que era alta e… vazia. Que adiantava? Aurinel andava atrás dela, e Marlene sabia, só de olhar para o rapaz, o que ele sentia por Dolorette. Agora recebera a missão de procurar por ela, Marlene, e achava que com isso estava perdendo tempo. Sabia exatamente como Aurinel se sentia, podia sentir que estava ansioso para voltar para aquela… para aquela Dolorette. (Por que sempre podia saber o que o rapaz estava sentindo? As vezes era tão doloroso…) De repente, Marlene teve vontade de magoá-lo, de dizer alguma coisa que o ferisse. Alguma coisa verdadeira. Seria incapaz de mentir para ele. — Nunca mais vamos voltar para o Sistema Solar — declarou, com convicção. — Eu sei por quê. — Ah, sabe? Vendo que Marlene hesitava, o rapaz acrescentou: — Mistérios? Marlene se sentiu encurralada. — Não quero contar a você. É uma coisa que eu não devia saber. Na verdade ela queria contar. No momento, queria que todos se sentissem deprimidos. — Conte para mim! Somos amigos, não somos? — Somos? Está bem, está bem, vou contar. Não vamos voltar ao Sistema Solar porque a Terra vai ser destruída. Aurinel não reagiu da forma que a jovem esperava. Em vez disso, deu uma gargalhada. Levou algum tempo para parar, enquanto Marlene olhava para ele, indignada. — Onde foi que você ouviu isso? Acho que anda vendo muitos filmes de aventura! — Claro que não! — Então por que está dizendo uma coisa dessas? — Porque eu sei. Pelo que as pessoas dizem, mas não dizem, pelo que fazem, quando não sabem que estão fazendo. E pelas coisas que o computador me diz quando faço as perguntas certas. — Que coisas ele contou para você? — Não vou dizer. — Não é possível… apenas possível… que você esteja imaginando coisas? — Não, não é possível. A Terra não será destruída imediatamente… talvez leve alguns milhares de anos… mas certamente será destruída. — Fez que sim com a cabeça, muito séria. — E nada poderá impedir que isso aconteça — explicou ela. Marlene deu as costas ao rapaz e afastou-se, furiosa porque Aurinel havia duvidado de suas palavras. Não, duvidado, não. Era mais do que isso. Ele achava que estava ficando louca. A verdade era que falara demais e não ganhara nada com isso. Estava tudo errado. Aurinel ficou olhando para ela. Tinha parado de rir e o rosto jovem, de feições regulares, mostrava uma ruga de preocupação. Eugenia Insigna tinha chegado à meia-idade durante a viagem para Nêmesis e a longa espera que se seguira. Passava os anos repetindo para si mesma: isto é definitivo; para mim e para meus filhos. A idéia sempre a deixava deprimida. Por quê? Estava a par das conseqüências inevitáveis do que haviam feito desde o momento em que Rotor deixara o Sistema Solar. Todos a bordo de Rotor (eram todos voluntários) sabiam das conseqüências. Aqueles que não tinham coragem de abandonar para sempre o Sistema Solar haviam deixado Rotor antes da partida, e entre eles estava… Eugenia não concluiu o pensamento. Ele sempre vinha, e ela fazia tudo para não terminá-lo. Agora estavam em Rotor, mas Rotor seria a sua “casa”? Era a casa de Marlene; ela não conhecia nenhum outro lugar. Mas que dizer de si própria? Eugenia só se sentiria em casa na Terra, na Lua, em Marte, nos mundos que haviam acompanhado a humanidade durante toda a sua história e pré-história. Nos mundos que haviam acompanhado a vida desde a sua criação. A idéia de que sua “casa” não era em Rotor jamais a abandonaria. Era natural, pois havia passado os primeiros vinte e oito anos de sua vida no Sistema Solar e havia feito um curso de pós-graduação na própria Terra entre os vinte e um e os vinte e três anos. Era estranho como a lembrança da Terra a deixava com saudade. Ela não havia gostado da Terra. Não havia gostado das multidões, da falta de organização, da combinação de anarquia nas coisas importantes com excesso de autoritarismo do governo em pequenas coisas. Não havia gostado das tempestades, da erosão, do excesso de oceanos. Voltara a Rotor com um sentimento de gratidão e com um novo marido a quem tentara vender seu pequeno mundo artificial… tornar seu conforto ordeiro tão agradável para ele quanto era para ela, que o conhecia desde o dia do nascimento. Ele, porém, só podia ver que aquele mundo era muito pequeno. — Você esgota em seis meses tudo que ele tem para dar — dissera ele. Ela própria não conseguira prender-lhe o interesse por muito mais que seis meses. Ora, ora… Iria dar certo. Não para ela. Eugenia Insigna estava irremediavelmente perdida entre dois mundos. Mas para as crianças. Eugenia nascera em Rotor e podia viver sem a Terra. Marlene havia nascido — ou quase havia nascido — em Rotor e podia viver sem o Sistema Solar, exceto por uma vaga sensação de que sua origem estava lá. Os filhos de Marlene não teriam nem mesmo essa sensação. Para eles, a Terra e o Sistema Solar não passariam de um mito, e Eritro seria o mundo do futuro. Pelo menos, era o que esperava. Marlene parecia sentir uma estranha atração por Eritro, embora essa atração tivesse aparecido havia menos de um ano e talvez desaparecesse de um momento para o outro. No conjunto, seria muito ingrata se encontrasse motivos para se queixar. Ninguém teria imaginado a existência de um planeta habitável girando em torno de Nêmesis. As condições que permitiam a um planeta ser habitado eram muito especiais. Era extremamente improvável que houvesse um segundo planeta habitável tão perto do Sistema Solar. Eugenia voltou a atenção para as notícias do dia, que o computador estava esperando, com a paciência infinita da sua espécie, para lhe transmitir. Entretanto, antes que tivesse tempo de consultar o computador, a recepcionista chamou, e uma voz suave saiu do pequeno alto-falante pendurado do lado esquerdo da blusa: — Aurinel Pampas quer falar com a senhora. Ele não tem hora marcada. Insigna fez uma careta antes de se lembrar de que havia pedido que o rapaz procurasse Marlene. — Mande-o entrar — disse pelo microfone. Deu uma olhada rápida para o espelho. Verificou que estava apresentável. Para si mesma, aparentava menos que os quarenta e dois anos que tinha. Esperava que os outros pensassem da mesma forma. Parecia uma tolice preocupar-se com a própria aparência por causa de um rapaz de dezessete anos, mas Eugenia Insigna tinha visto a pobre Marlene olhar para aquele rapaz e sabia o que o olhar significava. Não parecia a Insigna que Aurinel, que se orgulhava tanto da própria aparência, pudesse jamais pensar em Marlene como algo mais que uma criança divertida. Mesmo assim, se Marlene estava fadada a uma decepção, era preferível que não pensasse que a mãe havia contribuído de alguma forma para o desfecho inevitável. Ela vai me culpar de qualquer maneira, pensou Insigna com um suspiro, quando o rapaz Entrou com um sorriso que ainda não havia superado a timidez de adolescente. — Então, Aurinel? Encontrou Marlene? — Sim, senhora. Bem no lugar onde a senhora disse que estaria. Disse a ela que a senhora não gosta que fique muito tempo lá. — Como ela está se sentindo? — Se quer saber, Dra. Insigna… não sei bem se é depressão ou alguma coisa, mas ela está com idéias esquisitas na cabeça. Não sei se vai gostar que eu conte à senhora. — Também não gosto de espionar minha própria filha, mas ela tem idéias estranhas, e isso me preocupa. Por favor, conte- me o que ela disse. Aurinel fez que sim com a cabeça. — Está bem, mas não diga a ela que lhe contei. Esta é realmente estranha. Ela me disse que a Terra vai ser destruída. — Esperou que Insigna risse. Insigna não riu. Em vez disso, pareceu sobressaltada. — O quê? Por que diria isso? — Não sei, Dra. Insigna. Ela é uma menina muito inteligente, a senhora sabe, mas tem umas idéias meio esquisitas. Quem sabe estava apenas mexendo comigo? — E, pode ser que seja isso. Minha filha tem um estranho senso de humor. Escute: não quero que repita isso a mais ninguém. Não quero que pensem que Marlene ficou maluca. Está entendendo? — Claro que sim, madame. — Falo sério. Nem uma palavra. Aurinel assentiu, muito sério. — Obrigada por me contar. Era importante que eu soubesse. Vou conversar com Marlene e descobrir o que a está aborrecendo. E fique tranqüilo… ela não saberá que estivemos conversando. — Obrigado. Só mais uma coisa, madame. — Que é? — A Terra vai ser destruída? Insigna olhou para ele e deu um riso forçado. — Claro que não! Agora pode ir. Depois que o rapaz se afastou, Insigna lamentou-se por não ter conseguido negar de forma mais convincente. Janus Pitt tinha um porte imponente, o que o ajudara a chegar ao poder como Comissário de Rotor. Nos primeiros tempos da colonização havia uma tendência para escolher pessoas de estatura não maior do que a média. Achava-se que isso redundaria em uma economia de espaço e suprimentos. Mais tarde, tal precaução se revelou desnecessária e foi abandonada, mas a diferença ficou nos genes dos primeiros colonos, de modo que os rotorianos eram em média um centímetro ou dois mais baixos que os cidadãos das colônias mais recentes. Entretanto, Pitt era bem alto, cabelos grisalhos, rosto comprido, olhos azuis e um corpo que ainda estava em boa forma, embora já tivesse cinqüenta e seis anos. Quando Eugenia Insigna entrou, Pitt olhou para ela e sorriu, mas sentiu-se, como sempre, um pouco nervoso. Eugenia era sinônimo de problemas. Atrás dela sempre vinham aqueles Casos (com C maiúsculo) de difícil solução. — Obrigada por me receber, Janus, mesmo sem hora marcada. Pitt interrompeu o que estava fazendo no computador e recostou-se na cadeira, procurando parecer o mais calmo possível. — Ora, vamos… sabe que entre nós não existem formalidades. Nós nos conhecemos há muito tempo. — E passamos muita coisa juntos — acrescentou Insigna. — É verdade. Como vai sua filha? — É sobre ela que quero falar. Estamos protegidos? Pitt levantou as sobrancelhas. — Por que protegidos? Que há para proteger, e de quem? A pergunta fez Pitt perceber a estranha posição em que Rotor se encontrava. Para todos os efeitos, estava sozinho no Universo. O Sistema Solar estava a mais de dois anos-luz de distância e talvez não existisse nenhum outro mundo habitado por seres inteligentes em um raio de centenas ou mesmo bilhões de anos-luz. Os rotorianos podiam se sentir solitários, mas estavam livres de qualquer perigo de interferência externa. Pelo menos, praticamente livres, pensou Pitt. — Sabe muito bem o que há para proteger. Foi você mesmo que insistiu na necessidade de mantermos segredo. Pitt ativou o escudo protetor. — Vamos voltar de novo ao assunto? Por favor, Eugenia, já está decidido. Estava decidido quando partimos, há quatorze anos. Sei que você se lamenta de vez em quando… — Lamentar-me? Por que não? É a minha estrela — disse, levantando o braço, como se estivesse apontando para Nêmesis. — É minha responsabilidade. Pitt franziu a testa. Temos de passar por tudo isso de novo? pensou. — Estamos protegidos. Que é que está preocupando você? — Marlene. Minha filha. Não sei como, mas ela sabe. — Sabe o quê? — A respeito de Nêmesis e o Sistema Solar. — Como poderia saber? A não ser que você lhe contasse? Insigna abriu os braços, desanimada. — Claro que não contei a ela, mas não foi preciso. Tenho a impressão de que Marlene tudo ouve e tudo vê. E das coisas que ela ouve e vê, tira suas conclusões. Sempre foi assim, mas no último ano ficou pior ainda. — Muito bem. Então ela tem palpites e às vezes acerta na mosca. Diga a ela que se enganou e cuide para que não fale a respeito com ninguém. — Ela já falou com um rapaz, que veio falar comigo. Foi assim que fiquei sabendo. O nome dele é Aurinel Pampas. É amigo da família. — Ah, sim. Conheço-o de vista. Simplesmente diga a ele para não dar ouvidos às fantasias de uma criança. — Ela não é mais uma criança. Tem quinze anos. — Para ele, Marlene é uma criança, eu lhe asseguro. Já lhe disse que conheço o rapaz de vista. É do tipo que faz o possível e o impossível para parecer adulto. Quando eu tinha a idade dele, sentia-me muito superior a qualquer menina de quinze anos, especialmente se ela era… — …se ela era baixinha, gorducha e despretensiosa — completou Insigna, em tom irônico. — O fato de ser muito inteligente faz alguma diferença? — Para mim e para você? Claro que sim. Para Aurinel, certamente que não. Se for necessário, posso falar com o rapaz. Enquanto isso, converse com Marlene. Diga a ela que a idéia de que a Terra vai ser destruída é ridícula e que não deve sair por aí espalhando boatos sem fundamento. — E se for verdade? — Isso não vem ao caso. Escute, Eugenia, eu e você escondemos esta possibilidade durante anos, e é melhor continuarmos a escondê-la. Se a notícia se espalhar, será certamente exagerada, e toda a questão ficará envolvida em um clima emocional que só servirá para roubar tempo do trabalho em que estamos empenhados desde que deixamos o Sistema Solar… e em que provavelmente estarão empenhados nossos descendentes durante várias gerações. Eugenia olhou para ele com sincera surpresa. — Então não sente nada pelo Sistema Solar, pela Terra, pelo planeta que serviu de berço para a raça humana? — Sinto, sim, Eugenia. Sinto muita coisa. Não posso, porém, permitir que a emoção interfira no meu trabalho. Deixamos o Sistema Solar porque achamos que estava na hora de a humanidade se espalhar pela Galáxia. Outros certamente nos seguirão; talvez já o estejam fazendo neste exato momento. Não podemos mais pensar na humanidade em termos de um único sistema planetário. Nosso lugar é aqui. Olharam um para o outro, e Eugenia disse, em tom desanimado: — Você vai me dissuadir de novo. Você vem me dissuadindo há tantos anos… — É verdade, mas ano que vem terei de fazer isso novamente. Você é muito teimosa, Eugenia, e já estou ficando cansado. A primeira vez devia ter sido suficiente — concluiu, voltando a atenção para o computador. DOIS NÊMESIS A primeira vez em que a dissuadira tinha sido dezesseis anos antes, em 2220, o ano em que as possibilidades da Galáxia pela primeira vez se abriram para eles. Na época, Janus Pitt tinha cabelos castanhos e ainda não era Comissário de Rotor, embora todos falassem dele como um homem com um futuro brilhante pela frente. Entretanto, chefiava o Departamento de Exploração e Comércio, de modo que a Sonda Profunda estava sob a sua responsabilidade e era, até certo ponto, uma conseqüência dos seus atos Era a primeira tentativa de lançar um objeto ao espaço usando a propulsão hiperespacial Ate onde sabiam, apenas Rotor havia desenvolvido a propulsão hiperespacial, e Pitt achava que deviam manter sigilo absoluto. Foi o que disse em uma reunião do conselho. — O Sistema Solar está superpovoado. Não há lugar para ovas colônias espaciais. Mesmo o cinturão de asteróides é apenas uma solução paliativa; em pouco tempo também vai estar com sua capacidade esgotada. Além do mais, cada colônia tem um equilíbrio ecológico diferente, de modo que estamos nos afastando rapidamente uns dos outros. O medo de contaminação com doenças e parasitas de outras colônias está acabando com o comércio. “A única solução, senhores conselheiros, é deixar o Sistema Solar… sem fanfarras, sem alarde. Vamos partir em busca de um novo lar, onde possamos construir um novo mundo, com nossa sociedade, nossa maneira de viver. Isso não pode ser feito sem a propulsão hiperespacial… que nós já temos. O Sistema Solar se encontra em um processo de desintegração social. “Se formos primeiro, teremos uma boa chance de encontrar um mundo antes que outros nos sigam. Mais tarde, se alguém reivindicar o nosso novo planeta, estaremos suficientemente seguros para nos defender. A Galáxia é muito grande, e haverá outros lugares para os que deixarem o Sistema Solar depois de nós. Tinha havido objeções, é claro, e bastante acaloradas. Havia os que se opunham por medo do desconhecido. Havia os que se opunham por idealismo; queriam disseminar o conhecimento, para que outros membros da raça humana pudessem participar do movimento migratório. Pitt só conseguira convencer os companheiros porque Eugenia Insigna lhe fornecera um argumento decisivo. Tinha sido muita sorte ela procurá-lo primeiro. Era bem jovem na ocasião. Tinha apenas vinte e seis anos. Era casada, mas ainda não estava grávida. Estava nervosa, agitada, e trazia nas mãos um maço de papel de computador. Pitt não havia gostado da intromissão. Ele era o secretário do departamento e ela… bem, ela não era ninguém, embora, na realidade, faltasse muito pouco tempo para deixar de ser ninguém. Na ocasião, ele não sabia disso, é claro, e ficou irritado com a forma como ela forçou a entrada. A jovem estava visivelmente agitada, o que o deixou na defensiva. Na certa iria examinar com ele a complexidade infinita do que quer que fosse que tinha nas mãos, e com tal intensidade que o deixaria exausto. Não, era melhor deixar a tarefa a cargo de um dos assistentes. Decidiu dizer isso à moça. — Estou vendo, Dra. Insigna, que trouxe alguns dados para me mostrar. Terei todo o prazer em examiná-los, assim que tiver tempo. Por que não os deixa com a minha secretária? — Apontou para a porta, desejando ardentemente que a jovem desse meia-volta e se encaminhasse naquela direção. (Às vezes, anos mais tarde, imaginava o que teria acontecido se a moça tivesse obedecido, e tremia só de pensar.) Entretanto, o que ela disse foi: — Não, não, Sr. Secretário! Preciso falar com o senhor e mais ninguém! Falava com voz trêmula, como se não pudesse controlar a emoção. — É a maior descoberta desde… desde… — Desistiu de concluir a frase. — É a maior. Pitt olhou, desconfiado, para os papéis que a moça estava carregando. Ele não se sentia nada nervoso. Aqueles especialistas sempre achavam que algum pequeno microavanço em sua microárea de trabalho era uma descoberta revolucionária. — Está bem, doutora — disse, em tom resignado. — Pode explicar-me, em termos simples, do que se trata? — Estamos protegidos, senhor? — Por que temos de estar protegidos? — Não quero que ninguém ouça até estar bem certa… certa… tenho que verificar e verificar de novo, até não haver nenhuma dúvida. Acontece que, na verdade, não tenho nenhuma dúvida. Acho que não estou fazendo muito sentido, não é? — Também acho — disse Pitt, friamente, apertando um botão. — Estamos protegidos. Pode me contar. — Está tudo aqui. Vou mostrar ao senhor. — Não. Conte-me, primeiro. Mas seja breve. Ela respirou fundo. — Sr. Secretário, descobri a estrela mais próxima. — Estava com os olhos arregalados e a respiração ofegante. — A estrela mais próxima é Alfa Centauri. Sabemos disso há séculos. — Alfa Centauri é a estrela mais próxima conhecida. Descobri uma estrela muito mais próxima. A verdade é que o Sol tem uma companheira distante. Pode acreditar nisso? Pitt ficou pensativo. Era típico. Quando eles eram jovens, entusiásticos e inexperientes, sempre tiravam conclusões apressadas. — Tem certeza? — Tenho. Verdade. Deixe-me mostrar-lhe os dados. É a coisa importante que aconteceu na astronomia desde… — Isso, se aconteceu. Não me mostre os dados. Posso vê-los ais tarde. Conte-me. Se existe uma estrela muito mais próxima que Alfa Centauri, por que não foi descoberta antes? Por que deixaram a descoberta para a senhora, Dra. Insigna? — Ele sabia que estava sendo sarcástico. Ela não pareceu dar atenção ao seu tom de voz. Estava nervosa demais para isso. — Existe uma razão. Está atrás de uma nuvem, uma nuvem opaca, uma concentração de poeira interestelar localizada exatamente entre nós e a companheira. Se não fosse a poeira, ela seria uma estrela de oitava grandeza, fácil de ser observada. A poeira absorve a maior parte da luz, transformando-a em uma estrela de décima nona grandeza, perdida entre milhões de outras estrelas fracas. Não havia nada que chamasse a atenção para ela. Ninguém a notou. Fica no hemisfério sul da esfera celeste, de modo que a maioria dos telescópios da era pré-colonização nem podia apontar para ela. — Se é assim, como conseguiu descobri-la? — Por causa da Sonda Profunda. Naturalmente, as posições relativas do Sol e desta Estrela Vizinha estão sempre mudando. Suponho que ela e o Sol estejam girando, muito lentamente, em torno de um centro de gravidade comum, com um período de milhões de anos. Há alguns séculos, as posições podem ter sido tais que não havia nenhuma nuvem de poeira entre nós e a Estrela Vizinha, mas necessitaríamos de um telescópio para observá-la e os telescópios foram inventados há apenas seis séculos, e instalados muito mais tarde nos lugares da Terra de onde a Estrela Vizinha seria visível. Daqui a alguns séculos, poderemos vê-la de novo com toda a clareza, brilhando do outro lado da nuvem de poeira. Entretanto, teremos que esperar séculos. A Sonda Profunda fez o serviço para nós. O interesse de Pitt aumentou. — Está querendo dizer que a Sonda Profunda tirou uma fotografia da parte do céu que contém a Estrela Vizinha e que a Sonda Profunda estava suficientemente distante de nós para detectar a Estrela Vizinha sem a interferência da nuvem de poeira? — Exatamente. Tínhamos uma estrela de oitava grandeza em um lugar onde não devia haver nenhuma estrela de oitava grandeza, e o espectro era de uma anã vermelha. Ora, não se pode ver uma anã vermelha a grandes distâncias, de modo que ela tinha de estar próxima de nós. — Está bem, mas por que mais próxima do que Alfa Centauri? — Naturalmente, estudei a mesma região do céu em fotografias tiradas de Rotor e a estrela de oitava grandeza não estava lá. Entretanto, encontrei quase na mesma posição uma estrela de décima nona grandeza que não existia na fotografia tirada pela Sonda Profunda. Deduzi que era a estrela de oitava grandeza, cuja luz tinha sido atenuada por uma nuvem de poeira, e que o fato de que não estavam exatamente no mesmo lugar era conseqüência da paralaxe. — Entendo o que quer dizer. Um objeto próximo é visto em diferentes posições em relação a um fundo distante quando observado de locais diferentes. — Isso mesmo. Acontece que quase todas as estrelas estão tão distantes que mesmo que a Sonda Profunda estivesse a um ano-luz de nós, o deslocamento seria desprezível. No caso da Estrela Vizinha, este deslocamento era considerável. Examinei fotografias tiradas pela Sonda Profunda em diferentes ocasiões. Havia três fotografias tiradas durante os períodos em que a sonda se encontrava no espaço normal, que mostravam a Estrela Vizinha cada vez mais brilhante, à medida que a linha de visada se aproximava da borda da nuvem. Pela paralaxe, calculei que a Estrela Vizinha se encontra apenas a dois anos-luz, ou seja, menos da metade da distância que nos separa de Alfa Centauri! Pitt olhou para ela e, no longo silêncio que se seguiu, Insigna se sentiu cada vez mais insegura. — Secretário Pitt, quer ver os dados agora? — Não. Estou satisfeito com o que me contou. Agora que- ro que me responda a algumas perguntas. Se entendi bem, a probabilidade de que alguém se interesse por uma estrela de décima nona grandeza o suficiente para medir a sua paralaxe é desprezível. — Muito próxima de zero. — Existe outra forma de perceber que uma estrela obscura está muito próxima de nós? — Ela deve ter um grande movimento próprio… para uma estrela. Quero dizer que se a observar durante um tempo suficiente, verá que se move no céu mais ou menos em linha reta. — Nesse caso, seria notada? — Talvez, mas nem todas as estrelas que estão próximas de nós têm um grande movimento próprio. Elas se movem no espaço tridimensional, mas o movimento próprio que vemos é uma projeção bidimensional. Posso explicar… — Não, eu acredito na senhora. Essa estrela tem um grande movimento próprio? — Ainda não tenho Certeza. Consegui algumas fotografias antigas daquela parte do céu e pude medir um movimento próprio considerável, mas preciso confirmar esses dados… — Mas acha que o movimento próprio exibido por essa estrela seria suficiente para chamar a atenção dos astrônomos? — Não, não acho. — Então é possível que nós em Rotor sejamos os únicos a saber a respeito desta Estrela Vizinha, já que somos os únicos que lançaram uma Sonda Profunda. Este é o seu campo, Dra. Insigna. Concorda que somos os únicos que lançaram uma Sonda Profunda? — A Sonda Profunda não é um projeto inteiramente secreto, Sr. Secretário. Aceitamos experiências de outras colônias e discutimos partes do projeto com todo mundo, até mesmo com a Terra, que ultimamente não tem se interessado muito por astronomia. — Sim, eles deixam isso por conta das colônias, o que faz um certo sentido. Mas será que alguma outra colônia lançou secretamente uma Sonda Profunda? — É muito pouco provável, senhor. Para isso, precisariam da propulsão hiperespacial, e a nossa propulsão hiperespacial é um projeto secreto. Se eles tivessem a propulsão hiperespacial, nós saberíamos. Teriam de realizar experiências no espaço que os denunciariam. — De acordo com o Acordo de Intercâmbio Científico, todos os dados obtidos pela Sonda Profunda devem ser publicados em revistas de livre circulação. Isso quer dizer que a senhora já divulgou… — Claro que não! — interrompeu Insigna, indignada. — Teria que recolher muito mais dados antes de publicar alguma coisa. Estou falando de resultados preliminares, que estou comunicando ao senhor em confiança. — Mas a senhora não é o único astrônomo que está trabalhando com a Sonda Profunda. Presumo que tenha mostrado esses resultados aos colegas. Insigna enrubesceu e desviou os olhos. Depois disse, em tom defensivo: — Não, não fiz isso. Deparei com um dado discrepante. Investiguei-o. Interpretei-o. Eu. O crédito deve ser meu. Existe apenas uma estrela que é a mais próxima do Sol, e quero que meu nome apareça nos anais da ciência como o da pessoa que descobriu essa estrela. — Pode haver outra estrela ainda mais próxima — disse Pitt, permitindo-se o primeiro sorriso desde que começara a entrevista. — Teria sido descoberta há muito tempo. Minha estrela só não foi observada por causa de uma pequena nuvem de poeira. Não, acho que uma estrela mais próxima está fora de questão. — Então tudo se resume ao seguinte, Dra. Insigna: eu e a senhora somos os únicos que sabem da existência da Estrela vizinha. Estou certo? Ninguém mais? — Isso mesmo. Até o momento, somos os únicos. — Não só até o momento. Este fato deve ser mantido em segredo total até que eu esteja preparado para revelá-lo a uns poucos escolhidos. — E o acordo? O Acordo de Intercâmbio Científico? — Vamos ter que ignorá-lo. Toda regra tem exceções. Sua descoberta envolve a segurança das colônias. Nos casos em que a segurança das colônias está envolvida, temos todo o direito de manter segredo. Não tornamos a propulsão hiperespacial uma tecnologia de domínio público, tornamos? — Mas a existência de uma Estrela Vizinha não tem nada a ver com a segurança das colônias. — Pelo contrário, Dra. Insigna. Talvez a senhora ainda não tenha percebido, mas descobriu uma coisa que pode mudar o destino da espécie humana. Insigna ficou ali, parada, olhando para o secretário. — Sente-se. Somos conspiradores, eu e a senhora, e precisamos ser amigos. De agora em diante, quando estivermos a sós, você é Eugenia para mim e eu sou Janus para você. — Acho que não fica bem — resmungou Insigna. — Terá que ser assim, Eugenia. Não podemos conspirar em termos frios, formais. — Mas não quero conspirar com ninguém a respeito de coisa alguma! Não vejo por que manter em segredo a existência da Estrela Vizinha. — Suponho que está com medo de perder o crédito pela des coberta. Insigna hesitou por uma fração de segundo e depois disse: — Pode apostar que sim, Janus! O crédito terá que ser meu! — Esqueça por um momento que a Estrela Vizinha existe. Sabe que há muito tempo venho defendendo a idéia de que Rotor deve deixar o Sistema Solar. Qual é a sua posição? Gostaria de deixar o Sistema Solar? Insigna deu de ombros. — Não estou bem certa. Seria interessante ver um objeto astronômico de perto pela primeira vez… mas é um pouco assustador também, não é? — Sair de casa, quer dizer? — Sim. — Ora, você não estaria saindo de casa. Esta é a nossa casa. Rotor. — Abriu os braços, em um gesto abrangente. — A casa iria conosco. — Mesmo assim, Sr. Secre… Janus, Rotor não é tudo para nós. Temos uma vizinhança, as outras colônias, o planeta Terra, o próprio Sistema Solar. — É uma vizinhança superpovoada. Uma dia, muitos de nós terão que ir, queiram ou não. Na Terra, houve uma época em que algumas pessoas tiveram que atravessar cordilheiras e oceanos. Há dois séculos, muita gente deixou a Terra para fundar as colônias. Este será apenas mais um passo em uma história antiga. — Compreendo, mas houve muita gente que ficou. Essas pessoas ainda estão na Terra. Muita gente tem vivido em uma pequena região da Terra por gerações e gerações. — Você quer ser uma pessoa desse tipo. — É o que deseja meu marido Crile. Ele não concorda com as suas propostas, Janus. — Em Rotor existe liberdade de discurso e pensamento, de modo que ele pode discordar de mim à vontade. Mas há outra coisa que gostaria de lhe perguntar. Quando as pessoas falam em se mudar do Sistema Solar, para onde gostariam de ir? — Para Alfa Centauri, é claro. É a estrela mais próxima conhecida. Mesmo com a propulsão hiperespacial, não podemos viajar, na média, mais depressa que a luz, de modo que levaríamos quatro anos para chegar lá. Para chegarmos a qualquer outra estrela, levaríamos muito mais tempo, e quatro anos já é um tempo considerável. — Suponha que fosse possível viajar ainda mais depressa e muito mais longe que Alfa Centauri. Nesse caso, para onde você iria? Insigna pensou um pouco e depois respondeu: — Acho que… mesmo assim escolheria Alfa Centauri. Continuaríamos na mesma vizinhança. As estrelas à noite seriam praticamente as mesmas. Estaríamos perto de casa, se um dia decidíssemos voltar. Além do mais, Alfa Centauri A, que é a maior das três estrelas do sistema Alfa Centauri, é muito parecida com o Sol. Alfa Centauri B é menor, mas não muito. Mesmo ignorando Alfa Centauri C, uma anã vermelha, ainda temos duas estrelas pelo preço de uma, por assim dizer. Dois sistemas planetários. — Suponha que uma expedição de colonização chegasse a Alfa Centauri, gostasse das condições de habitabilidade e decidisse se estabelecer lá. Suponha também que, no Sistema Solar, todos tomassem conhecimento do fato. Quando fosse a hora de lançar uma nova expedição, para onde acha que eles iriam? — Para Alfa Centauri, é claro — respondeu Insigna, sem hesitar. — De modo que a espécie humana tende a ir para o lugar mais óbvio, e se uma expedição colonizadora tiver sucesso, outras a seguirão, até que o novo mundo esteja tão superpovoado quanto o antigo, até que haja muitos povos com muitas culturas, muitas colônias com muitas ecologias. — Então será hora de partir para outras estrelas. — Mas sempre, Eugenia, o sucesso em um lugar atrairá mais colonos. Uma estrela saudável, um bom planeta, e os colonos não vão parar de chegar. — Acho que tem razão. — Mas se formos para uma estrela que está a pouco mais de dois anos-luz de distância, apenas metade da distância até Alfa Centauri, e ninguém souber que ela existe, exceto nós, quem nos seguirá? — Ninguém, até descobrirem a Estrela Vizinha. — Isso pode levar muito tempo. Durante esse tempo, todos iriam para Alfa Centauri, ou outra das escolhas mais óbvias. Jamais notariam uma estrela anã vermelha no quintal, ou se notassem a considerariam imprópria para a vida humana… a não ser que soubessem que havia outros seres humanos interessados nela. Insigna olhou para Pitt, curiosa. — Que é que está querendo dizer? Suponha que a gente vá para a Estrela Vizinha e ninguém fique sabendo. Qual é a vantagem? — A vantagem é que o sistema será só nosso. Se houver um planeta habitável… — Não vai haver. Não girando em torno de uma anã vermelha. — De qualquer forma, podemos usar as matérias-primas que encontrarmos lá para construir várias colônias. — Quer dizer que haverá mais espaço para nós. — Exatamente. Muito mais espaço do que se todos ficarem sabendo. — Isso apenas nos dará um pouco mais de tempo, Janus. Mais dia, menos dia, vamos ocupar todo o espaço disponível na Estrela Vizinha, mesmo que estejamos sozinhos. Talvez leve quinhentos anos, em vez de duzentos. Que diferença faz? — Toda a diferença do mundo, Eugenia. Deixe as colônias se acotovelarem e acabaremos com mil culturas diferentes, trazendo com elas todos os ódios e desajustes que caracterizaram a triste história da Terra. Dê-nos tempo para explorar um mundo novo e poderemos desenvolver um sistema de colônias que seja uniforme na sua cultura e ecologia. Estaremos em uma situação bem melhor… menos caótica, menos anárquica. — Menos interessante. Menos variada. Menos viva. — Não concordo. De qualquer maneira, vamos nos diversificar. As diferentes colônias terão suas diferenças, mas haverá, pelo menos, uma base comum. Mesmo que eu esteja errado, é uma experiência que deve ser tentada. Por que não dedicar uma estrela ao desenvolvimento racional de um sistema de colônias e ver o que acontece? Podemos tomar uma estrela, uma anã vermelha renegada, na qual ninguém normalmente estaria interessado, e usá-la para ver se podemos implantar uma nova forma de sociedade, possivelmente melhor que as antigas. “Vamos ver o que é possível fazer se nossas energias não forem drenadas por inúteis diferenças culturais, se nossa biologia não for constantemente contaminada por ecologias alienígenas. Insigna se sentiu atraída pela idéia. Mesmo que não desse certo, a humanidade teria aprendido alguma coisa: que aquele tipo de sociedade não daria certo. E se desse certo? Entretanto, pensou melhor e sacudiu a cabeça. — Esqueça. É um sonho impossível. A Estrela Vizinha será descoberta por outros, por mais que tentemos manter sua existência em segredo. — Até que ponto, Eugenia, sua descoberta foi acidenta? Seja franca. Você notou a estrela por acaso. Teve a idéia de compará-la com o que podia ver em outro mapa. Não podia ter deixado de notá-la? Não poderiam outros ter deixado de notá-la nas mesmas circunstâncias? Insigna não respondeu, mas a expressão no seu rosto era suficiente para Pitt. Sua voz ficou mais macia, quase hipnótica. — E se conseguirmos uma dianteira de apenas cem anos? Se tivermos cem anos para desenvolver uma nova sociedade, seremos suficientemente fortes para nos proteger e exigir que os outros vão procurar outros sistemas. Não teremos mais necessidade de nos esconder. Insigna continuou calada. — Está convencida? — Não totalmente — disse a moça, como se estivesse saindo de um transe. — Então pense a respeito, e vou lhe pedir apenas um favor. Enquanto estiver pensando, não diga nada a ninguém a respeito da Estrela Vizinha e me entregue todos os dados que possui a respeito da estrela. Prometo não destruí-los. Vamos precisar deles para chegar à Estrela Vizinha. Está de acordo? — Estou — disse a moça, afinal, em voz baixa. Depois, levantou a voz. — Só uma coisa. Tenho o direito de batizar a estrela. Se eu lhe der um nome, ela será minha. Pitt sorriu. — Como quer chamá-la? Estrela de Insigna? Estrela de Eugenia? — Não. Não sou tão vaidosa. Quero chamá-la de Nêmesis. — Nêmesis? N-E-M-E-S-I-S? — Isso mesmo. — Por quê? — No final do século XX, os astrônomos consideraram a possibilidade de que o Sol tivesse uma Estrela Vizinha. Nenhuma estrela foi descoberta, mas os artigos que discutiam o assunto a chamavam de “Nêmesis”. Gostaria de prestar uma homenagem a esses pioneiros. — Nêmesis? Não é o nome de uma deusa grega? Uma deusa malvada? — A deusa da Vingança, da Justiça, do Castigo. — E por que os cientistas chamariam a estrela de Nêmesis? — Tinha algo a ver com a nuvem de cometas. Eles achavam que Nêmesis, em seu movimento em torno do Sol, passava pela nuvem e provocava uma chuva de cometas que produzia uma grande destruição na Terra a cada vinte e seis milhões de anos. — E é verdade? — perguntou Pitt, surpreso. — Não, não é verdade. A teoria nunca foi provada, mas mesmo assim quero que o nome seja Nêmesis. E quero que fique registrado que fui eu quem a batizou. — Está prometido, Eugenia. A descoberta foi sua e entrará como sua nos registros. Quando o resto da humanidade descobrir a existência de Nêmesis, ficará sabendo quem a descobriu. Sua estrela, a sua Nêmesis, será a primeira estrela, depois do Sol, a iluminar uma civilização humana; e a primei ra, sem exceção, a iluminar uma civilização humana que se originou em outro sistema. Pitt se despediu da moça sentindo-se confiante. Ela não iria traí-lo. Deixar que batizasse a estrela tinha sido um toque de gênio. Certamente ela teria vontade de conhecer sua própria estrela. Certamente se sentiria gratificada com a idéia de que uma civilização lógica e ordeira se desenvolveria em sua estrela, da qual talvez futuramente se irradiassem civilizações para toda a Galáxia. Então, bem no momento em que poderia ter relaxado no brilho de um futuro dourado, foi sacudido por um leve arrepio de medo que lhe causou estranheza. Por que Nêmesis? Por que a moça teria escolhido justamente o nome da Deusa da Vingança? Teve quase a fraqueza de pensar que se tratava de um sinal de mau agouro. TRÊS MÃE Estava na hora do jantar, e Insigna sentiu, mais uma vez, uma ponta de medo de sua própria filha. Aquele sentimento vinha se tornando mais freqüente nos últimos tempos, não sabia por quê. Talvez porque Marlene se tornasse cada vez mais lacônica, mais ausente, como se seus pensamentos fossem profundos demais para serem expressos em palavras. Às vezes, o medo de Insigna se misturava com culpa; culpa por não ter paciência com a menina; culpa por não aceitar a aparência física da filha. Marlene certamente não tinha a beleza convencional da mãe nem a boa aparência extremamente exótica do pai. Marlene era baixa e… atarracada. Era a única palavra capaz de descrever perfeitamente a pobre Marlene. E pobre, naturalmente. Era o adjetivo que quase sempre usava em seus pensamentos e tinha de se controlar para não dizer em voz alta. Baixa. Atarracada. Volumosa sem ser gorda. Essa era Marlene. Não tinha nada de graciosa. O cabelo era castanho-escuro, liso e comprido. O nariz era um pouco bulboso, a boca virada um pouquinho para baixo nos cantos, o queixo pequeno, a atitude passiva e introvertida. Havia os olhos da moça, naturalmente, grandes, escuros e brilhantes, com sobrancelhas espessas e pestanas tão compridas que pareciam artificiais. Entretanto, os olhos sozinhos não podiam compensar o resto, por mais fascinantes que fossem em certos momentos. Desde que Marlene tinha cinco anos, Insigna sabia que a filha seria incapaz de atrair um homem apenas com o seu físico. Isso se tornava mais evidente a cada ano que passava. Durante a pré-adolescência, Aurinel se mostrara atraído por ela, graças à sua inteligência precoce e compreensão quase luminosa. Marlene se mostrava ao mesmo tempo tímida e gratificada em sua presença, como se percebesse vagamente que havia alguma coisa de importante em um objeto chamado “homem”, mas sem saber exatamente o que era. Nos últimos anos, parecia a Insigna que Marlene havia finalmente descoberto o que era um “homem”. O fato de devorar avidamente livros e filmes avançados demais para o seu desenvolvimento físico, se não mental, sem dúvida havia ajudado, mas Aurinel tinha ficado mais velho, também, e quando os hormônios passaram a agir em seu corpo, começou a tratar a moça de forma diferente. Nessa noite, durante o jantar, Insigna perguntou: — Como foi o seu dia, querida? — Tudo bem. Aurinel andou me procurando e deve ter contado a você. Não precisava se dar a esse trabalho. Insigna suspirou. — Marlene, às vezes tenho a impressão de que você é infeliz. Não é natural que me preocupe com isso? Você passa tempo demais sozinha. — Gosto de ficar sozinha. — Não parece. Não vejo nenhum sinal de alegria em você. Muitas pessoas gostariam de ser suas amigas, e você se sentiria muito melhor se aceitasse a amizade delas. Aurinel é seu amigo. — Era. Atualmente, está ocupado com outras pessoas. Hoje isso se tornou óbvio. Deixou-me furiosa. Imagine que estava pensando em Dolorette. — Você não pode culpar Aurinel. Dolorette tem a mesma idade que ele. — Fisicamente. Mentalmente, é uma tonta. — Na idade de Aurinel, o físico é muito importante. — Ele mostra isso claramente. Está ficando um tonto, também. Quanto mais pensa em Dolorette, mais a cabeça dele fica vazia. Eu sei. — O tempo passa, Marlene, e quando ele for um pouco mais velho, vai descobrir quais são as coisas realmente importantes na vida. Você também está ficando mais velha… Marlene olhou para Insigna, intrigada. — Ora, vamos, mamãe. Você não acredita no que está dizendo. Não acredita nem um pouquinho. Insigna corou. De repente, percebeu que Marlene não estava jogando verde. Ela sabia… mas como poderia saber? Insigna havia falado da forma mais sincera possível, como se sentisse o que estava dizendo. Entretanto, Marlene percebera, sem nenhum esforço, que não estava sendo sincera. Não era a primeira vez. Insigna tinha a impressão de que Marlene era capaz de captar as inflexões, as hesitações, os maneirismos, e sempre acabava descobrindo o que não queria que descobrisse. Devia ser essa qualidade que deixava Insigna com medo da própria filha. Não era agradável ser olhada com desconfiança. Que havia dito, por exemplo, que levara Marlene a acreditar que a Terra estava condenada à destruição? Teria de voltar a esse assunto. De repente, Insigna se sentiu exausta. Se era impossível enganar Marlene, para que tentar? — Vamos acabar logo com isso, querida. O que você quer? — Estou vendo que você realmente quer saber, de modo que vou lhe contar. Eu quero ir embora. — Ir embora? Ir embora para onde? — Rotor não é tudo que existe, mamãe. — Claro que não, mas é tudo que existe em um raio de dois anos-luz. — Não, mamãe, isso não é verdade. Eritro está a menos de dois mil quilômetros de nós. — Isso não conta. Ninguém pode morar em Eritro. — Existem pessoas morando lá. — Sim mas protegidas por um Domo. Um grupo de cientistas e engenheiros executando uma pesquisa científica. O Domo é muito menor que Rotor. Se você se sente confinada aqui, como se sentirá lá? — Existe muito espaço em Eritro fora do Domo. Um dia, as pessoas vão viver em toda a superfície do planeta. — Talvez. Isso não é certo. — Tenho certeza. — Mesmo que aconteça, pode levar séculos. — Um dia, terá de começar. Por que não posso ser parte do começo? — Marlene, não seja ridícula. Você leva uma vida perfeitamente confortável aqui. Quando foi que tudo isso começou? Marlene apertou os lábios e depois disse: — Não estou bem certa. Há alguns meses, mas está piorando. Simplesmente não agüento mais viver em Rotor. Insigna olhou para a filha e franziu a testa. Pensou: “Ela acha que perdeu Aurinel, isso a magoou muito, está disposta a ir embora para puni-lo. Vai exilar-se em um planeta estéril, para que ele se sinta culpado…” Sim, essa linha de pensamento era bastante plausível. Lembrava-se de quando tinha quinze anos. Os corações são tão frágeis que basta um leve abalo para parti-los. Os adolescentes se curam depressa das paixões não correspondidas, mas nenhum deles acredita nisso. Quinze anos! É mais tarde, mais tarde que… Melhor não pensar nisso! — Que é que a atrai em Eritro, Marlene? — Não sei bem. É um planeta grande. Não é natural a gente se sentir atraída por um planeta grande… — ela hesitou antes de continuar, e depois pronunciou as palavras com esforço —…grande como a Terra? — Como a Terra! — exclamou Insigna, com indignação. — Você nunca esteve na Terra. Você não sabe nada sobre a Terra! — Isso não é verdade, mamãe. As bibliotecas estão cheias de filmes a respeito da Terra. (Estavam mesmo. Pitt achava que esses filmes deviam ser apreendidos, ou mesmo destruídos. Ele sustentava que era preciso romper todos os laços com o Sistema Solar; era errado manter um romantismo artificial em relação às coisas da Terra. Insigna havia discordado, mas de repente começou a compreender a posição de Pitt.) — Marlene, você não deve acreditar nesses filmes. Eles distorcem as coisas. Mostram o passado, quando as coisas eram melhores na Terra, e, mesmo assim, nunca foram tão boas como nesses filmes. — Mesmo assim. — Não, não “mesmo assim”. Sabe o que é a Terra atualmente? Um cortiço inabitável. E por isso que as pessoas a deixaram para fundar as colônias. Ninguém quer viajar na direção oposta. — Ainda existem bilhões de pessoas que vivem na Terra. — É isso que a torna um cortiço inabitável. Os que ainda estão lá mal podem esperar a hora de sair. E por isso que foram criadas tantas colônias e quase todas estão superlotadas. É por isso que viemos para cá, querida. — Papai era um terráqueo — disse Marlene, em voz baixa. — Ele podia deixar a Terra, mas preferiu ficar. — É verdade. Ele ficou. — Por que, mamãe? — Ora, vamos, Marlene. Já conversamos a respeito. Muitas pessoas preferiram ficar. Não queriam deixar o local onde nasceram. Quase todas as famílias de Rotor têm um parente que ficou na Terra. Quer voltar para a Terra? É isso? — Não, mamãe. Não é isso. — Mesmo que quisesse ir, está a mais de dois anos-luz de distância e não pode fazê-lo. Acho que compreende isso. — Claro que compreendo isso. Estava só tentando fazê-la entender que temos outra Terra bem debaixo do nosso nariz. É Eritro. É para lá que quero ir. Insigna não conseguiu mais se controlar. Foi quase com horror que ouviu sua própria voz dizer: — Então você quer me abandonar, como seu pai fez? Marlene teve um sobressalto, depois se recuperou. — é mesmo verdade, mamãe, que ele a abandonou? Talvez as coisas tivessem sido diferentes se você se comportasse de outra forma. — Depois, acrescentou, tranqüilamente, como se estivesse anunciando que tinha acabado de comer: — Foi você que o afastou, não foi, mamãe? QUATRO PAI Era estranho (ou talvez estúpido) que lembranças desse tipo ainda a fizessem sofrer, mesmo depois de quatorze anos. Crile tinha um metro e oitenta de altura quando, em Rotor, a altura média dos homens era pouco menos de um metro e setenta. Isso tinha sido suficiente (como no caso de Janus Pitt) para lhe dar uma impressão de força que persistira por muito tempo, mesmo depois que ela descobrira (sem admitir a si mesma) que não podia confiar em sua força. Tinha também um rosto forte; nariz e ossos da face proeminentes, um queixo largo, um olhar decidido. Tudo nele falava de masculinidade. Podia quase sentir o cheiro de sua masculinidade quando o conheceu, e sentiu-se imediatamente fascinada. Na época, Insigna estava fazendo pós-graduação em Astro- norma. Estava terminando sua temporada na Terra, ansiando por voltar para Rotor, onde pretendia começar a trabalhar na Sonda Profunda. Sonhava com as grandes descobertas que a Sonda Profunda tornaria possíveis (sem imaginar que seria um dia responsável pela maior delas). Foi então que encontrou Crile e se viu, de um momento para o outro, perdidamente apaixonada por um terráqueo… um terráqueo! Da noite para o dia, estava disposta a abandonar o projeto da Sonda Profunda e passar o resto da vida na Terra, só para estar com ele. Podia ainda se lembrar da forma como ele tinha olhado para ela, espantado, dizendo: — Ficar aqui comigo? Prefiro ir para Rotor com você. Insigna não havia imaginado que Crile fosse capaz de abandonar o seu mundo por ela. Como Crile conseguiu permissão para mudar-se para Rotor, Insigna não sabia e jamais conseguiu descobrir. Afinal, as regras de imigração eram severas. Depois que uma colônia atingia uma população adequada, a imigração era reduzida praticamente a zero. Primeiro, porque existia um número máximo de pessoas que podiam ser sustentadas confortavelmente; segundo, porque havia um esforço desesperado para manter um equilíbrio ecológico. As pessoas que chegavam da Terra (ou mesmo de outras colônias), em viagem de negócios, tinham que passar por um tedioso processo de descontaminação, por um certo grau de isolamento e eram encorajadas a partir o mais cedo possível. Mesmo assim, ali estava Crile, o terráqueo. Ele se queixara uma vez das semanas de quarentena que lhe haviam sido impostas, e ela se sentira secretamente orgulhosa da forma como ele persistira. Era evidente que a queria muito, para se submeter a todo o processo. Por outro lado, havia vezes em que parecia ausente e distraído. Insigna imaginava então o que realmente o havia levado a Rotor, apesar de todos os obstáculos. Talvez não fosse ela, mas a necessidade de deixar a Terra. Haveria ele cometido um crime? Estaria sendo perseguido por assassinos? Teria abandonado uma amante? Nunca tivera coragem de perguntar. E Crile jamais fornecera voluntariamente nenhum tipo de informação. Mesmo depois que permitiram que se mudasse para Rotor, havia a questão de quanto tempo poderia ficar. Para que se tornasse cidadão de Rotor, a Junta de Imigração teria de fornecer- lhe uma licença especial, o que não parecia provável. Todas as coisas que tornavam Crile Fisher inaceitável para os rotorianos só serviam para deixar Insigna ainda mais fascinada. Descobriu que o fato de ser terráqueo lhe conferia um encanto todo especial. Cidadão ou não, os rotorianos sempre haveriam de considerá-lo como um estrangeiro, mas Insigna estava disposta a lutar a seu lado contra um mundo hostil. Quando ele tentou encontrar algum tipo de trabalho que lhe permitisse ganhar dinheiro e ocupar um nicho na nova sociedade, foi ela que chamou a atenção para o fato de que se desposasse uma rotoriana, isso o ajudaria a sensibilizar a Junta de Imigração e a conseguir a desejada cidadania. Crile pareceu surpreso a princípio, como se a idéia não lhe houvesse ocorrido, e depois satisfeito. Insigna ficou um pouco desapontada. Seria muito mais lisonjeiro se ele se casasse por amor do que para conseguir a cidadania. Depois, pensou consigo mesma: “Ora, o que conta é o resultado…” Assim, depois de um típico noivado rotoriano, eles se casaram. A vida prosseguiu sem muitas mudanças. Crile não se revelou um amante ardente, mas não havia sido também antes do casamento. Oferecia-lhe uma afeição ausente, um ardor ocasional que a mantinha sempre à beira da felicidade. Jamais era deliberadamente cruel ou mesquinho, e havia renunciado ao seu próprio mundo por ela. Claro que isso tinha de ser contado a seu favor. Mesmo depois de se tornar cidadão, o que ocorrera um certo tempo depois do casamento, Crile não parecia totalmente satisfeito. Insigna achava que sabia a razão. Ele podia ser cidadão, mas não era um rotoriano de nascimento. estava impedido de exercer muitas das atividades mais interessantes de Rotor Ela não sabia nada a respeito dos estudos do marido, pois Crile não gostava de conversar sobre o assunto. Ele parecia uma pessoa instruída, e não havia nada de errado em ser um autodidata, mas Insigna sabia que na Terra as pessoas não davam tanta importância ao ensino superior como nas colônias. A idéia a incomodava. Não se importava de que Crile Fisher fosse um terráqueo. Não sabia, porém, se seria capaz de enfrentar o fato de ele ser um terráqueo inculto. Entretanto, não havia nenhuma prova de que ele fosse uma pessoa inculta, e Crile escutava com paciência suas histórias a respeito do trabalho no projeto da Sonda Profunda. Naturalmente, jamais procurava testar os conhecimentos do marido discutindo aspectos técnicos do projeto. Às vezes, porém, ele fazia perguntas ou comentários que se referiam à parte técnica, e ela ficava muito satisfeita, porque sempre conseguia convencer-se de que eram perguntas e comentários inteligentes. Fisher trabalhava em uma das fazendas. Era um emprego decente, até mesmo essencial, mas não estava entre os mais glamourosos Ele jamais se queixava (isso Insigna tinha que reconhecer), mas também raramente falava a respeito do trabalho ou mostrava alguma satisfação com ele. E havia sempre aquele ar de descontentamento. Com o passar do tempo, Insigna aprendeu a evitar tentativas do tipo “Que aconteceu hoje no trabalho, Crile?” Nas poucas vezes em que perguntou, a resposta foi um seco “Nada de novo”. E isso era tudo, exceto por um breve olhar de irritação. Mais tarde, Insigna começou a ficar receosa de falar do próprio trabalho, com medo de que o marido comparasse desfavoravelmente o próprio emprego com o dela. Devia admitir que nesse caso seus temores não tinham nenhum fundamento, mas eram apenas um reflexo da própria insegurança. Fisher não mostrava nenhum sinal de impaciência nas poucas vezes em que Insigna comentava alguma coisa do seu trabalho. Às vezes chegava a perguntar, com um interesse discreto, a respeito da propulsão hiperespacial, mas Insigna não sabia nada a respeito. Crile se interessava pela política rotoriana e mostrava uma impaciência de terráqueo com a pequenez dos seus objetivos. Insigna se esforçava para não demonstrar que estava ofendida. O silêncio entre os dois aumentou Passou a ser rompido apenas por discussões inócuas a respeito dos filmes a que haviam assistido, às festas de que haviam participado, aos pequenos fatos da vida. Isso não os tornou propriamente infelizes. O bolo se transformara rapidamente em pão insosso, mas havia coisas piores do que pão insosso. Havia até mesmo uma pequena vantagem. Trabalhar em regime de segurança máxima significava não falar com ninguém a respeito do próprio trabalho, mas como e possível ocultar coisas do próprio marido ou esposa Insigna ainda não se vira diante deste tipo de dilema, porque seu trabalho não tinha nada de secreto. Quando porém sua descoberta da Estrela Vizinha foi considerada segredo de Estado, a situação mudou inteiramente. Só havia uma coisa a fazer: contar ao marido a grande descoberta, que colocaria o seu nome nos livros de astronomia até o final dos tempos. Poderia mesmo ter-lhe contado antes de contar a Pitt. Entraria em casa, aos gritos: “Adivinhe o que eu descobri! Você não vai acreditar…” Entretanto, as coisas não se passaram dessa forma. Não ocorreu a Insigna que Fisher pudesse estar interessado. Por isso, nada comentou a respeito de Nêmesis. O assunto jamais existiu entre eles, até o dia fatídico em que seu casamento chegou ao fim. Quando foi que Insigna realmente passou para o lado de Pitt? A princípio, ficara horrorizada com a idéia de manter a existência da Estrela Vizinha em segredo, profundamente preocupada com a possibilidade de mudar-se do Sistema Solar para um outro sistema a respeito do qual nada era conhecido, exceto a localização. Parecia-lhe eticamente reprovável e indecentemente vergonhoso implantar furtivamente uma nova civilização, uma civilização que excluía o resto da humanidade. Havia concordado em manter segredo, mas pretendia discutir em particular com Pitt e convencê-lo do seu ponto de vista. Ensaiara seus argumentos até considerá-los irrefutáveis, mas nunca chegara a expô-los. Sempre, sempre, era ele quem tomava a iniciativa. — Não se esqueça, Eugenia, de que você descobriu a estrela companheira mais ou menos por acidente, e pode ser que o mesmo aconteça com um dos seus colegas — disse Pitt um dia para ela. — Não é provável… — começou ela. — Não, Eugenia, não podemos nos fiar nas probabilidades. Precisamos ter certeza. Você vai garantir que ninguém olhe naquela direção, que ninguém examine as listagens de computador que poderiam revelar a localização de Nêmesis. — Como eu posso fazer isso? — Muito fácil. Tive uma conversa com o Comissário e, a partir de hoje, você está no comando do projeto da Sonda Profunda. — Mas quem comanda o projeto é o astrônomo-chefe… — Isso mesmo. Isso quer dizer mais responsabilidade, Um salário maior, um cargo mais importante. Alguma objeção? — Nenhuma — disse Insigna, com o coração aos pulos. — Tenho certeza de que está preparada para ocupar o cargo de Astrônoma-Chefe, mas o seu objetivo principal será desenvolver trabalhos da mais alta qualidade, contanto que nada tenham a ver com Nêmesis. — Janus, não poderemos manter o segredo indefinidamente. — Não será necessário. Depois que deixarmos o Sistema Solar, todos poderão saber para onde estaremos nos dirigindo. Até então, quanto menos pessoas souberem, melhor. A promoção, reconheceu Insigna envergonhada, fez com que guardasse para si mesma suas objeções. — E o seu marido? — indagou Pitt a ela em outra ocasião. — Que é que tem o meu marido? — perguntou Insigna, imediatamente na defensiva. — Ele é um terráqueo, não é? Insigna comprimiu os lábios. — Ele nasceu na Terra, mas é um cidadão rotoriano. — Compreendo. Imagino que não lhe contou nada a respeito de Nêmesis. — Absolutamente nada. — Seu marido nunca lhe disse por que deixou a Terra e lutou tanto para se tornar um cidadão de Rotor? — Não, ele nunca me disse. E eu nunca perguntei. — Mas você nunca teve curiosidade de saber? Insigna hesitou por um momento e depois falou a verdade. — Sim, às vezes. Pitt sorriu. — Talvez fosse melhor eu lhe contar — disse Pitt. Foi o que fez, aos poucos. Nunca de forma agressiva. Um pouquinho em cada conversa. Serviu para tirá-la do seu casulo intelectual. Por viver em Rotor, estava acostumada a pensar em todas as coisas do ponto de vista rotoriano. Graças a Pitt, porém, ao que ele lhe contou, aos filmes que recomendou que visse, Insigna teve consciência da Terra e dos seus bilhões de habitantes, da fome e violência endêmicas que assolavam o planeta, de suas drogas, de sua alienação. Começou a compreendê-la como um poço de miséria e sofrimento, algo para ser evitado a todo custo. Não estava mais admirada por Crile Fisher querer deixar a Terra; difícil era entender por que tão poucos terráqueos haviam seguido o seu exemplo. Entretanto, as colônias não estavam em uma situação muito melhor. Insigna se deu conta de que estavam fechados em si mesmos, de que as pessoas eram impedidas de se deslocarem livremente de uma colônia para outra. Ninguém queria a flora e a fauna microscópica das outras colônias. O comércio se tornara escasso e era conduzido cada vez mais por naves automáticas, com cargas esterilizadas. As colônias brigavam entre si e se detestavam. As colônias em torno de Marte eram as piores. Apenas na zona dos asteróides era que as colônias estavam se multiplicando livremente, e mesmo essas colônias estavam começando a desconfiar das colônias mais próximas da Terra. Insigna começou a concordar com Pitt, a encarar até mesmo com entusiasmo a possibilidade de escapar da miséria intolerável e começar um sistema de mundos de onde as sementes do sofrimento tivessem sido erradicadas. Um novo começo, uma nova oportunidade. Foi então que descobriu que havia um bebê a caminho e seu entusiasmo se dissipou. Uma coisa era arriscar a própria vida e a de Crile na longa jornada; outra coisa era arriscar a vida de uma criança inocente… Pitt não se deixou perturbar. Deu-lhe os parabéns. — A criança nascerá aqui, e você terá algum tempo para se acostumar com a nova situação. Os preparativos para a viagem levarão um ano e meio, no mínimo. Quando chegar a hora, você estará ansiosa para partir. A criança não terá nenhuma memória da miséria de um planeta em ruínas e de uma humanidade irremediavelmente dividida. Conhecerá apenas um mundo novo, com cidadãos equilibrados e responsáveis. Criança feliz. Criança afortunada. Meus filhos já estão marcados para sempre. Insigna novamente se deixou convencer. Quando Marlene nasceu, já havia começado a temer os atrasos, a recear que, antes de partirem a filha fosse contaminada pelo fracasso colossal que era o Sistema Solar. Àquela altura, estava totalmente do lado de Pitt. Para alívio de Insigna, o nascimento da filha pareceu deixar Fisher fascinado. Não havia imaginado que ele se revelasse um bom pai. Entretanto, ele procurava estar perto da filha sempre que podia e ajudou a criá-la com toda a dedicação. Na verdade parecia mais feliz do que antes. Quando Marlene estava para fazer um ano, começaram os boatos, em todo o Sistema Solar, de que Rotor estava se preparando para partir. Isso deu origem a uma grave crise, mas Pitt, que estava cotado para ser o próximo Comissário, não se deixou abalar. — Que é que eles podem fazer? Não há forma de nos impedirem, e todas essas acusações de deslealdade, juntamente com suas próprias demonstrações de regionalismo, só servirão para retardar suas investigações da propulsão hiperespacial, o que é conveniente para nós. — Mas como foi que a notícia transpirou, Janus? — perguntou Insigna. — Eu mesmo me encarreguei disso — riu ele. — A esta altura, não faz mal que todos saibam que estamos de partida, contanto que não conheçam nosso destino. Afinal, seria difícil manter a nossa jornada em segredo por muito mais tempo. Temos de consultar a população, você sabe, e assim que os rotarianos souberem da viagem, todos ficarão sabendo. — Consultar a população? — Claro. Pense bem. Não podemos carregar conosco uma população amedrontada, ou que esteja morrendo de saudade do antigo Sol. Não, queremos pessoas que estejam ansiosas para mudar de sistema. Pitt estava certo. A campanha pela aprovação da mudança começou logo em seguida, e o fato de que a verdade já havia transpirado serviu para atenuar a reação fora de Rotor… e dentro, também. Alguns rotorianos ficaram entusiasmados com o projeto. Outros ficaram com medo. Fisher não gostou da idéia. — Isto é loucura — disse ele um dia para Insigna. — É inevitável — replicou Insigna, com neutralidade estudada. — Por quê? Não há razão para começarmos a vagar pelas estrelas. Para onde iríamos? Não há nada lá. — Existem bilhões de estrelas na Galáxia. — Quantos planetas? Não conhecemos nenhum outro planeta habitável. Na verdade, conhecemos muito poucos planetas, mesmo inabitáveis. O Sistema Solar é o único lar que conhecemos. — A exploração está no sangue da humanidade. Era uma das frases de Pitt. — Isso uma bobagem romântica. Acha que essas pessoas vão mesmo concordar em se separar da humanidade e desaparecer no espaço? — Pelo que sei, Fisher, a maioria dos rotorianos é a favor. — Isso não passa de propaganda do Conselho. Acha que o povo vai votar para deixar a Terra? Deixar o Sol? Jamais. Antes voltar para a Terra. Insigna sentiu um aperto no coração. — Oh, não! Quer voltar a enfrentar os tufões? A chuva? A neve? — Fisher levantou as sobrancelhas. — Não é tão mau assim. A Terra tem tempestades, mas elas podem ser previstas. Na verdade, são interessantes… quando não causam danos. O clima da Terra é fascinante. Um pouco de frio, um pouco de calor, um pouco de chuva. Isso traz variedade. Faz a gente se sentir vivo. E pense na variedade de pratos. — Pratos? Como pode dizer uma coisa dessas? A maioria dos habitantes da Terra está passando fome. Estamos sempre enviando donativos de comida para lá. — Algumas pessoas passam fome. Não são todas. — Não poderíamos submeter Marlene a essas condições. — Por que não? Bilhões de crianças vivem assim… — Pois minha filha não será uma delas! — exclamou Insigna, furiosa. Todas as suas esperanças agora estavam em Marlene. Tinha dez meses de idade, tinha dois dentinhos na gengiva superior, dois na inferior, conseguia ficar de pé apoiando-se nas grades do cercado e examinava o mundo com olhos inteligentes e curiosos. Fisher continuava apaixonado pela filha, embora ela não fosse bonita. Na verdade, parecia mais apaixonado que nunca. Quando não a segurava no colo, ficava olhando para ela e elogiando a beleza dos seus olhos. Parecia que isso o compensava pela inexpressividade de todos os outros traços fisionômicos. Certamente, Fisher não voltaria para a Terra, se isso significasse jamais voltar a ver Marlene. Insigna, por alguma razão, não se sentia segura de que o marido a escolheria, a mulher que amava mulher com quem havia se casado, se a opção fosse entre ela e a Terra. No caso de Marlene, porém, não havia dúvida possível. Ou haveria? No dia seguinte ao do plebiscito, Eugenia Insigna encontrou Fisher branco de raiva. — Só pode ter havido fraude! — exclamou ele, com um tom indignado. — Psiu! Você vai acordar a nenem! Fisher fez cara de quem pede desculpas. Insigna relaxou um pouco e disse, em voz baixa: — Não há dúvida de que a maioria prefere ir. — Você votou para ir? Ela hesitou. Não adiantava mentir para tentar acalmá-lo. O marido sabia exatamente qual era a sua opinião. — Votei, sim. — Por ordem de Pitt, suponho. Aquilo a apanhou de surpresa. — Não! Sou capaz de decidir por mim mesma. — Mas você e ele… — Não completou a frase. Insigna sentiu o sangue subir-lhe à cabeça. — Que é que você está insinuando? Será que ele iria acusá-la de infidelidade? — Aquele… aquele político! Quer ser Comissário a qualquer preço. Todo mundo sabe disso. E você está planejando subir com ele. A lealdade política tem seus dividendos, não tem? — Não estou atrás de nenhum outro cargo no governo. Sou uma astrônoma, e não uma política. — Você foi promovida, não foi? Passou a frente de pessoas muito mais velhas, muito mais experientes. — Por merecimento, espero. — (Como poderia defender- se sem revelar a verdade?) — Sei que é o que espera Mas a decisão foi de Pitt Insigna respirou fundo. — Aonde quer chegar? — Escute! — disse Fisher, sem levantar a voz, como não levantara desde que Insigna observara que a criança estava dormindo. — Não posso acreditar que uma colônia inteira esteja disposta a correr o risco de uma viagem utilizando a propulsão hiperespacial. Como você sabe que isso vai acontecer? Como sabe que vai funcionar? Como sabe que não vamos todos morrer? — A Sonda Profunda funcionou muito bem. — Havia seres vivos a bordo da Sonda Profunda? Se não, como sabe que a propulsão hiperespacial não fará mal aos seres vivos? Que é que você sabe a respeito da propulsão hiperespacial? — Absolutamente nada. — Como possível? Você está trabalhando naquele laboratório. Seu emprego não é em uma fazenda, como o meu. (Ele está com ciúme, pensou Insigna.) — Quando você fala em laboratório, parece pensar que trabalhamos todos empilhados no mesmo aposento. Já lhe disse. Sou astrônoma e não sei nada a respeito da propulsão hiperespacial. — Está dizendo que Pitt nunca lhe contou nada a respeito? — A respeito da propulsão hiperespacial? Ele próprio não entende do assunto. — Está querendo dizer que ninguém em Rotor entende de propulsão hiperespacial? — Claro que não estou querendo dizer isso. Os especialistas entendem. Seja razoável, Crile. Os que precisam entender, assim o fazem. Os outros, não. — Nesse caso, a propulsão hiperespacial é um segredo, a não ser para uns poucos especialistas. — Exatamente. — Então você não tem maneira de saber se a propulsão hiperespacial é realmente segura. Só os especialistas são capazes disso. E como é que eles sabem? — Fizeram experiências, suponho. — Você supõe. — É uma suposição razoável. Eles nos asseguraram que é segura. — E são incapazes de mentir? — Eles vão viajar, também. Além disso, tenho certeza de que fizeram experiências. Crile olhou para ela com os olhos apertados. — Agora você tem certeza. A Sonda Profunda estava sob a sua responsabilidade. Havia seres vivos a bordo? — Não participei do lançamento. Limitei-me a analisar os dados astronômicos fornecidos pela sonda. — Você não respondeu à minha pergunta. Insigna perdeu a paciência. — Escute, não estou gostando deste interrogatório, e o bebê está começando a se mexer. Chegou a sua vez de responder a algumas perguntas. Que é que você pretende fazer? Vai conosco? — Não preciso. De acordo com o governo, ninguém será forçado a ir. — Sei disso, mas qual é a sua posição? Certamente não vai querer ficar longe da família. — Tentou sorrir, mas não conseguiu. — Eu também não quero deixar o Sistema Solar. — declarou Fisher, sem pressa, com ar um tanto sombrio. — Prefere me deixar? Deixar Marlene? — Por que eu teria de deixar Marlene? Mesmo que queira arriscar a vida neste plano louco, que direito tem de arriscar a vida da criança? — Se eu for, Marlene vai — disse Insigna, com firmeza. — Enfie isso na cabeça, Crile. Para onde a levaria? Para uma colônia inacabada nos asteróides? — Claro que não. Sou da Terra e posso voltar para lá na hora que quiser. — Voltar para um planeta moribundo? Genial. — Ainda vai viver muito tempo, isso eu lhe asseguro. — Então, por que veio para cá? — Achei que seria um modo de me aperfeiçoar. Não sabia que vir para Rotor significaria comprar uma passagem só de ida para parte alguma. — Parte alguma! — explodiu Insigna, incapaz de resistir por mais tempo. — Se soubesse para onde vamos, não estaria tão ansioso para ficar! — Por quê? Para onde vai Rotor? — Para as estrelas. — Para o nada. Ficaram olhando um para o outro. Marlene acordou e balbuciou alguma coisa. Fisher olhou para o bebê e disse, em tom mais brando: — Eugenia, não precisamos nos separar. Claro que não quero deixar Marlene. Nem você. Venha comigo. — Para a Terra? — Isso mesmo. Por que não? Ainda tenho amigos lá. Como minha mulher, não terá nenhum problema. A Terra não se preocupa muito com o equilíbrio ecológico. Estaremos em um grande planeta, em vez de uma pequena bolha no espaço. — Estaremos em uma grande bolha. Grande e malcheirosa. Não, não. Nada feito. — Deixe-me levar Marlene, então. Se acha que vale a pena correr o risco da viagem porque é uma astrônoma e quer estudar o Universo, o problema é seu, mas o bebê deve ficar aqui, no Sistema Solar, onde estará seguro. — Seguro na Terra? Não seja ridículo. Foi para isso que começou essa conversa? Para tomar minha filha? — Nossa filha. — Minha filha. Você pode ir embora. Eu quero que você vá embora, mas não toque na minha filha. Você me disse que eu conheço Pitt e é verdade, eu o conheço. Isso quer dizer que posso convencê-lo a mandar você para os asteróides, com ou sem a sua concordância. Chegando lá, talvez consiga uma carona para sua maldita Terra. Agora saia da minha casa e arranje um lugar para dormir até o dia da viagem. Quando tiver o endereço, avise para mim, e eu mandarei suas coisas. E não pense que pode voltar. Este lugar estará sendo vigiado — revelou ela. No momento em que Insigna disse essas palavras, com amargura no coração, estava sendo sincera. Podia ter suplicado, podia ter argumentado, podia ter contemporizado. Mas não. Simplesmente mandou-o embora. E Fisher foi embora. E ela mandou as coisas dele para o novo endereço. E ele se recusou a viajar com Rotor. E foi mandado para os asteróides. E Insigna supunha que ele havia voltado para a Terra. Ele havia desaparecido para sempre de sua vida e da de Marlene. Insigna o mandara embora, e ele tinha desaparecido para sempre. CINCO PRESENTE Insigna ficou ali sentada, surpresa consigo mesma. Nunca havia contado a história para ninguém, embora vivesse com ela todos os dias durante quatorze anos. Nunca havia sonhado em contá-la para alguém. Sempre tivera a intenção de levá-la com ela para o túmulo. Não que a considerasse vergonhosa… era simplesmente a sua história, não interessava a mais ninguém. Mas havia contado a história, com todos os detalhes, sem esconder nada, a sua filha adolescente, a alguém que, até aquele momento, havia considerado uma criança, uma criança particularmente infeliz. Essa criança estava agora olhando para ela, solenemente, com aqueles grandes olhos escuros, sem piscar. Parecia mais adulta que há momentos. Finalmente, disse: — Então você o mandou mesmo embora, não mandou? — De certa forma, sim. Mas eu estava furiosa. Ele queria você. Para a Terra. — Fez uma pausa, depois perguntou timidamente: — Você compreende? — Você me queria tanto assim? — Claro! — exclamou Insigna. Depois, observada por aqueles olhos grandes, parou para pensar o impensável. Será que realmente queria Marlene? Entretanto, limitou-se a repetir, com toda a calma: — Claro. Claro que sim. Marlene sacudiu a cabeça e por um momento, seu rosto assumiu uma expressão de tristeza. — Acho que eu não era um bebê muito bonito. Talvez ele me quisesse. Você ficou com ciúme porque ele me queria mais do que queria você? Ficou comigo só porque ele me queria? — Que coisa horrível você está dizendo! Entendeu tudo errado — protestou Insigna, sem saber se acreditava ou não nas próprias palavras. Não se sentia à vontade discutindo o assunto com Marlene. Cada vez mais Marlene estava desenvolvendo uma estranha capacidade de adivinhar seus pensamentos. Insigna já havia notado aquilo antes, mas atribuíra o fato às especulações fortuitas de uma criança infeliz. Entretanto, estava acontecendo com freqüência cada vez maior, e Marlene agora estava sendo deliberadamente agressiva. — Marlene, o que a fez pensar que mandei seu pai embora? Nunca havia contado isso para você… — Não sei como fico sabendo das coisas, mamãe. Às vezes você fala do papai comigo, ou com outra pessoa, e dá a impressão de que se arrepende de alguma coisa… — Verdade? Não tinha consciência disso — Pouco a pouco, à medida que recebo essas impressões, elas se tornam mais claras. E a forma como você fala, a expressão do seu rosto… Insigna olhou para a filha por um momento e depois perguntou, bruscamente: — Que é que estou pensando agora? Marlene teve um sobressalto e depois começou a rir. — Isso é fácil. Você está pensando que sou capaz de saber o que esta pensando, mas está enganada. Não possuo o dom da telepatia. Posso apenas adivinhar o que as pessoas estão pensando interpretando suas palavras, expressões e movimentos. As pessoas simplesmente não podem esconder as coisas de mim. Não depois que as observo por algum tempo. — Por quê? Quero dizer, por que acha necessário observá-las? — Porque quando era pequena, todos mentiam para mim. Diziam que eu era bonita. Ou diziam isso para você quando eu estava escutando. Mas no seu rosto estava estampada a frase “Acho exatamente o contrário”. E não tinham consciência disso. A princípio, eu não podia acreditar que não soubessem. Depois, disse para mim mesma: “Acho que é mais confortável para eles fazerem de conta que estão dizendo a verdade.” Marlene fez uma pausa e depois perguntou à mãe: — Por que não contou ao papai para onde estávamos indo? — Não podia. O segredo não era só meu. — Se você contasse, talvez ele tivesse vindo conosco. Insigna sacudiu vigorosamente a cabeça. — Não, ele não viria. Estava decidido a voltar para a Terra. — Mas se você lhe contasse, mamãe, o Comissário Pitt não o deixaria ir, não é mesmo? Papai saberia demais. — Pitt ainda não era Comissário — protestou Insigna, distraidamente. Depois, com vigor redobrado: — Não queria que ele viesse à força. Você queria? — Não sei. Não posso saber como teria sido se ele viesse conosco. — Eu posso. — Insigna se sentiu como se estivesse passando por tudo de novo. Seu pensamento voltou para a última conversa com o marido, para seu último grito, dizendo a Fisher para ir embora. Não, não tinha se enganado. Não queria o marido como um prisioneiro, como um membro forçado de Rotor. Não gostava dele tanto assim. Nem o odiava tanto assim. Mudou rapidamente de assunto, antes que a expressão a traísse. — Você deixou Aurinel preocupado esta tarde. Por que lhe disse que a Terra será destruída? Ele veio conversar comigo a respeito e parecia muito nervoso. — Bastava dizer a ele que não passo de uma criança e que as crianças não devem ser levadas a sério. Ele teria acreditado imediatamente em você. Insigna ignorou o comentário. Talvez fosse uma boa idéia não dizer nada para evitar a verdade. — Você acha mesmo que a Terra vai ser destruída? — Acho, sim. Às vezes você fala a respeito da Terra. E diz: “Pobre Terra!” É sempre o que você diz: “Pobre Terra!” Insigna enrubesceu. Teria falado realmente da Terra nesses termos? — E por que não? A Terra está superpovoada, empobrecida, cheia de ódio, fome e miséria. Tenho pena do planeta. Pobre Terra, filha. — Não, mamãe. Não é desse jeito que você fala. Quando você fala… — Marlene levantou a mão, como se fosse agarrar alguma coisa, mas desistiu, como se aquilo estivesse fora do seu alcance. — Sim, Marlene? — Não consigo colocar em palavras o que quero dizer. — Continue tentando. Preciso saber. — Da forma como você fala, é como se se sentisse culpada… como se fosse você a responsável. — Por quê? Que é que você acha que eu fiz? — Ouvi você falar da Terra uma vez, quando estava na sala de observação. Estava olhando para Nêmesis, de modo que me pareceu que Nêmesis tinha algo a ver com o assunto. Por isso, perguntei ao computador o que significava o nome Nêmesis, e fiquei sabendo. É uma coisa que destrói sem piedade, uma coisa que castiga sem perdão. — Não foi essa a razão para o nome! — protestou Insigna. — Foi você que o escolheu — disse Marlene, em tom acusador. Naturalmente, isso não era mais segredo. Depois de deixarem o Sistema Solar para trás. Insigna havia assumido a responsabilidade pela descoberta e pela escolha do nome. — Justamente porque o batizei é que sei que não foi essa a razão para o nome. — Então por que se sente culpada, mamãe? (Silencio… para não ter que contar a verdade.) — Como você acha que a Terra vai ser destruída? — indagou Insigna, afinal. — Não sei, mas acho que você sabe, mamãe. — Isso está mais parecendo um jogo de perguntas e respostas, Marlene E melhor pararmos por aqui. O que eu quero, porém, é ter certeza de que você compreende que não deve falar a respeito disso com ninguém. Nem sobre o seu pai, nem sobre essa bobagem de que a Terra vai ser destruída. — Se não quer que eu fale, não vou falar, mas não acho que essa história da destruição da Terra seja bobagem. — Estou dizendo que é. Marlene fez que sim com a cabeça. — Acho que vou ver um pouco de televisão — disse, com aparente indiferença. — Depois, vou dormir. — Ótimo! — disse Insigna, despedindo-se da filha. Culpada, pensou Insigna. Sinto-me culpada. Está no meu rosto, como se fosse uma bandeira de cores vivas. Qualquer um pode ver. Não, não qualquer um. Apenas Marlene. Ela tem esse dom. Marlene tinha que ter alguma coisa para compensar o que lhe faltava. A inteligência não era suficiente. Tinha que ter também o dom de ler as expressões, as entonações, a linguagem corporal, de modo que não se lhe podia esconder nenhum segredo. Há quanto tempo possuía aquele perigoso poder? Ficaria mais forte com a idade? Por que permitira que emergisse, que espreitasse de trás da cortina que parecia ter usado para cobri-lo, apenas para usá-lo para agredir a mãe? Seria porque Aurinel a havia rejeitado, de forma final e definitiva, de acordo com o que havia visto no rapaz? Estaria louca de ódio? Culpada, pensou Insigna. Por que não deveria me sentir culpada? É tudo minha culpa. Deveria ter sabido desde o começo, desde o momento da descoberta… mas eu não queria saber. SEIS APROXIMAÇÃO Há quanto tempo ela sabia? Desde o momento em que decidira chamar a estrela de Nêmesis? Teria pressentido o que era e o que significava, e escolhera inconscientemente um nome apropriado? Quando observou a estrela pela primeira vez, era apenas a descoberta que contava. Não havia espaço nos seus pensamentos para mais nada, a não ser a imortalidade. Era uma estrela só sua, a Estrela de Insigna. Sentiu-se tentada a chamá-la assim. Entretanto, rejeitou o nome, com uma careta interna de falsa modéstia. Como seria insuportável agora, se não houvesse resistido à tentação! Depois da descoberta, veio o choque do pedido de Pitt para que mantivesse segredo, seguido dos preparativos frenéticos para a Partida (Seria esse o nome usado nos livros de história? A Partida? Com P maiúsculo?) Depois da Partida, foram dois anos em que a nave entrou e saiu várias vezes do hiperespaço, em breves incursões, anos de cálculos sem fim, que a propulsão hiperespacial tornava necessários, cálculos que envolviam uma grande quantidade de dados astronômicos, cuja obtenção ela própria se encarregava de supervisionar. Só a densidade e composição da matéria interestelar… Em nenhum momento, nesses quatro anos, chegou a pensar em Nêmesis com profundidade; em nenhum momento enxergou o óbvio. Seria isso possível? Ou simplesmente havia fechado os olhos para aquilo que não queria ver. Tinha deliberadamente buscado refúgio em todo o segredo, atividade e emoção que cercavam a jornada? Chegou, porém, uma hora em que o último salto no hiperespaço ficou para trás. Durante um mês, estariam desacelerando a nave, no meio de uma nuvem de boas-vindas de átomos de hidrogênio, que a nave atingia com tal velocidade que eram convertidos em partículas de raios cósmicos. Um veículo espacial comum não teria resistido a tal bombardeio, mas Rotor era revestido por uma grossa camada de solo, que havia sido reforçada para a viagem. Um dos especialistas lhe assegurara que, no futuro, seria possível entrar e sair do hiperespaço em velocidades normais. — Dada a existência do hiperespaço — dissera ele — não será necessária nenhuma descoberta revolucionária. É só um problema de engenharia. Talvez! Os outros técnicos não se mostravam tão otimistaS. Quando se deu conta da terrível verdade, Insigna foi correndo falar com Pitt. Ele tivera muito pouco tempo para Insigna no último ano, e ela aceitara resignadamente a situação. Havia uma certa tensão no ar, que se tornava cada vez mais evidente à medida que a emoção da viagem ficava para trás e as pessoas se davam conta de que, em questão de meses, estariam se aproximando de outra estrela. Teriam então que enfrentar o problema permanente de sobreviverem nas vizinhanças de uma estranha anã vermelha, sem nenhuma garantia de que existisse um planeta adequado para lhes fornecer as matérias-primas de que necessitavam, quanto mais um lugar para viver. Janus Pitt não parecia mais um rapaz, embora o cabelo ainda fosse escuro e não tivesse nenhuma ruga. Fazia apenas quatro anos que o procurara com a notícia da existência de Nêmesis. Entretanto agora seu rosto tinha sempre um ar tristonho. Era como se a alegria lhe tivesse sido roubada e suas preocupações expostas à curiosidade alheia. Agora ele era o novo Comissário. Talvez fosse isso que o estava incomodando, mas como poderia saber? Insigna jamais havia conhecido o poder de verdade (e a responsabilidade que o acompanha) mas alguma coisa lhe dizia que podia estragar a vida das pessoas. Pitt sorriu distraidamente para ela. Tinham sido íntimos quando compartilhavam um segredo que ninguém (e depois quase ninguém) conhecia. Naquela época, só podiam conversar despreocupadamente quando estavam a sós. Depois da Partida, porém, quando o segredo foi revelado, seus contatos se tornaram menos freqüentes. — Janus, há uma coisa me roendo por dentro, e eu tive que vir falar com você. É Nêmesis. — Não venha me dizer que descobriu que não está onde pensava que estivesse. Está lá, sim, a menos de dezesseis bilhões de quilômetros de distância. Podemos vê-la claramente. — Sim, eu sei. Mas quando a descobri, a uma distância de pouco mais de dois anos-luz, supus que fosse uma estrela companheira, que Nêmesis e o Sol estivessem girando em torno de um centro de gravidade comum. Seria tão dramático… — Está certo. Por que as coisas não podem ser dramáticas de vez em quando? — Porque, por mais próxima que esteja, está longe demais para ser uma estrela companheira. A atração gravitacional entre Nêmesis e o Sol é extremamente pequena, tão pequena que perturbações gravitacionais produzidas por estrelas próximas tornariam a órbita instável. — Mesmo assim, Nêmesis está aí. — Sim, e mais ou menos a meio caminho entre o Sol e Alfa Centauri. — Que é que Alfa Centauri tem a ver com isso? — A verdade é que Nêmesis não está muito mais longe de Alfa Centauri do que do Sol. De modo que podemos também supor que ela é uma estrela companheira de Alfa. Ou por outra: seja qual for o sistema a que pertencer, a outra estrela está perturbando sua órbita, ou já perturbou. Pitt olhou pensativamente para Insigna e tamborilou de leve no braço da cadeira. — Quanto tempo leva Nêmesis para completar uma órbita, supondo que seja companheira do Sol? — Não sei. Teria de calcular a órbita exata. É algo que eu deveria ter feito antes da Partida, mas havia tantas outras coisas com que me preocupar… não, isso não é desculpa. — Faça uma estimativa, então. — Supondo que a órbita é circular, Nêmesis levaria pouco mais de cinqüenta milhões de anos para completar uma órbita em torno do Sol, ou, mas exatamente, em torno do centro de gravidade do sistema, com o Sol descrevendo uma órbita semelhante. A reta ligando os dois astros passaria sempre por esse centro de gravidade. Por outro lado, se Nêmesis esta descrevendo uma órbita elíptica de alta excentricidade, e se encontra no momento no ponto mais distante dessa órbita (e deve estar, pois se fosse ainda mais longe, deixaria de ser uma estrela companheira), então o tempo diminui para vinte e cinco milhões de anos. — Então, da ultima vez em que Nêmesis esteve nesta posição, mais ou menos entre Alfa Centauri e o Sol, Alfa Centauri deve ter estado em uma posição muito diferente da atual. Vinte e cinco a cinqüenta milhões de anos fazem uma grande diferença para Alfa Centauri, não fazem? — Uma diferença de quase um ano-luz. — Isso quer dizer que é a primeira vez que Nêmesis está sendo disputada pelas duas estrelas. Que ate agora estava em uma órbita estável? — Não, Janus. Mesmo se excluirmos Alfa Centauri, existem outras estrelas. Uma estrela pode estar mais próxima agora, mas havia outras estrelas próximas em outros pontos da órbita. Não, a órbita de Nêmesis simplesmente não é estável. — Se Nêmesis não está em órbita em torno do Sol, que está fazendo em nossa vizinhança? — Exatamente. — Que quer dizer com “exatamente”? — Se estivesse em órbita em torno do Sol, estaria se movendo com uma velocidade, em relação ao Sol, de oitenta a cem metros por segundo, dependendo da massa de Nêmesis. Trata-se de uma velocidade muito pequena para uma estrela. Com essa velocidade, Nêmesis ficaria atrás da nuvem por muito tempo, especialmente se a nuvem estivesse se movendo na mesma direção em relação ao Sol. Seria natural, portanto, que tivesse permanecido tanto tempo sem ser descoberta. Entretanto… — Insigna fez uma pausa. Sem disfarçar sua impaciência, Pitt suspirou e disse: — E daí? Quer ir logo ao que interessa? — Entretanto, se Nêmesis não está em órbita em torno do Sol, provavelmente está se movendo muito mais depressa. No momento, encontra-se nas vizinhanças do Sol, mas vai continuar sua jornada para o infinito. Acontece que sabemos que ficou por muito tempo atrás da nuvem, caso contrário teria sido observada antes. — Como isso pode ser? — Só há uma forma de explicar o fato de Nêmesis estar se movendo rapidamente e ao mesmo tempo permanecer na mesma posição aparente no céu. — Não me diga que está oscilando para um lado e para o outro. Insigna fez uma careta. — Não é hora de brincadeiras, Janus. Nêmesis pode estar se movendo mais ou menos na direção do Sistema Solar. Nesse caso, sua posição aparente não mudaria muito com o tempo. Pitt olhou para ela, surpreso. — Você tem provas disso? — Ainda não. Quando Nêmesis foi observada pela primeira vez, não havia razão para medir o seu espectro. Só depois que descobri a que distância estava de nós foi que ela se tornou um objeto de interesse. Logo depois, porém, você me colocou à testa do projeto Sonda Profunda e me deu instruções para desviar as atenções gerais para longe de Nêmesis. De modo que até hoje não disponho de uma análise espectral confiável. Mas vou cuidar disso. — Diga-me uma coisa. Não é possível que Nêmesis esteja se afastando do Sol, quase em linha reta com a nuvem? Nesse caso, o movimento relativo entre ela e a nuvem também seria pequeno… — O espectro nos dirá. Se as linhas estiverem deslocadas para o vermelho é porque está se afastando; se estiverem deslocadas para o violeta, é porque está se aproximando. — Mas agora é tarde demais. Se você medir o espectro, certamente as linhas vão estar deslocadas para o violeta, porque nós amos nos aproximando de Nêmesis. — Acontece que não vou medir o espectro de Nêmesis e sim o do Sol. Se Nêmesis está se aproximando do Sol, então o Sol está se aproximando de Nêmesis, e podemos levar em conta o nosso movimento. Além do mais, estamos desacelerando e, daqui a mais ou menos um mês, nossa velocidade será tão pequena que deixará de interferir na análise dos espectros. Durante meio minuto Pitt pareceu perdido em seus pensamentos, olhando para o tampo da escrivaninha, a mão afagando distraidamente o terminal de computador. Depois, disse, sem levantar os olhos: — Não. Não será necessário fazer essas observações. Não quero que se preocupe mais com o assunto, Eugenia. Esqueça — disse, Pitt, dispensando-a com um gesto. Insigna respirou fundo e disse, em tom irritado: — É muita ousadia, Janus! É muita ousadia! — É muita ousadia o quê? — perguntou Pitt, franzindo a testa. — É muita ousadia me pôr para fora como se eu fosse um técnico qualquer. Se não tivesse descoberto Nêmesis, não estaríamos aqui. Você não seria Comissário. Nêmesis é minha. Tenho direito de ser ouvida. — Nêmesis não é sua. É de Rotor. Retire-se, por favor. Tenho muita coisa para fazer. — Janus — insistiu Insigna, levantando a voz —, estou dizendo a você que, ao que parece, Nêmesis está se movendo em direção ao nosso Sistema Solar. — E eu estou dizendo a você que é igualmente provável que esteja se afastando. Mesmo que esteja se aproximando do Sistema Solar que, a propósito, não é mais o nosso Sistema Solar, mas o Sistema Solar deles, não me diga que vai se chocar com o Sol. Não acreditaria se me dissesse. Em toda a sua história de quase cinco bilhões de anos, o Sol nunca esteve perto de colidir com qualquer estrela. As probabilidades de uma colisão desse tipo são extremamente pequenas. Não preciso ser astrônomo para saber disso. — Probabilidades são probabilidades, Janus, e não certezas. É possível, embora improvável, que Nêmesis e o Sol venham a colidir. O que me preocupa, porém, é que, mesmo que não haja uma colisão, a aproximação de Nêmesis pode ser fatal para a Terra. — Para que isso aconteça, quanto ela vai ter que se aproximar? — Não sei. Terei que calcular. — Está bem. Você está sugerindo que a gente faça todos os cálculos necessários e, se chegarmos à conclusão de que a situação envolve perigo para o Sistema Solar, então o que faremos? Alertamos o Sistema Solar? — Claro que sim. Que escolha temos? — Como vamos avisá-los? Não dispomos de nenhum hipercomunicador e mesmo que o tivéssemos eles não têm nenhum sistema para receber hipertransmissões. Se enviarmos uma mensagem à velocidade da luz, através de microondas, laser ou neutrinos, a mensagem levará dois anos para chegar à Terra. Se nosso sinal for captado, o que não é garantido, levaremos mais dois anos para receber a resposta. E qual será o resultado final? Teremos de revelar a eles onde está Nêmesis e eles verão que a mensagem está chegando da mesma direção. Todo o nosso segredo, todo o plano de fundarmos uma nova civilização em torno de Nêmesis, estará perdido. — Seja qual for o custo, Janus, como pode pensar em não avisá-los? — Por que está preocupada? Mesmo que Nêmesis esteja se movendo em direção ao Sol, quanto tempo levaria para chegar ao Sistema Solar? — Poderia chegar às vizinhanças do Sistema Solar em uns cinco mil anos. Pitt recostou-se na cadeira e olhou para Insigna com ar irônico. — Cinco mil anos. Apenas cinco mil anos? Pense, Eugenia, há duzentos e cinqüenta anos o homem pisou na Lua pela primeira vez. Apenas dois séculos e meio se passaram, e aqui estamos, na estrela mais próxima. Onde estaremos daqui a mais dois séculos e meio? Na estrela que quisermos. Daqui a cinco mil anos, ou cinqüenta séculos, estaremos espalhados por toda a Galáxia! Estaremos talvez começando a explorar outras galáxias. Daqui a cinco mil anos, nossa tecnologia estará tão avançada que, se o Sistema Solar realmente correr perigo, toda população da Terra e das colônias poderá mudar-se para outros sistemas. Insigna balançou a cabeça. — Não pense que o progresso tecnológico tornará possível evacuar o Sistema Solar em um simples piscar de olhos, Janus. Para remover bilhões de pessoas de forma ordeira, sem que haja pânico e violência, será preciso um longo período de preparação. Se eles vão estar em perigo daqui a cinco mil anos, devem ser informados agora. — Você tem bom coração, Eugenia. Vou fazer uma contra- proposta. Vamos reservar um período de cem anos para nos estabelecermos aqui, para nos multiplicarmos, para fundarmos um conjunto de colônias. Depois disso, poderemos investigar a trajetória de Nêmesis e (se isso for necessário) prevenir o Sistema Solar. Eles ainda terão quase cinco mil anos para se preparar. Um atraso de apenas um século não fará muita diferença. Insigna suspirou. — É essa a sua visão do futuro? A humanidade usando as estrelas como campo de batalha? Cada grupo tentando conquistar a supremacia de um sistema estelar? Ódio, desconfiança, conflito, do tipo que tivemos na Terra durante milhares de anos, multiplicados por mil, disseminados por toda a Galáxia? — Eugenia, não tenho visão nenhuma. A humanidade pode fazer o que lhe aprouver. Transformar as estrelas em campo de batalha, como você está dizendo, ou talvez formar um Império Galáctico, ou fazer alguma outra coisa. Não posso decidir o que fará a humanidade, nem pretendo influenciá-la No que me diz respeito, tenho apenas esta colônia para cuidar e disponho de menos de um século para estabelecê-la em Nêmesis. Depois disso, eu e você estaremos mortos e nossos descendentes ficarão com a responsabilidade de avisar ao Sistema Solar… se isso for necessário. Estou tentando ser razoável, Eugenia. Você também é uma pessoa razoável. Procure pensar. Insigna pensou. Ficou ali sentada, olhando de cara feia para Pitt, enquanto ele esperava com paciência quase exagerada. — Muito bem. Talvez você tenha razão — disse ela, final- mente. — Vou analisar o movimento de Nêmesis em relação ao Sol. Depois, talvez a gente possa esquecer o assunto por cem anos. — Não! — protestou Pitt, levantando o dedo em um gesto de advertência. — Lembre-se do que eu disse. Essas observações não devem ser feitas. Se o Sistema Solar não estiver em perigo não ganharemos nada com isso. Se descobrirmos que o perigo existe, você se sentirá tentada a avisar imediatamente ao Sistema Solar. Suponha que outras pessoas fiquem sabendo, pessoas sentimentais como você. Isso poderá abalar a estabilidade da nossa colônia. Nesse caso, teremos muito a perder. Você me entende? Insigna continuou em silêncio. — Ótimo. Estou vendo que sim — prosseguiu Pitt. Mais uma vez, dispensou-a com um gesto. Desta vez, ela saiu, enquanto Pitt pensava consigo mesmo: “Ela está realmente se tornando insuportável.” SETE DESTRUIÇÃO Marlene olhou para a mãe. Teve o cuidado de não demonstrar, mas se sentia agradavelmente surpresa. A mãe estava finalmente lhe contando a respeito do pai e do Comissário Pitt. Estava sendo tratada como uma adulta. — Eu teria analisado de qualquer maneira os movimentos de Nêmesis, mamãe, mas estou vendo que não foi o que você fez, senão não se sentiria tão culpada. — Não consigo me acostumar com a idéia de que o meu sentimento de culpa é tão evidente. — Ninguém consegue esconder seus sentimentos. É só a gente olhar, e a gente sabe. — (Nem todo mundo. Marlene tinha descoberto isso aos poucos, e com dificuldade. As pessoas simplesmente não olhavam, não sentiam, não reparavam. Não observavam as expressões, os corpos, as atitudes, os pequenos tiques nervosos.) — Você não devia olhar desse jeito, Marlene — disse Insigna, como se os pensamentos das duas tivessem tomado rumos paralelos. Colocou o braço no ombro da filha para que suas palavras não parecessem uma admoestação. — As pessoas ficam nervosas quando esses seus grandes olhos negros se fixam nelas. Respeite a privacidade dos outros. — Está bem, mamãe — disse Marlene, notando sem esforço que a mãe estava tentando proteger-se. Parecia nervosa, sem saber até que ponto a filha era capaz de detectar suas emoções. — Como é que, apesar dos seus sentimentos de culpa, você não fez nada para avisar ao Sistema Solar? — Tive várias razões, Molly. (Não é “Molly”, pensou Marlene, irritada. É Marlene! Mar- lene! Marlene! Não sou mais uma criança!) — Que razões? — perguntou Marlene, de cara amarrada. (A mãe não era capaz de perceber a onda de hostilidade que se apossava de Marlene cada vez que usava aquele apelido? Não era capaz de ver o rosto contorcido, os olhos faiscantes, os lábios apertados? Por que as pessoas não reparavam? Por que as pessoas não olhavam?) — Para começar, Janus Pitt foi muito convincente. Mesmo que você não concorde com ele, mesmo que fique a princípio chocada com suas sugestões, ele sempre acaba por persuadir você de que há boas razões para os seus pontos de vista. — Se é verdade o que está dizendo, mamãe, então esse homem é muito perigoso. Insigna pareceu interromper suas divagações para olhar para a filha, surpresa. — Por que está dizendo isso? — Existem boas razões para qualquer ponto de vista. Se alguém é capaz de encontrar rapidamente essas razões e apresentá-las de forma convincente é capaz de persuadir qualquer um de qualquer coisa, o que pode ser um perigo. — Janus Pitt possui essa habilidade, isso eu devo admitir. Estou surpresa com a forma como você entende dessas coisas. (Marlene pensou: “Está surpresa porque só tenho quinze anos e você está acostumada a me considerar como uma criança.”) — A gente aprende muita coisa observando as pessoas. — Sim, mas lembre-se do que eu lhe disse. Evite olhar demais para as pessoas. (Nunca.) — De modo que o Sr. Pitt conseguiu convencê-la. — Ele me fez perceber que não havia nenhum mal em esperarmos um pouco. — E você não teve nem mesmo a curiosidade de estudar Nêmesis para saber exatamente qual é a sua trajetória? Não acredito. — Claro que fiquei curiosa, mas não e tão fácil como você pensa. O Observatório é usado por muitos cientistas. A gente tem de esperar a vez para usar os instrumentos. O fato de eu ser a diretora não me dá carta branca. Além disso, é impossível operar os equipamentos em segredo. Nós todos sabemos por quem estão sendo utilizados e para quê. Assim, eu não poderia conseguir espectros detalhados de Nêmesis e do Sol, nem usar o computador do Observatório para as análises matemáticas sem que meus colegas percebessem imediatamente o que eu estava fazendo. Desconfio até que eu estava sendo vigiada por alguns homens de Pitt. Se eu saísse da linha, ele seria imediatamente informado. — Mas ele não podia fazer coisa alguma para detê-la, podia? — Não podia me condenar à morte por crime de alta traição, se é isso que quer dizer (não que ele fosse capaz disso), mas podia me demitir do Observatório e me transferir para as plantações. Eu não queria que isso acontecesse. Pouco depois de minha conversa com Pitt, descobri que Nêmesis tinha um planeta… ou uma estrela companheira. Até hoje, não sei ao certo qual dos dois. Estão separados por uma distância de quatro milhões de quilômetros e o objeto companheiro não irradia em nenhum comprimento de onda da luz visível. — Está falando a respeito de Megas, não está, mamãe? — Estou. É uma palavra muito antiga, que significa “grande”, e para um planeta ele é realmente grande, bem maior que Júpiter, o maior planeta do Sistema Solar. Entretanto, é muito pequeno para uma estrela. Alguns consideram Megas uma anã marrom. — Fez uma pausa e olhou criticamente para a filha, co- no se não soubesse ao certo se a filha era capaz de compreender o que estava dizendo. — Sabe o que é uma anã marrom, Molly? — Meu nome é Marlene, mamãe. Insigna corou ligeiramente. — Está bem. Desculpe se me esqueço de vez em quando. É difícil evitar, você sabe. Não faz muito tempo, tive uma filhinha muito querida que se chamava Molly. — Eu sei. E da próxima vez que eu tiver seis anos, pode me chamar de Molly quantas vezes quiser. Insigna riu. — Você sabe o que é uma anã marrom, Marlene? — Sei, sim, mamãe. Uma anã marrom é um astro intermediário entre uma estrela e um planeta. A massa é pequena demais para produzir a reação de fusão de hidrogênio que a transformaria em uma estrela de verdade, mas suficiente para produzir reações secundárias que a mantêm aquecida. — Isso mesmo. Nada mau. Megas é um caso limite; pode ser um planeta muito quente ou uma anã marrom muito fria. Não emite luz visível, mas irradia com alta intensidade no infravermelho. Não se parece com nada conhecido. Era o primeiro corpo planetário extra-solar (ou seja, o primeiro planeta fora do Sistema Solar) que podíamos examinar de perto. O Observatório estava dedicando a ele tempo integral. Eu não teria chance de investigar o movimento de Nêmesis mesmo que quisesse e, para ser franca, passei algum tempo sem pensar no assunto. Eu estava tão interessada em Megas quanto os outros, entende? — Hum — fez Marlene. — Aparentemente, era o único planeta que girava em torno de Nêmesis. Tinha cinco vezes a massa… — Eu sei, mamãe. Tem cinco vezes a massa de Júpiter e é apenas trinta vezes menor que Nêmesis. O computador me ensinou isso há muito tempo. — É claro, querida. E é tão habitável quanto Júpiter. A princípio, ficamos decepcionados. Não que tivéssemos grandes esperanças de encontrar um planeta habitável em órbita em torno de uma anã vermelha. Se um planeta estivesse suficientemente próximo de uma estrela como Nêmesis para manter a temperatura da superfície em níveis aceitáveis, as forças gravitacionais fariam com que voltasse sempre a mesma face para Nêmesis. — Megas não é assim, mamãe? Um lado não está sempre voltado para Nêmesis? — É verdade. Isso significa que tem um lado quente e um lado frio. Na verdade, o lado quente seria incandescente, se não fosse pela densa atmosfera, que redistribui em parte o calor. Por causa disso, e por causa do calor interno de Megas, mesmo o la- do frio é relativamente quente. Existem muitas coisas em Megas que eram totalmente novas para nós. Foi então que descobrimos que Megas tinha um satélite, ou, se quiser considerar Megas como uma estrela, que ele tinha um planeta: Eritro. — Em torno do qual Rotor gira até hoje, eu sei. Mas, mamãe, faz mais de dez anos que vocês descobriram Megas e Eritro. Depois de todo esse tempo, ainda não conseguiu dar uma olhada nos espectros de Nêmesis e do Sol? Ainda não sabe qual é a verdade? — Bem… — Eu sei que você sabe — disse Marlene, em tom acusatório. — Pela minha expressão? — Por tudo em você. — E difícil ficar à vontade na sua presença, Marlene. Sim, eu sei qual é a verdade. — Então me diga. — Nêmesis está indo na direção do Sistema Solar. Houve uma pausa. Depois Marlene perguntou, em voz baixa: — Vai haver uma colisão? — Não, se os meus cálculos estiverem corretos. Estou segura de que não vai se chocar com o Sol, nem com a Terra, nem com nenhum outro planeta. Mas isso não será necessário. De qualquer forma, Nêmesis provavelmente vai destruir a Terra. Era evidente para Marlene que a mãe não queria falar a respeito da destruição da Terra, que o assunto a desgostava, que preferia não dizer mais nada. Sua expressão (a forma como se afastou um pouco de Marlene, como se estivesse ansiosa para deixar o aposento; o modo como passou lentamente a língua nos lábios, como se estivesse tentando remover o gosto das próprias palavras) deixava isso evidente para Marlene. Entretanto, ela não queria que a mãe parasse. Queria saber mais. — Se Nêmesis não vai se chocar com a Terra, por que a Terra será destruída? — Vou tentar explicar. A Terra gira em torno do Sol, da mesma forma que Rotor gira em torno de Eritro. Se os únicos astros do Sistema Solar fossem a Terra e o Sol, então a órbita da Terra seria quase imutável. Eu disse “quase” porque, na verdade, a Terra está sempre emitindo ondas gravitacionais que lhe rouba uma pequena parte da sua quantidade de movimento, fazendo-a descrever uma lentíssima espiral em direção ao Sol. Mas podemos ignorar este efeito. “Existem outros fatores porque a Terra não está sozinha. A Lua, Marte, Vênus, Júpiter, todos os astros próximos atraem a Terra. Essas atrações são muito pequenas em comparação com a do Sol, de modo que a Terra permanece em uma órbita mais ou menos estável. Entretanto, as atrações secundárias, que estão sempre mudando de direção e intensidade de forma muito complicada pois a posição relativa de todos os astros envolvidos muda a cada instante, introduz pequenas perturbações na órbita da Terra. A Terra se aproxima ou se afasta do Sol, a inclinação do seu eixo varia ligeiramente, a excentricidade da órbita aumenta ou diminui, e assim por diante. “É possível demonstrar… já foi demonstrado… que todas essas pequenas mudanças são cíclicas. Elas não se acentuam com o tempo. O resultado é que a Terra, em sua órbita em torno do Sol, balança para lá e para cá de dez formas diferentes. Todos os outros planetas estão sujeitos ao mesmo tipo de balanços. Os balanços que a Terra sofre não a impedem de abrigar formas de vida. No máximo, podem representar uma era glacial, ou o derretimento das calotas polares, fazendo subir o nível dos oceanos, mas a vida vem conseguindo sobreviver a esses contratempos há mais de três bilhões de anos. “Suponhamos, porém, que Nêmesis passe a mais ou menos um mês-luz do Sistema Solar. Isso corresponderia a uma distância de menos de um trilhão de quilômetros. Enquanto estiver passando (e vai levar vários anos para passar), Nêmesis vai afetar gravitacionalmente todo o Sistema Solar. O balanço da Terra (e dos outros planetas) aumentará durante algum tempo. Depois, quando Nêmesis se afastar, o balanço voltará ao normal. — Parece que você está pintando as coisas mais feias do que são na realidade — disse Marlene. — Qual é o problema se Nêmesis perturba um pouco as órbitas dos planetas do Sistema Solar, se depois tudo volta ao normal? — Sim, mas será que depois da passagem todas as órbitas estarão no mesmo lugar que antes? É esse o problema. Se a nova posição de equilíbrio da Terra for diferente da antiga — um pouquinho mais distante do Sol, um pouquinho mais próxima, com a órbita um pouquinho mais excêntrica, com o eixo um pouquinho mais inclinado —, como é que isso vai afetar o clima da Terra? Mesmo uma pequena mudança poderia transformá-la em um planeta inabitável. — Não pode calcular exatamente o que vai acontecer? — Não. Rotor não é um bom lugar para fazer isso. Nossa órbita também está sujeita a flutuações, o que afeta a precisão das medidas. Só será possível determinar com exatidão a trajetória de Nêmesis quando ela estiver bem mais próxima do Sistema Solar, isto é, daqui a alguns séculos. — De modo que você realmente não sabe a que distância Nêmesis vai passar do Sistema Solar. — No momento, é quase impossível prever. Teríamos que levar em conta o campo gravitacional de todas as estrelas em um raio de dez anos-luz. Qualquer imprecisão nos cálculos significaria, depois de percorrida a distância de dois anos-luz que atualmente separa Nêmesis do Sol, um erro muito grande. O suficiente para transformar uma colisão em uma passagem sem problemas. Ou vice-versa. — O Comissário Pitt disse que na época em que Nêmesis estiver chegando, os habitantes da Terra poderão fugir para outro planeta, se houver necessidade. Acha que ele está certo? — Talvez. Como podemos saber o que vai acontecer daqui a cinco mil anos? Quantas reviravoltas vai dar a história e como isso vai influir na resposta? Podemos torcer para que os habitantes da Terra consigam escapar a tempo. — Mesmo que não sejam avisados — disse Marlene, sentindo-se constrangida por levantar um ponto óbvio —, acabarão descobrindo. É inevitável. Daqui a alguns séculos, Nêmesis estará tão próxima que não poderão deixar de notá-la. — Sim, mas nesse caso terão menos tempo para planejar a fuga… se ela for necessária. Marlene baixou os olhos e disse: — Mamãe, não fique zangada comigo. Estou percebendo que você se sentiria infeliz mesmo que toda a população da Terra conseguisse deixar o Sistema Solar. Há mais alguma coisa envolvida. Diga-me o que é, por favor. — Não gosto da idéia de todos deixarem a Terra. Mesmo que isso seja feito de forma ordeira, sem pressa e sem contratempos. Simplesmente não gosto da idéia. Não quero que a Terra seja abandonada. — E se não houver outra solução? — Então, paciência. Posso aceitar o inevitável, mas não sou obrigada a gostar — Quais os seus sentimentos em relação à Terra? Você estudou lá não estudou? — Foi lá que fiz meu doutorado em astronomia. Eu não gostava da Terra, mas isso não importa. E o lugar onde surgiu a raça humana. Sabe o que isso significa, Marlene? Mesmo que não apreciasse muito o lugar quando morei lá, ainda é o planeta que foi a origem de tudo! Para mim, não é apenas um mundo, mas uma idéia, uma abstração. Quero que continue a existir por causa do passado. Não sei se está me entendendo. — Papai era da Terra — disse Marlene. — Sim, ele era. — E voltou para a Terra. — É o que consta dos registros. — Eu sou metade terráquea, não sou? Insigna franziu a testa. — Nós somos todos terráqueos, Marlene. Meus trisavôs nunca saíram da Terra. Minha bisavó nasceu na Terra. Todos os seres humanos, sem exceção, descendem dos terráqueos. E não são só os seres humanos. Todas as formas de vida em todas as colônias, desde os vírus até as árvores, descendem da vida terrestre. — Mas só os seres humanos sabem disso. E alguns estão mais próximos da Terra do que outros. Você às vezes pensa no papai? — Marlene olhou rapidamente para o rosto da mãe e fez uma careta. — Isso não é da minha conta. É o que vai me dizer. — Foi o meu primeiro impulso, mas nem sempre me deixo guiar pelos impulsos. Afinal, você é minha filha. Sim, penso nele de vez em quando — admitiu, levantando ligeiramente os ombros. Que é que você acha dele, Marlene? — Não tenho nada para achar. Não me lembro dele. Nunca vi um holograma dele, nem nada. — Achei que era melhor assim, porque… — Insigna não completou a frase. — Mas quando eu era menor, às vezes me perguntava por que alguns pais tinham ficado com os filhos quando ocorreu a Partida e outros não. Achei que os que partiram não gostavam dos filhos e que o papai não gostava de mim. Insigna olhou para a filha. — Você nunca me disse. — A idéia me ocorreu quando eu era bem pequena. Quando fiquei mais velha, compreendi que a questão era mais complexa. — Isso jamais deveria ter passado pela sua cabeça. Simplesmente não é verdade. Eu teria dito isso a você, se desconfiasse que… — Você não gosta de falar do passado, mamãe. E eu compreendo. — Mesmo assim, eu teria falado, se soubesse dessa sua idéia, se pudesse ler seus pensamentos como você lê os meus. Seu pai gostava de você. Ele teria levado você para a Terra, se eu permitisse. Na verdade, vocês estão separados por minha culpa. — Por culpa dele, também. Papai poderia ter ficado conosco. — Sim, poderia, mas agora que os anos se passaram, posso compreender melhor os seus problemas. Afinal de contas, eu não estava saindo de casa; meu mundo estava partindo comigo. Podemos estar a mais de dois anos-luz da Terra, mas ainda me encontro em Rotor, onde nasci. Com seu pai, era diferente. Ele nasceu na Terra, e não em Rotor. Acho que não podia aceitar a idéia de deixar a Terra para sempre. De vez em quando também penso nisso. Detesto pensar na possibilidade de a Terra vir a ser abandonada. Deve haver bilhões de pessoas que preferem morrer a deixá-la. As duas ficaram em silêncio por alguns momentos. — Imagino o que papai estará fazendo na Terra neste momento. — Como poderíamos saber, Marlene? Vinte trilhões de quilômetros é uma distância muito grande, e quatorze anos é muito tempo. — Acha que ainda está vivo? — Nem mesmo isso eu sei… a vida pode ser muito curta na Terra. — Depois, como se tivesse percebido de repente que não estava falando consigo mesma, corrigiu. — Tenho certeza de que está vivo, Marlene. Estava em excelente saúde quando partiu, e hoje em dia ainda não chegou aos cinqüenta. Sente saudade dele? Marlene sacudiu a cabeça. — Ninguém pode sentir saudade de quem não conheceu. (Mas você o conheceu, mamãe, pensou. E você sente saudade dele.) OITO AGENTE Estranhamente, Crile Fisher custou um pouco para acostumar- se de novo com a Terra. Não imaginava que Rotor se tivesse tornado uma parte tão importante de sua vida em apenas quatro anos. Tinha sido o maior período que passara fora da Terra, mas certamente não devia ser um tempo suficiente para que a Terra lhe parecesse um lugar estranho. Talvez fosse o próprio tamanho da Terra, o horizonte distante recortado contra o céu. Talvez fossem as multidões, ou a gravidade sempre constante, ou a atmosfera turbulenta, ou as oscilações de temperatura… Não que tivesse de experimentar algum desses fenômenos. Mesmo quando estava dentro de casa, sabia que aquilo tudo continuava lá fora, e a natureza selvagem do ambiente terrestre invadia sua alma. Ou talvez o aposento fosse muito pequeno, muito entulhado, como se ele estivesse sendo oprimido por um mundo superpovoado e decadente. Era estranho que tivesse sentido tanta falta da Terra durante os anos que passara em Rotor e agora, que estava de volta, sentisse tanta falta de Rotor. Estaria condenado a passar a vida desejando o que não tinha? A lâmpada da porta piscou, e ele ouviu a campainha. Era um som intermitente. As coisas na Terra costumavam ser intermitentes, enquanto que em Rotor tudo era constante, com uma eficiência quase agressiva. — Entre — disse, em voz baixa, apenas o suficiente para ativar o mecanismo que destrancava a porta. Garand Wyler entrou (Fisher sabia que era ele) e olhou para o outro com curiosidade. — Você se mexeu desde que eu saí, Crile? — Claro. Comi alguma coisa. Fui ao banheiro. — Ótimo. Você está vivo, então, embora não pareça — disse, com um largo sorriso. Era um homem de pele morena, olhos escuros, dentes muito brancos, cabelos crespos. — Sente muita saudade de Rotor? — Uma vez ou outra. — Uma coisa que eu sempre tive vontade de saber… lá era a Branca de Neve sem os Setes Anões, não era? — Branca de Neve — concordou Fisher. — Nunca vi uma pessoa da raça negra em Rotor. — Nesse caso, já vão tarde. Você sabia que eles foram embora? Os músculos de Fisher se retesaram e ele quase se levantou, mas resistiu ao impulso. Concordou com a cabeça. — Eles disseram que iriam. — Não estavam mentindo. Saíram do sistema. Nós os seguimos até onde foi possível, captando a radiação que emitiam. Estavam usando aquela tal de propulsão hiperespacial. Em um momento, podíamos observá-los claramente; no momento seguinte, haviam desaparecido. — Conseguiram localizá-los de novo quando voltaram ao espaço normal? — Várias vezes. Cada vez mais distantes. No final, estavam viajando praticamente à velocidade da luz. Mais algumas entradas e saídas no hiperespaço e estavam longe demais para podermos observá-los. — Foi a vontade da maioria — disse Fisher, com amargura. — Os que não concordaram, como eu, ficaram para trás. — Pena que você não estivesse lá para ver. Foi bem interessante. Sabe, havia aqueles teimosos que insistiram até o fim que a propulsão hiperespacial era um blefe, que os rotorianos, por alguma razão, tinham inventado a história toda. — Rotor tinha a Sonda Profunda. Não poderiam ter mandado a sonda tão longe sem a propulsão hiperespacial. — Tudo mentira! Era o que os incrédulos diziam. — A sonda era verdadeira. — Sim, agora eles sabem que era. Todos eles. Quando Rotor desapareceu de repente, sem deixar vestígios, não havia explicação. Todas as colônias estavam observando. O irritante é que não sabemos para onde está indo. — Alfa Centauri, suponho. — O Escritório ainda acha que talvez não seja Alfa Centauri, e que você pode saber alguma coisa a respeito. Fisher pareceu ofendido. — Fui interrogado horas a fio. Não escondi nada. — Claro. Sabemos disso. É alguma coisa que você não sabe conscientemente. Querem que eu converse com você, de amigo para amigo, e descubra alguma coisa que você não saiba. Você morou lá quatro anos, casou-se, teve uma filha. Não pode ter deixado de observar alguma coisa. — Por que não? Se desconfiassem de longe da minha missão, eu seria imediatamente expulso. O simples fato de ser um terráqueo me tornava totalmente suspeito. Se não tivesse me casado, demonstrando com isso minha intenção de me tornar um cidadão rotoriano, não me deixariam ficar tanto tempo. Mesmo assim, não me deixaram aproximar de nada que envolvesse atividades sigilosas. — Fisher desviou os olhos do amigo. — E deu certo. Minha mulher era apenas uma astrônoma. Não tive muita liberdade de escolha, você entende. Não podia colocar um anúncio na holovisão apregoando que eu estava interessado em uma jovem que fosse especialista em propulsão hiperespacial. Se encontrasse uma, faria o possível para fisgá-la, mesmo que fosse feia como uma hiena, mas a verdade é que, durante toda a minha estada em Rotor, jamais conheci uma especialista nesse assunto. Acho que eles se preocupam tanto em manter a técnica em segredo que mantêm o pessoal envolvido no projeto em total isolamento. Provavelmente, eles todos usam disfarces e codinomes. Quatro anos… e não descobri nenhuma pista, nada. Eu sabia que isso iria significar o fim da minha carreira Garand ouvia-o sem se manifestar. Voltou-se para ele e disse, com súbita veemência: — As coisas iam tão mal que me transformei uma espécie de idiota Não imagina a frustração que eu estava sentindo. Wyler estava sentado a mesa em frente a Fisher, inclinando para trás as pernas de trás da cadeira, mas segurando-se na mesa para não cair se se inclinasse demais. Ele disse: — Crile, o Escritório não pode se dar ao luxo de ser delicado, mas não é totalmente desprovido de sentimentos. Eles não gostam de pressioná-lo desse jeito, mas é necessário. Não gosto de ter que fazer este trabalho, mas é necessário. Estamos preocupados com o fato de você ter voltado de mãos abanando. Se Rotor não tivesse partido, talvez chegássemos à conclusão de que não havia nada para você descobrir. Acontece que eles partiram. Eles tinham a propulsão hiperespacial, mas você voltou de mãos abanando. — Sei disso. — Mas isso não quer dizer que vamos dispensar os seus serviços ou… ou nos livrar de você. Temos esperanças de usá-lo em outros projetos. Para isso, porém, precisamos ter certeza de que o seu fracasso foi honesto. — Que quer dizer com isso? — Terei de convencê-los de que você não falhou por causa de fraquezas pessoais. Afinal de contas, casou-se com uma rotoriana. Ela era bonita? Você gostava dela? — O que você está realmente perguntando é se, pelo amor de uma mulher rotoriana, eu protegi deliberadamente Rotor e os ajudei a conservar seu segredo! — vociferou Fisher. — Pois então — disse Wyler, sem se abalar—, você ajudou? — Como pode perguntar isso? Se eu estivesse do lado dos rotorianos, teria ido com eles. A essa altura, estaria longe daqui. Vocês jamais me pegariam. Mas não foi isso que eu fiz. Abandonei Rotor e voltei para a Terra, mesmo sabendo que o fracasso provavelmente representava o fim da minha carreira. — Admiramos sua lealdade. — Há mais lealdade nisso do que vocês pensam. — Reconhecemos que você provavelmente amava sua esposa e que foi difícil deixá-la. Isso contaria a seu favor, se tivéssemos certeza de que… — Não foi tanto minha esposa, mas minha filha. Wyler olhou para Fisher com ar pensativo. — Sabemos que você tem uma filha de um ano, Crile. Nas circunstâncias, talvez você tenha agido sem pensar nas conseqüências. — Concordo. Há de convir, porém, que não sou um robô. Às vezes as coisas não correm de acordo com os planos. Depois que a criança nasceu e vivi com ela durante um ano… — É compreensível, mas foi apenas um ano. Tempo insuficiente para você se apegar a ela de uma forma tão… Fisher fez uma careta. — Você pode achar compreensível, mas não compreende. — Explique, então. Vou tentar compreender. — Foi por causa da minha irmã. Minha irmã mais moça. Wyler fez que sim com a cabeça. — Está na sua ficha. Rose, se não me engano. — Roseanne. Morreu durante um tumulto de rua, em San Francisco, há oito anos. Tinha apenas dezessete anos. — Sinto muito. — Não estava participando da manifestação. Era apenas um daqueles espectadores inocentes que geralmente são feridos em lugar dos arruaceiros e da polícia. Pelo menos, encontramos o corpo e tive alguma coisa para cremar. Wyler, embaraçado, não disse nada. — Tinha apenas dezessete anos. Nossos pais morreram quando ela tinha quatro anos e eu tinha quatorze. Trabalhei à noite, depois do colégio, para mantê-la bem alimentada, bem-vestida, protegida, mesmo à custa do meu próprio conforto. Tornei-me um programador (não que a profissão me rendesse muito dinheiro) e então, quando tinha apenas dezessete anos, ela, que jamais ha via feito mal a uma mosca, ela que nem sabia por que aqueles homens estavam brigando, foi simplesmente encurralada… — Posso entender por que você se apresentou como voluntário para ir a Rotor. — Oh, sim. Passei alguns anos em estado de choque. Entrei para o Escritório em parte para manter a mente ocupada e em parte porque sabia que era uma profissão arriscada. Durante algum tempo, a idéia de morrer me pareceu sedutora… contanto que eu morresse fazendo alguma coisa útil. Quando o problema de colocar um agente em Rotor foi discutido, decidi candidatar-me. Queria me afastar da Terra. — E agora voltou. Está arrependido? — Não sei. Rotor me sufocava Com todos os seus defeitos, a Terra tem espaço. Se você tivesse conhecido Roseanne, Garand… Não era bonita, mas que olhos! — Os olhos de Fisher estavam focalizados no passado. Uma pequena depressão apareceu entre as suas sobrancelhas, com se estivesse fazendo força para ver melhor. — Olhos lindos, mas assustadores. Ninguém podia encará-los sem ficar um pouco nervoso. Parecia que estava olhando para dentro de você… entende o que eu quero dizer? — Acho que não, Fisher. Fisher ignorou a resposta. — Ela sempre sabia se você estava mentindo ou dizendo a verdade. Quando você ficava calado, ela sempre adivinhava o que o estava incomodando. — Está tentando me dizer que ela era telepata? — O quê? Oh, não. Ela costumava dizer que era capaz de ver a expressão no rosto das pessoas, de interpretar o seu tom de voz. Dizia que ninguém era capaz de esconder o que estava pensando. Por mais que você risse, não podia esconder que estava triste. Tentou me explicar, mas nunca consegui entender exatamente como ela conseguia. Era uma pessoa especial, Garand. Eu a admirava. Depois, nasceu minha filha, Marlene. — Sim? — Tinha os mesmos olhos. — A criança tinha os olhos da sua irmã? — Não exatamente, mas eu vi quando eles se desenvolveram. Quando minha filha tinha seis meses, aqueles olhos me faziam encolher. — Sua mulher se encolhia, também? — Acho que não, mas acontece que não tinha uma irmã como Roseanne. Marlene quase não chorava; era uma criança tranqüila. Lembro-me de que Roseanne era assim quando bebê. E Marlene também não mostrava nenhum sinal de que fosse ser uma moça bonita. Era como se Roseanne tivesse voltado para mim. Por aí você pode ver como foi difícil. — Voltar para a Terra, você quer dizer. — Fazer isso e deixá-las para trás. Era como perder Roseanne pela segunda vez. Nunca mais tornarei a vê-la. Nunca mais. — Mesmo assim, você voltou. — Lealdade! Dever! Mas se quer saber a verdade, quase não voltei. Estava ali parado, dividido. Totalmente dividido. Queria desesperadamente ficar com Roseanne, quero dizer, com Marlene. E Eugenia, minha mulher, me disse, em tom queixoso: “Se você soubesse para onde estamos indo, não estaria tão ansioso para voltar para a Terra.” Nesse momento, perdi a vontade de partir. Pedi-lhe para vir comigo para a Terra. Ela se recusou. Pedi-lhe para pelo menos me deixar levar Ro… para me deixar levar Marlene. Ela se recusou. Depois, quando eu podia ter cedido e ficado, ficou furiosa e me mandou embora. E eu fui. Wyler olhou para Fisher com ar pensativo. — “Se você soubesse para onde estamos indo, não estaria tão ansioso para voltar para a Terra.” Foi isso que ela disse? — Sim, foi o que ela disse. E quando eu perguntei: “Por quê? Para onde vai Rotor?”, ela respondeu: “Para as estrelas.” — Isso não faz sentido, Crile. Você sabia que eles estavam planejando ir para as estrelas, mas ela disse: “Se você soubesse para onde estamos indo…” Havia alguma coisa que você não sabia. Que é que você não sabia? — De que está falando? Como alguém pode saber o que ele próprio não sabe? Wyler deu de ombros. — Você contou essa passagem durante o interrogatório? Fisher pensou um pouco. — Acho que não. Nem me lembrava mais até começar a lhe contar que quase fiquei em Rotor. — Fechou os olhos e depois disse, devagar: — Não, esta é a primeira vez que falo no assunto. É a primeira vez que penso no assunto. — Está bem. Agora que você pensou no aSsunto: para onde estava indo Rotor? Ouviu alguma especulação dos rotorianos a respeito? Algum boato? — A maioria achava que iria para Alfa Centauri. Era a escolha óbvia. A estrela mais próxima. — Sua mulher era astrônoma. Que é que ela achava? — Não sei. Nunca discutiu o assunto comigo. — Rotor lançou a Sonda Profunda. — Eu sei. — E sua mulher participou do projeto… como astrônoma. — É verdade, mas não conversava muito sobre o seu trabalho, e eu evitava puxar o assunto. Se eu me mostrasse curioso demais, acabaria me revelando, caso em que poderia me prender ou até me executar por espionagem. — Mas como astrônoma, sua mulher tinha que conhecer o local de destino. Ela própria reconheceu isso. “Se você soubesse…” Está entendendo? Ela sabia, e se você soubesse, também. Fisher não parecia interessado. — Já que ela não me contou o que sabia, não posso ajudá-lo. — Tem certeza? Não fez nenhum comentário cuja importância você não podia reconhecer na ocasião? Afinal de contas, você não é astrônomo, e ela pode ter dito alguma coisa técnica, que você não entendeu muito bem. Lembra-se de alguma coisa estranha que sua mulher tenha dito? — Não consigo pensar em nada. — Tente! E possível que a Sonda Profunda tenha descoberto um sistema planetário em torno de uma das estrelas de Alfa Centauri? — Não sei. — Ou planetas em torno de outra estrela? Fisher franziu a testa. — Pense! — exclamou Wyler. — Há alguma razão para você pensar que o que ela queria dizer era: “Você pensa que vamos para Alfa Centauri, mas há alguns planetas girando em torno da estrela e é para lá que vamos?” Ou será que ela queria dizer: “Você pensa que vamos para Alfa Centauri, mas vamos para outra estrela, em torno do qual gira um planeta habitável?” Alguma coisa parecida? — Como vou saber? Os lábios grossos de Garand Wyler permaneceram fechados por um momento. Depois, ele disse: — Vou lhe dizer uma coisa, Crile, meu velho amigo. Há três coisas que vão acontecer agora. Primeiro, você vai ser submetido a outro interrogatório. Segundo, desconfio que vamos ter de persuadir a colônia de Ceres a permitir que usemos o seu telescópio para examinar, com cuidado, todas as estrelas em um raio de cem anos-luz. Terceiro, vamos ter de pressionar nossos especialistas em propulsão hiperespacial para serem um pouquinho mais usados em seus projetos. Preste atenção e verá que é isso que vai acontecer. NOVE ERITRO Havia ocasiões, uma vez ou outra, que iam se tornando cada vez mais raras (ou assim lhe parecia) em que Janus Pitt encontrava tempo para recostar-se na cadeira, sozinho e em silêncio, e permitir que sua mente divagasse. Esses eram momentos em que não havia ordens a serem dadas, informações a serem absorvidas, decisões imediatas a serem tomadas, fazendas a serem visitadas, fábricas a serem inspecionadas, regiões do espaço a serem exploradas, pessoas a serem recebidas, escutadas, despistadas, encorajadas. Sempre que chegavam essas ocasiões, Pitt se permitia o luxo maior, luxo inexaurível, o luxo da autopiedade. Não que a vida não lhe tivesse feito justiça. Havia muitos anos que pretendia tornar-se Comissário, porque achava que ninguém era capaz de governar Rotor tão bem quanto ele; agora, que era Comissário, ainda pensava assim. Mas por que, entre todos os habitantes de Rotor, não podia encontrar ninguém capaz de enxergar a verdade a longo prazo? Fazia quatorze anos que haviam partido, e ninguém ainda era capaz de ver o inevitável, nem mesmo depois que explicava com toda a paciência. Um dia, lá no Sistema Solar, em um futuro não muito distante, alguém inventaria a propulsão hiperespacial, como os técnicos de Rotor tinham inventado. Talvez fosse uma versão ainda melhor. Um dia, a humanidade partiria dos seus milhares de colônias, com seus bilhões de pessoas, para colonizar a Galáxia. Seria um dia perigoso. Sim, a Galáxia era enorme. Quantas vezes tinha ouvido essa afirmação? Além disso, havia outras galáxias. Entretanto, a humanidade não se espalharia por igual. Sempre, sempre haveria outros sistemas estelares que, por um motivo ou por outro, seriam melhores que outros sistemas estelares, e seria em torno dos primeiros que se travariam todas as disputas. Se houvesse dez sistemas estelares e dez grupos de colonos, todos os dez grupos brigariam por um único sistema. Mais cedo ou mais tarde, descobririam Nêmesis e enviariam colonizadores. Nesse caso, como Rotor poderia sobreviver? A única esperança era de que Rotor ganhasse o máximo de tempo possível, desenvolvesse uma civilização forte e se expandisse consideravelmente. Se dispusessem de tempo suficiente, poderiam colonizar um grupo de estrelas. Se não, teriam de contentar-se com Nêmesis… mas teriam que torná-la inexpugnável. Pitt não sonhava conquistar o universo, não sonhava com nenhum tipo de conquista. O que queria era uma ilha de tranqüilidade e segurança para o dia em que a Galáxia se incendiasse em conseqüência do choque de ambições. Entretanto, ele era o único a ver as coisas dessa maneira. Era o único a sentir o peso da responsabilidade. Poderia viver outro quarto de século e poderia permanecer no poder durante todo esse tempo, fosse como Comissário, fosse como conselheiro. Um dia, porém, teria que morrer… e a quem poderia legar sua visão de longo prazo? Foi então que Pitt sentiu uma ponta de autopiedade. Havia trabalhado durante tantos anos, trabalharia durante tantos mais, e no entanto ninguém apreciava seus esforços. E um dia tudo chegaria ao fim, porque o Ideal seria afogado em um oceano de mediocridade que constantemente lambia os tornozelos dos poucos que podiam pensar em alguma coisa que não fosse o futuro imediato. Fazia quatorze anos que tinham partido e jamais conseguira sentir-se plenamente confiante. Ia dormir toda noite com a sensação de que seria acordado antes do amanhecer com a notícia que outros colonos haviam chegado, ou seja, que Nêmesis havia sido descoberta. Passava todos os dias com uma parte oculta do ser sem prestar atenção ao que estava escrito na agenda, mas à espera das palavras fatais. Quatorze anos e ainda não estavam seguros. Só tinha sido fundada mais uma colônia: Novo Rotor. Havia pessoas morando lá, mas era um mundo novo, naturalmente. Ainda cheirava a tinta, como dizia o velho ditado. Três outras colônias estavam em diferentes estágios de construção. Em pouco tempo, menos de dez anos, o número de colônias em construção aumentaria, e elas receberiam a mais antiga de todas as ordens: Crescei e multiplicai-vos! Com o exemplo da Terra diante dos olhos, com o conhecimento de que cada colônia tinha uma capacidade limitada, a procriação no espaço tinha sempre sido sujeita a um rígido controle. Ali, as necessidades irremovíveis da aritmética tiveram que enfrentar a força supostamente irresistível do instinto e as necessidades ganharam. Entretanto, quando o número de colônias aumentasse, chegaria a hora em que teriam necessidade de mais pessoas, muitas mais, e as forças para produzir essas pessoas poderiam ser liberadas. Seria temporário, naturalmente. Por maior que fosse o número de colônias, poderiam ser ocupadas rapidamente por uma população capaz de dobrar de tamanho a cada trinta e cinco anos ou menos. E quando chegasse o dia em que a taxa de aumento do numero de colônias passasse por um ponto de inflexão e começasse a diminuir, poderia ser muito mais difícil guardar o gênio de volta na garrafa do que tinha sido soltá-lo. Quem cuidaria dessas questões com antecedência, quem prepararia as colônias para os novos tempos depois que Pitt se fosse? Havia também Eritro, o planeta em torno do qual Rotor girava de tal forma que o grande Megas e a vermelha Nêmesis nasciam e se punham em configurações complexas. Eritro! Desde o Começo, Eritro tinha sido uma incógnita. Pitt se lembrava bem dos primeiros dias que haviam passado no Sistema Nemesiano. A complexidade da família de planetas havia se revelado aos poucos, enquanto Rotor se aproximava da anã vermelha. Megas tinha sido descoberto a uma distância de quatro milhões de quilômetros de Nêmesis, apenas um quinze avos da distância entre Mercúrio e o Sol do Sistema Solar. Megas recebia mais ou menos a mesma quantidade de energia que a Terra recebia do Sol, mas com uma intensidade menor de luz visível e uma intensidade maior de infravermelho. Megas, porém, era claramente inabitável, mesmo à primeira vista. Tratava-se de um gigante gasoso, com um dos lados sempre voltado para Nêmesis. Os períodos de rotação e revolução eram ambos iguais a vinte dias da Terra. A noite perpétua em metade de Megas resfriava apenas moderadamente a superfície, já que o calor interno era grande. No lado iluminado, o calor era insuportável. Megas só era capaz de conservar a atmosfera por- que, com uma massa maior e um raio menor que o de Júpiter, a gravidade era quinze vezes maior que a de Júpiter e quarenta vezes maior que a da Terra. Nêmesis não tinha nenhum outro planeta de grande tamanho. Quando Rotor se aproximou de Megas, porém, a situação novamente se modificou. Foi Eugenia Insigna quem levou a notícia a Pitt. Não que ela tivesse realizado pessoalmente a descoberta. Ela simplesmente aparecera nas fotografias reforçadas por computador e tinha sido comunicada a Insigna porque ela era a diretora do Observatório. Ela começou com simplicidade, mantendo a voz firme, embora estivesse tremendo de emoção. — Megas tem um satélite — disse Insigna. Pitt levantou ligeiramente as sobrancelhas e depois perguntou: — Isso não era de se esperar? Os gigantes gasosos do Sistema Solar têm muitos satélites. — É claro, Janus, mas este não é um satélite comum. É grande. Pitt não se abalou. — Júpiter tem quatro satélites grandes. — Grande de verdade… quase do tamanho da Terra. — Entendo. Interessante. — É mais que isso. Muito mais que isso, Janus. Se este satélite girasse diretamente em torno de Nêmesis, as forças gravitacionais fariam com que uma face ficasse sempre voltada para Nêmesis, o que o tornaria inabitável. Em vez disso, um lado está sempre voltado para Megas, que é muito mais frio que Nêmesis. Além do mais, a órbita do satélite é inclinada em relação ao equador de Megas. Isto significa que no céu do satélite, Megas é visto de apenas um hemisfério e se move para o norte e para o sul com um ciclo de cerca de um dia, enquanto Nêmesis atravessa o céu, nascendo e se pondo, também com um ciclo de um dia. Um dos hemisférios tem doze horas de escuridão e doze horas de luz. No outro hemisfério, durante o dia, Nêmesis é freqüentemente eclipsado, até por meia hora, embora a temperatura não caia muito, pois Megas irradia bastante infravermelho. Durante a noite, nesse hemisfério, a luz refletida de Megas ajuda a diminuir a escuridão. — Então o satélite tem um céu interessante. Os astrônomos vão gostar. — Não é apenas uma curiosidade astronômica, Janus. É possível que a temperatura do satélite seja adequada para a vida como a conhecemos. Talvez seja um mundo habitável. Pitt sorriu. — Mais interessante ainda. Mas as cores nesse satélite seriam bem diferentes das cores a que estamos acostumados, não é? Insigna fez que sim com a cabeça. — Tem razão. Teria um sol vermelho e um céu quase negro, porque não haveria luz azul para ser espalhada pela atmosfera. A superfície seria toda avermelhada, suponho. — Nesse caso, já que você batizou Nêmesis, e um dos seus assistentes batizou Megas, quero ter o privilégio de batizar o satélite. Vamos chamá-lo de Eritro, que, se bem me lembro, quer dizer “vermelho” em grego. Durante algum tempo, as notícias continuaram boas. Um cinturão de asteróides de tamanho respeitável foi descoberto em uma órbita mais distante que a do sistema Megas-Eritro; esses asteróides poderiam ser uma fonte preciosa de matérias-primas para construir novas colônias. Quando se aproximaram de Eritro, as condições do satélite começaram a parecer cada vez mais favoráveis. Eritro era um astro de terras e mares, embora seus mares, de acordo com estimativas preliminares, parecessem ser mais rasos que os da Terra, e houvesse poucas montanhas nos continentes. Com base nos cálculos, Insigna declarou que o clima do planeta era perfeitamente apropriado para a vida humana. Dias mais tarde, quando se tornou possível estudar espectroscopicamente a atmosfera de Eritro, Insigna disse para ele: — A atmosfera de Eritro é um pouco mais densa que a da Terra e contém oxigênio livre: dezesseis por cento, mais cinco por cento de argônio. O resto é nitrogênio. Deve haver pequenas quantidades de dióxido de carbono, mas esse gás ainda não foi detectado. O importante é que Eritro possui uma atmosfera respirável. — As coisas estão ficando cada vez melhores — disse Pitt. — Quem teria imaginado tudo isto no dia em que você descobriu Nêmesis? — Melhores para os biólogos, você quer dizer. Talvez não tão boas para Rotor. A presença de oxigênio livre na atmosfera é uma indicação segura da presença de vida. — Vida? — repetiu Pitt, surpreso. — Vida — disse Insigna, extraindo um prazer mórbido do diálogo. — E se há vida, pode haver vida inteligente, talvez até uma civilização adiantada. O que se seguiu foi um pesadelo para Pitt. Não bastava viver com o medo de que os terráqueos o descobrissem e o depusessem; não, agora havia outro temor ainda maior. Podiam estar invadindo o território de uma civilização antiga e avançada, capaz de aniquilá-los em um momento de desagrado, como um humano poderia, sem pensar, um mosquito que zumbisse perto demais do seu ouvido. Enquanto continuavam a se aproximar de Nêmesis, Pitt disse a Insigna, com ar preocupado: — A presença de oxigênio significa necessariamente que existe vida em Eritro? — É uma questão de termodinâmica, Janus. Em um planeta semelhante à Terra — de acordo com nossos dados, Eritro é semelhante à Terra —, o oxigênio livre não pode existir, da mesma forma que em um campo gravitacional como o da Terra uma rocha não pode permanecer suspensa no ar sem nenhum apoio. Se houvesse oxigênio na atmosfera primordial, ele certamente se combinaria com os minerais da crosta, liberando energia no processo. Não, a única explicação para a existência de oxigênio livre é um mecanismo capaz de fornecer continuamente a energia necessária para regenerar o oxigênio livre. — Posso compreender isso, Insigna, mas por que esse mecanismo tem de envolver organismos vivos? — Porque não conhecemos nenhum mecanismo natural capaz de executar o trabalho, a não ser a fotossíntese das plantas verdes, que usam a energia solar para liberar oxigênio. — Quando você diz que “não conhecemos nenhum mecanismo natural”, está se referindo ao Sistema Solar. Este é outro Sistema, com um sol e um planeta diferentes, em condições diferentes. As leis da termodinâmica ainda se aplicam, mas que impede que haja algum processo químico que não encontramos no Sistema Solar e que está produzindo oxigênio livre em Eritro? — Se você gosta de apostar, não aposte nisso, Pitt. O que era necessário para esclarecer a questão eram provas, e Pitt teve de esperar que as provas aparecessem. Para começar, Nêmesis e Megas tinham campos magnéticos extremamente fracos. Isso já era esperado, pois tanto a estrela como o planeta giravam muito devagar. Eritro, com um período de rotação de vinte e três horas e dezesseis minutos (igual ao período de sua revolução em torno de Megas) tinha um campo magnético de intensidade semelhante ao da Terra. Insigna expressou sua satisfação. — Pelo menos não precisamos nos preocupar com os efeitos de radiação associados a campos magnéticos intensos, especialmente porque o vento estelar de Nêmesis deve ser bem mais fraco que o do Sol. Isso é bom, porque significa que poderemos detectar a presença ou ausência de vida em Eritro de uma distância prudente. Vida tecnológica, quero dizer. — Como assim? — perguntou Pitt. — É pouco provável que uma civilização tecnologicamente avançada possa dispensar o uso de ondas de rádio, que se irradiariam em todas as direções a partir de Eritro. Já que o campo magnético é fraco, a radiação natural é pequena, de modo que uma análise relativamente superficial das ondas de rádio que captarmos nos dirá se são ou não artificiais. — Talvez isso não seja necessário, Insigna. Estive pensando e cheguei à conclusão de que não é provável que Eritro abrigue uma civilização avançada, mesmo se levarmos em conta que existe oxigênio livre na atmosfera. — Verdade? Explique-me por quê. — Você não disse que o efeito maré faz com que Nêmesis, Megas e Eritro girem cada vez mais devagar? Não disse também que, em conseqüência, Megas se afastou de Nêmesis e Eritro se afastou de Megas? — Isso mesmo. — Nesse caso, no passado, Megas estava mais próximo de Nêmesis, e Eritro estava mais próximo de Megas e de Nêmesis, também. Isso significa que Eritro era quente demais mais há vi da. Talvez só se tenha tornado habitável há relativamente pouco tempo. Não haveria tempo suficiente para uma civilização avançada se desenvolver. Insigna riu. — Boa tentativa. Você tem uma imaginação e tanto… mas nesse caso está errado. As anãs vermelhas têm uma vida muito longa; talvez Nêmesis tenha se formado quando o Universo ainda era jovem… há quinze bilhões de anos, digamos. O efeito maré seria muito grande a princípio, quando os astros estavam próximos, e a maior parte do afastamento pode ter ocorrido nos primeiros três ou quatro bilhões de anos. O efeito maré diminui com o cubo da distância e, nos últimos dez bilhões de anos, não deve ter havido grandes mudanças. Assim, haveria tempo de sobra para várias civilizações tecnológicas se desenvolverem, uma após outra. Não, Janus, não vamos especular. Vamos esperar e ver se podemos ou não detectar ondas de rádio. …Continuaram a se aproximar de Nêmesis. Agora era um pequeno disco vermelho visível a olho nu. Perto dela, Megas aparecia como um pontinho avermelhado. Ao telescópio, aparecia em quarto crescente, graças ao ângulo que fazia com Rotor e com Nêmesis. Eritro também podia ser visto ao telescópio, como um ponto vermelho-escuro. O ponto que era Eritro foi ficando mais brilhante com o tempo. — Boas notícias para você, Janus. Até agora, não captamos nenhum sinal de rádio que pareça ser de origem artificial. — Ótimo! — Pitt sentiu uma onda de alívio passar pelo seu corpo. — É cedo para comemorar. Eles podem usar menos ondas de rádio do que esperamos. As transmissões podem ser direcionais. Pode ser até que usem outra coisa em lugar de ondas eletromagnéticas. Pitt sorriu ironicamente. — Está falando serio, Insigna? Insigna deu de ombros. — Porque se você gosta de apostar, não aposte nisso, Insigna. …Estavam ainda mais próximos de Nêmesis. Eritro agora era um grande disco a olho nu, próximo a Megas. Nêmesis estava do outro lado da colônia. Rotor havia ajustado sua velocidade para entrar em órbita em torno de Eritro, que, visto ao telescópio, exibia nuvens semelhantes às da Terra. — Não há luzes no lado escuro de Eritro. A notícia deve lhe agradar, Janus. — A ausência de luz não é compatível com uma civilização tecnológica, suponho. — Claro que não é. — Deixe-me bancar o advogado do diabo, Insigna. Com um sol vermelho e muito fraco, uma civilização também não produziria luzes artificiais muito fracas? — Poderiam ser fracas da região visível, mas a radiação de Nêmesis é intensa no infravermelho e as luzes artificiais provavelmente também seriam. As radiações infravermelhas que estamos detectando são apenas as geradas pelo próprio planeta. São praticamente uniformes em toda a superfície, enquanto que as luzes artificiais se concentrariam nas regiões mais populosas. — Então esqueça, Eugenia — disse Pitt, com entusiasmo. — Não existe nenhuma civilização tecnológica! Talvez isso torne Eritro menos interessante sob certos aspectos, mas é preferível não termos que enfrentar uma raça igual à nossa ou talvez até superior. Imagine se eles nos expulsassem daqui. Teríamos que sair pela Galáxia à procura de outro sistema… — Resta o fato de que existe muito oxigênio na atmosfera de Eritro, o que é sinal de vida. O que está faltando é uma civilização tecnológica. Vamos ter de descer e estudar as formas de vida. — Por quê? — Ainda pergunta, Janus? Estamos diante de uma vida que se desenvolveu independentemente da vida na Terra. Que tesouro Para os biólogos! — Entendo. Você está falando de curiosidade científica. Bem, as formas de vida não vão fugir de lá, suponho. Haverá tempo para isso mais tarde. Temos coisas mais importantes para fazer. — Que pode ser mais importante do que estudar uma forma de vida totalmente nova? — Eugenia, seja razoável. Temos que nos instalar aqui. Precisamos construir outras colônias. Precisamos criar uma sociedade, a sociedade mais ordeira, produtiva, organizada e pacífica que jamais existiu! — Para isso, vamos precisar de matérias-primas, o que novamente nos leva a Eritro, onde teremos de estudar as formas de vida… — Não, Eugenia. Pousar em Eritro e decolar de novo seria muito dispendioso no momento. A intensidade dos campos gravitacionais de Eritro e de Megas — não se esqueça de Megas — já é grande aqui onde estamos, no espaço, que dizer na superfície de Eritro. Um dos técnicos fez os cálculos para mim. Vamos gastar um bocado de energia para conseguir as matérias-primas no cinturão de asteróides, mas será mais fácil do que em Eritro. Na verdade, se nos instalarmos no cinturão de asteróides, tudo ficará mais fácil. O lugar certo para construir as colônias é o cinturão de asteróides. — Está dizendo que devemos ignorar Eritro? — Apenas temporariamente, Eugenia. Quando formos mais fortes, depois que renovarmos nossas fontes de energia, quando estivermos bem instalados, estará na hora de estudar as formas de vida de Eritro ou, talvez, sua química exótica. — Pitt sorriu para Insigna. Em sua opinião, a questão de Eritro devia ser adiada para o futuro remoto. Se o planeta não abrigava uma sociedade tecnológica, as outras formas de vida podiam esperar. Os terráqueos que os perseguiam eram o verdadeiro inimigo. Por que os outros não podiam ver o que tinha de ser feito? Por que os outros se deixavam distrair tão facilmente por questões secundárias? Como poderia se dar ao luxo de morrer um dia e deixar aqueles tolos desprotegidos? DEZ PERSUASÃO De modo que agora, doze anos depois da descoberta de que não existia nenhuma civilização tecnológica em Eritro, doze anos durante os quais nenhum bando de terráqueos aparecera de repente para arrasar o novo mundo que estava sendo construído, Pitt podia apreciar aqueles raros momentos de repouso. E no entanto, mesmo nesses raros momentos, as dúvidas o incomodavam. Talvez Rotor estivesse em melhor situação se tivesse seguido o plano original de se mudar para o cinturão de asteróides, se não tivessem permanecido em órbita em torno de Eritro, se o Domo em Eritro não tivesse sido construído. Estava recostado na cadeira macia, sustentado pelos campos de força, a aura de tornando-o sonolento, quando ouviu o leve zumbido que o fez voltar relutantemente à realidade. Abriu olhos (não havia percebido que estavam fechados) para olhar para a pequena tela na parede oposta. Um toque em um botão transformou a imagem em tridimensional. Era Semyon Akorat, naturalmente. Ali estava ele, com sua cabeça lisa como uma bola de bilhar (Akorat raspava a penugem que lhe restava, achando, com uma certa razão, que uns poucos fios de cabelo serviriam apenas para tornar a calva ainda mais patética, enquanto que um crânio bem feito, totalmente à mostra, poderia parecer quase majestoso.) Ali estava, também, com seus olhos preocupados, que sempre pareciam preocupados, mesmo quando não havia nenhum motivo de preocupação. Pitt o achava desagradável, não porque fosse desleal ou pouco eficiente (era um excelente auxiliar), mas em conseqüência de um reflexo condicionado que havia adquirido. A presença de Akorat sempre representava uma invasão da privacidade de Pitt, uma interrupção dos seus pensamentos, uma necessidade de fazer o que não queria. Em suma: Akorat estava encarregado de controlar as audiências com Pitt; era ele quem dizia quem podia vê-lo e quem não podia. Pitt franziu a testa. Não se lembrava de ter marcado uma audiência para aquele dia, mas era comum se esquecer; para isso existia Akorat. — Quem é? — perguntou, em tom resignado. — Ninguém importante, espero. — Não, não é ninguém importante — disse Akorat. — Mesmo assim, acho que o senhor devia recebê-la. — Ela está me ouvindo? — Comissário! — exclamou Akorat, indignado, como se estivesse sendo acusado de faltar com o dever. — Claro que não! Ela está do outro lado da tela! Akorat tinha uma maneira precisa de falar que agradava a Pitt. Não havia como interpretá-lo erradamente. — Uma mulher? Deve ser a Dra. Insigna. Siga minhas instruções. Ninguém pode falar comigo sem hora marcada. Não estou com vontade de vê-Ia, Akorat. Invente uma desculpa. Diga que estou meditando… não, ela não vai acreditar… diga que… — Comissário, não é a Dra. Insigna. Se fosse, eu não o teria incomodado. É… é a filha dela. — A filha dela? — Por um momento, ele tentou se lembrar do nome. — Você quer dizer Marlene Fisher? — Isso mesmo. Naturalmente, avisei a ela que o senhor estava ocupado, mas ela disse que eu devia ter vergonha de mentir, porque podia ver pela minha expressão que era mentira, e que além disso minha voz estava tensa demais para quem suposta mente está dizendo a verdade — recitou, com indignação de barítono — Seja como for, ela se recusa a sair. Insiste em dizer que o senhor a receberá se souber quem está esperando. Vai falar com ela, Comissário? Francamente, aqueles olhos dela me dão arrepios. — Acho que ouvi falar desses olhos. Mande-a entrar, mande-a entrar, vou tentar sobreviver aos olhos da mocinha. Pensando bem, ela me deve algumas explicações. Marlene entrou. (Parece muito segura de si, pensou Pitt, embora sem nenhuma arrogância.) Ela se sentou, com as mãos pousadas no colo, e esperou que Pitt falasse primeiro. Ele a deixou esperar por alguns momentos, enquanto a examinava com os olhos. Ele a havia visto ocasionalmente quando era mais jovem, mas fazia algum tempo que não a encontrava. Não tinha sido uma criança bonita e não era uma jovem bonita. Tinha as maçãs do rosto muito largas e uma certa falta de graciosidade, mas os olhos eram lindos, com sobrancelhas bem-feitas e longas pestanas. — Muito bem, Srta. Fisher, soube que deseja me ver. Posso saber a razão? Marlene olhou para ele. Parecia inteiramente à vontade. — Comissário Pitt, minha mãe deve ter lhe contado que eu disse a um amigo meu que a Terra vai ser destruída. — Sim, ela me contou. E espero que tenha dito a você que não deve estar espalhando essas tolices por aí. — Sim, ela me disse, Comissário, mas o fato de eu parar de falar não significa que não vá acontecer, e o fato de chamar de tolice não significa que seja uma tolice. — Sou o Comissário de Rotor, Srta. Fisher, e é meu dever me interessar por esses assuntos. Sendo assim, deve deixar inteiramente por minha conta a tarefa de decidir o que vai e o que não vai acontecer, o que é tolice e o que não é. De onde tirou a idéia de que a Terra vai ser destruída? Foi alguma coisa que sua mãe lhe disse? — Não diretamente, Comissário. — Mas ela lhe disse indiretamente, não foi? — De forma totalmente involuntária, Comissário. Todo mundo revela o que está pensando de muitas maneiras. Pela escolha das palavras. Pela entonação. Pela expressão corporal. Pelo olhar. Por pequenos maneirismos. Mil coisas. Está me entendendo? — Perfeitamente. Eu mesmo presto muita atenção nessas coisas. — E se sente orgulhoso por isso, Comissário. Acha que é muito observador, e essa é uma das razões pelas quais se tornou Comissário. Pitt pareceu surpreso. — Eu não disse isso, mocinha. — Não em palavras, Comissário. Não foi preciso. — Seus olhos estavam fixos nos de Pitt. Não havia sinal de sorriso no seu rosto, mas os olhos pareciam divertir-se com a situação — Foi para isso que veio me ver, Srta. Fisher? — Não, Comissário. Vim porque minha mãe não tem conseguido chegar à sua presença ultimamente. Não, ela não me contou. Apenas descobri. Achei que talvez me recebesse. — Muito bem, você está aqui. Que foi que veio me dizer? — Que minha mãe está sofrendo muito com a possibilidade de que a Terra seja destruída. Meu pai vive lá, o senhor sabe. Pitt sentiu um pequeno espasmo de raiva. Como podia uma questão puramente pessoal interferir com o bem-estar de Rotor e de tudo que poderia tornar-se no futuro? Essa Insigna, apesar de ter sido a descobridora de Nêmesis, vinha sendo havia muito tempo uma pedra no sapato, com sua mania de sempre escolher o caminho errado. Agora, que se recusava a vê-la, passava a mandar a filha. — Você acha que essa destruição de que está falando vai ocorrer amanhã ou no ano que vem? — Não, Comissário, sei que vai acontecer daqui a pouco menos que cinco mil anos. — Nesse caso, seu pai já estará morto há muito tempo, como sua mãe, eu e você. Mesmo depois que nós todos morrermos, ainda vão faltar quase cinco mil anos para a destruição da Terra e possivelmente de outros planetas do Sistema Solar… se essa destruição vier a ocorrer. — É a idéia que importa, Comissário. — Sua mãe deve ter lhe contado que muito antes de chegar a hora, a população do Sistema Solar terá consciência da… da coisa que você pensa que vai acontecer, e tomará as devidas providências. Além disso, a destruição de um planeta é coisa natural. Mesmo que não haja colisões cósmicas, toda estrela tem que passar por um estágio de gigante vermelha e destruir seus planetas. Assim como todos os seres humanos morrem um dia, os planetas também morrem. O tempo de vida dos planetas é um pouco maior, mas isso é tudo. Você entende o que estou dizendo, mocinha? — Entendo, sim — disse Marlene, muito séria. — Tenho um bom relacionamento com o meu computador. (Aposto que sim, pensou Pitt, e depois — tarde demais — tentou disfarçar o sorriso irônico que acompanhara o pensamento. Provavelmente, ela o usaria para interpretar sua atitude.) — Então chegamos ao final de nossa conversa — disse para ela, em tom decidido. — Essa história de destruição é tolice, e mesmo que não fosse, não tem nada a ver com você. Não volte a tocar no assunto, ou você e sua mãe também estarão com sérios problemas. — Ainda não chegamos ao final de nossa conversa, Comissário. Pitt sentiu que estava prestes a perder a paciência, mas disse, com muita calma: — Minha cara Srta. Fisher, quando o Comissário diz que é o final, é o final… independente do que você pense. Ele fez menção de se levantar, mas Marlene continuou onde estava. — Porque quero lhe oferecer uma coisa que o senhor deseja ardentemente. — O quê? — Livrar-se de minha mãe. Pitt deixou-se cair na cadeira, genuinamente intrigado. — Que quer dizer com isso? — Se me escutar, Comissário, explicarei ao senhor. Minha mãe não pode continuar a viver assim. Está preocupada com a Terra e o Sistema Solar e… e às vezes pensa no meu pai. Acha que Nêmesis pode ser a Nêmesis do Sistema Solar e já que foi ela que batizou a estrela, sente-se responsável. Ela é uma pessoa muito emotiva, Comissário. — Você notou isso, também? — E ela incomoda o senhor. De vez em quando, lembra ao senhor assuntos que preferia esquecer, e é por isso que se recusa a vê-la, Começa a desejar que ela fosse embora. Pois o senhor pode mandá-la embora, Comissário. — Verdade? Temos outra colônia. Devo mandá-la para Novo Rotor? — Não, Comissário. Mande-a para Eritro. — Eritro Por que deveria mandá-la para lá? Só porque quero livrar-me dela? — Essa seria a sua razão. Sim, Comissário. Entretanto, não seria a minha. Quero que minha mãe vá para Eritro porque ela não consegue mais trabalhar no Observatório. Os instrumentos estão sempre em uso e ela se sente vigiada todo o tempo. Além disso, Rotor não é um bom lugar para fazer observações precisas. Seus movimentos são muito rápidos e irregulares. — Você parece saber de tudo Sua mãe lhe explicou isso? Não, não me diga. Ela não lhe contou diretamente, não foi? Apenas indiretamente. — Sim, Comissário. E há também o meu computador. — Aquele com quem você mantém um bom relacionamento? — Sim, Comissário. — Então você acha que ela poderá trabalhar melhor em Eritro. — Sim, Comissário. Será uma base mais estável, e talvez ela consiga obter dados que a convençam de que o Sistema Solar não corre perigo. Mesmo que descubra o contrário, levará muito tempo para ter certeza, e durante todo esse período o senhor estará livre dela. — Vejo que quer livrar-se dela também, não é? — Não senhor — disse Marlene, muito séria. — Eu iria com ela. O senhor se livraria de mim, também, o que lhe agradaria ainda mais do que livrar-se dela. — Que a faz pensar que quero me livrar de você, também? Marlene olhou-o fixamente, sem piscar. — Agora o senhor quer, Comissário, porque sabe que não tenho nenhuma dificuldade para conhecer seus sentimentos mais profundos. De repente, Pitt sentiu uma necessidade desesperada de livrar-se daquele monstro. — Deixe-me pensar no assunto — disse para a moça, virando a cabeça. Sentiu que estava sendo infantil em esconder o rosto, mas não queria que aquela jovem horrível lesse suas expressões como se fossem um livro aberto. Afinal de contas, era verdade. Ele queria livrar-se tanto da mãe como da filha. Já havia pensado várias vezes em exilar Insigna para Eritro. Entretanto, como achava que Insigna se recusaria a ir e não estava disposto a enfrentar uma longa discussão, deixara as coisas como estavam. Agora, porém, a filha lhe havia dito que Insigna queria ir para Eritro, o que fazia as coisas mudarem de figura. — Se sua mãe realmente quiser ir… — Ela quer, sim, Comissário. Não falou diretamente comi- talvez ainda nem saiba conscientemente, mas ela quer ir, sim. Eu sei disso. Confie em mim. — Eu tenho escolha? E você, quer ir também? — Quero muito, Comissário. — Então vou tomar as providências necessárias. Isso atende ao seu pedido? — Sim, Comissário. — Então vamos dar a nossa conversa por encerrada? Marlene se levantou e baixou a cabeça em uma reverência pouco graciosa, presumivelmente com a intenção de demonstrar respeito. — Obrigada, Comissário. — Deu-lhe as costas e saiu. Só depois de alguns minutos foi que Pitt se atreveu a desfazer a máscara que havia mantido no rosto com tanta força que chegava até a doer. Não podia permitir que a moça descobrisse, pela sua expressão, a verdade que apenas ele e uma outra pessoa conheciam a respeito de Eritro. ONZE ÓRBITA As horas livres de Pitt haviam terminado, mas ele não queria que terminassem. Mandou cancelar as audiências da tarde. Precisava de tempo para pensar. Especificamente, queria pensar a respeito de Marlene. A mãe dela, Eugenia Insigna Fisher, era um problema; na verdade, um problema que havia aumentado durante os últimos doze anos. Pessoa muito emotiva, freqüentemente deixava-se levar por impulsos. Entretanto, era um ser humano; podia ser conduzida e controlada; podia ser mantida em seu lugar pelas barreiras da lógica; e embora às vezes se sentisse inquieta, não fazia nenhum esforço para demolir essas barreiras. Com Marlene, era diferente. Pitt não tinha dúvida de que se tratava de um monstro; ainda bem que se revelara a ele por uma razão tão trivial quanto ajudar a mãe. Só podia atribuir esse deslize ao fato de ser ainda inexperiente; nada seria mais fácil do que manter seus poderes ocultos até poder usá-los de forma realmente devastadora. Entretanto sabia que, com a idade, ela se tornaria cada vez mais perigosa, de modo que era preciso detê-la já. Para isso, contaria com a ajuda de outro monstro: Eritro. Pitt havia reconhecido desde o início que Eritro era um monstro. Estava na sua expressão sinistra, na sua face escarlate que era um reflexo da cor de Nêmesis. Quando chegaram ao cinturão de asteróides, cento e sessenta milhões de quilômetros além da órbita na qual Megas e Eritro giravam em torno de Nêmesis, Pitt havia dito, com confiança: “É este o lugar.” Não antecipava nenhum problema. Era a solução mais racional. Pouca luz e calor de Nêmesis chegavam ao cinturão de asteróides. A perda de luz e calor natural não queria dizer nada, já que Rotor dispunha de geradores de microfusão. Na verdade, podia ser uma vantagem. A luz vermelha de Nêmesis servia apenas para deixar as pessoas deprimidas. Além disso, estariam em uma região do espaço na qual os efeitos gravitacionais de Nêmesis e Megas seriam menos intensos, de modo que gastariam menos energia em manobras. Seria mais fácil obter matérias-primas dos asteróides, e, considerando a luz fraca que chegava de Nêmesis, aqueles pequenos astros deviam conter muitas substâncias voláteis. A localização ideal! Mesmo assim, a população de Rotor decidiu, por maioria esmagadora, que a colônia deveria ser colocada em órbita em torno de Eritro, ignorando os argumentos de Pitt de que passariam o resto de suas vidas banhados naquela deprimente luz vermelha, de que ficariam sujeitos à atração gravitacional tanto de Megas como de Eritro, de que talvez ainda tivessem que ir buscar algumas matérias-primas nos asteróides. Pitt discutiu o assunto, irritado, com Tambor Brossen, o ex- Comissário, a quem havia sucedido no cargo. Brossen, um homem velho e cansado, estava apreciando muito mais seu novo posto de conselheiro do que jamais havia apreciado ser Comissário. (Diziam também que não compartilhava do gosto de Pitt de tomar decisões.) Brossen tinha achado graça da preocupação de Pitt com a localização da colônia. Não de uma forma agressiva, mas de um jeito quase paternal. — Não há necessidade, Janus, de que os habitantes de Rotor concordem com você em tudo. Faça a vontade deles de vez em quando; assim, estarão mais dispostos a atendê-lo em outras ocasiões. Se querem ficar em órbita em torno de Eritro, que assim seja. — Mas isso não faz sentido, Tambor. Você não entende? — Claro que entendo. Também entendo que Rotor sempre esteve em órbita em torno de um planeta, e não de uma estrela. É isso que parece correto para os rotorianos e é isso que querem. — Estávamos em órbita em torno da Terra. Eritro não é a Terra; Eritro não é nem ao menos um planeta. — É um mundo mais ou menos do mesmo tamanho que a Terra. Tem mares e continentes. Tem uma atmosfera com oxigênio. Poderíamos viajar milhares de anos-luz sem encontrarmos um planeta parecido com a Terra. Vou insistir: faça a vontade deles. Pitt havia seguido o conselho de Brossen, embora alguma coisa dentro dele lhe dissesse que estava fazendo a coisa errada. Novo Rotor também estava em órbita em torno de Eritro e havia mais duas colônias em construção. Naturalmente, colônias no cinturão de asteróides também estavam nas pranchetas, mas era evidente que a população não tinha pressa alguma para colocar esses projetos em execução. De tudo que acontecera desde a descoberta de Nêmesis, Pitt considerava aquilo o maior erro que haviam cometido. Não deviam ter colocado Rotor em órbita em torno de Eritro. No entanto… no entanto… como poderia impor sua vontade aos rotorianos? Deveria ter sido mais insistente? Isso não teria simplesmente levado a uma nova eleição e a sua destituição do cargo? O maior problema era a nostalgia. As pessoas gostavam de olhar para trás, e Pitt nem sempre conseguia fazê-las virar a cabeça e olhar para a frente. O caso de Brossen era típico… Brossen havia falecido sete anos antes, e Pitt estivera presente no seu leito de morte. Fora o único a ouvir as últimas palavras do velho. Brossen havia feito um gesto para Pitt, pedindo que se aproximasse. Segurara-lhe o braço com uma mão trêmula, a pele seca como papel. Murmurara debilmente: — Como era bonito o Sol da Terra! Assim, só porque os rotorianos não podiam se esquecer de que o Sol era bonito e de que a Terra era azul, contrariavam todos os argumentos lógicos de Pitt e exigiam que Rotor fosse colocado em órbita em torno de um mundo que não era azul e que girava em torno de uma estrela que não era bonita. Com isso, o programa da colônia sofrera um atraso de dez anos. Estariam dez anos à frente se tivessem colocado Rotor no cinturão de asteróides. Pitt tinha certeza disso. Era o suficiente para que Pitt detestasse Eritro, mas, na verdade, havia mais… muito mais. DOZE ÓDIO Na verdade, Crile Fisher não foi responsável apenas pela primeira informação que a Terra recebeu de que havia alguma coisa de estranho no destino de Rotor; a segunda pista também pode ser atribuída a ele. Já estava na Terra havia quase dois anos, e Rotor ocupava um lugar cada vez menor em seus pensamentos. Eugenia Insigna era uma lembrança um tanto confusa; afinal, o que sentira por ela? Marlene, porém, só lhe trazia amargura. Na memória, não conseguia separá-la de Roseanne. Em sua mente, a filha de um ano e a irmã de dezessete se haviam fundido em uma única personalidade. A vida não era difícil. Estava recebendo uma pensão generosa. Tinham até mesmo arranjado um trabalho para ele, um cargo administrativo no qual ocasionalmente era chamado a tomar decisões sem importância real. Eles o haviam perdoado, pelo menos em parte, pensou, porque se havia lembrado daquele comentário de Eugênia: “Se você soubesse para onde estamos indo…” Mesmo assim, tinha a impressão de que o mantinham sob vigilância o que não lhe agradava nem um pouco. Wyler aparecia uma vez ou outra, sempre amigável, sempre inquisitivo, sempre trazendo à baila o assunto de Rotor. De fato, era o que estava fazendo no momento, como Fisher esperava que fizesse. Fisher amarrou a cara e disse: — Já faz quase dois anos. Que é que vocês querem de mim? Wyler sacudiu a cabeça. — Não sei exatamente, Crile. Tudo que temos é aquela observação da sua mulher. É muito pouco. Ela deve ter dito mais alguma coisa em todos os anos que passaram juntos. Pense nas conversas que tiveram. Não se lembra de nada a respeito do destino de Rotor? — Esta é a milésima vez que você me pergunta, Garand. Fui interrogado. Fui hipnotizado. Fui submetido a uma sonda mental. Não encontraram nada. Deixem-me em paz. Ou então, ponham-me de volta no meu antigo emprego. Existem centenas de colônias no espaço, com amigos trocando confidências e espiões espionando. Quem sabe o que algum deles pode saber? Talvez nem tenha consciência de que sabe. — Para ser franco, meu amigo, estamos trabalhando nesse sentido, também temos nos concentrado na Sonda Profunda. É óbvio que Rotor descobriu alguma coisa que ainda não conhecemos. Ainda não lançamos uma Sonda Profunda. Nem nós, nem nenhuma colônia, exceto Rotor. Assim, é provável que o que os rotorianos descobriram esteja nos dados da Sonda Profunda. — Ótimo. Examine esses dados. Deve haver dados suficientes para mantê-lo ocupado durante muitos anos. Quanto a mim, deixem-me em paz. Todos vocês. — Tem razão. Os dados são suficientes para nos manter ocupados durante muitos anos. Rotor nos forneceu esses dados, através do Acordo de Intercâmbio Científico. Em particular, temos fotografias de campos estelares em vários comprimentos de onda. As câmaras da Sonda Profunda podiam alcançar quase todas as regiões do céu. Estamos examinando essas fotografias há vários meses, mas não encontramos nada de interessante. — Nada? — Até agora, nada, mas, como você disse, o volume de dados é imenso. Claro que já temos algumas descobertas que fizeram brilhar os olhos dos nossos astrônomos. Elas os manterão felizes e ocupados durante muito tempo, mas não é nada que possa nos ajudar na questão principal, que é: para onde foi Rotor? Nada, até agora. Não há nada, por exemplo, que nos leve a pensar que existem planetas em órbita em torno de uma das duas estrelas maiores do sistema de Alfa Centauri. Também não existem estrelas parecidas com o Sol em nossas vizinhanças que já não conhecemos. Pessoalmente, não espero encontrar nada de novo. Que é que a Sonda Profunda poderia observar que não podemos observar daqui do Sistema Solar? Ela só esteve a alguns meses-luz de distância. Não faria muita diferença. Mesmo assim, alguns de nós pensam que Rotor descobriu alguma coisa nos dados enviados pela Sonda Profunda. O que nos traz de volta a você. — Por que eu? — Porque sua ex-mulher era a diretora do projeto da Sonda Profunda. — Não exatamente. Ela só foi nomeada Astrônoma-Chefe depois que todos os dados já tinham sido colhidos. — Antes disso, já participava do projeto. Comentou alguma coisa com você a respeito dos resultados do projeto? — Nada. Ei, você disse que as câmaras da Sonda Profunda podiam alcançar quase todas as regiões do céu? — Isso mesmo. — Que quer dizer “quase todas”? — Não estou em condições de lhe fornecer números exatos. Calculo que, no mínimo, noventa por cento do céu. — Pode ser mais? — Pode ser mais. — Fico pensando… — O quê? — Em Rotor, quem mandava era um sujeito chamado Pitt. — Sabemos disso. — Mas acho que sei o que ele faria. Ele forneceria os dados da Sonda Espacial um pouquinho de cada vez, apenas para não dizermos que estava deixando de cumprir o Acordo de Intercâmbio Científico. Até a data prevista para a partida de Rotor, não haveria tempo para que nos entregasse parte dos dados, dez por cento ou menos. Nesses dez por cento ou menos estaria o que provavelmente interessa. — Você quer dizer a parte que nos diz para onde foi Rotor? — Talvez. — Só que não a temos. — Claro que têm. — Como assim? — Agora mesmo você estava dizendo que não havia nada que a Sonda profunda poderia fotografar que não fosse visível do Sistema Solar. Então para que perder tempo com o material que eles nos mandaram? Examine, em nossos mapas, a parte do céu cujas fotografias eles não mandaram. Pergunte-se se há nessa região alguma coisa que poderia parecer diferente do ponto de vista da Sonda profunda… e por quê. É isso que eu faria. Entendeu? — É um tiro no escuro — disse Wyler, com ar pensativo. — Não, não é. Trata-se de uma conclusão perfeitamente lógica. Ponha um funcionário competente para examinar os mapas, e pode ser que consigam chegar a alguma conclusão interessante. — Vamos ver — disse Wyler, levantando-se. Estendeu a mão para Fisher, que se recusou a apertá-la. Wyler tornou a aparecer alguns meses depois, e Fisher o recebeu de má vontade. Era dia de folga, e ele estava lendo um livro. Fisher não era uma dessas pessoas que consideram um livro como uma abominação do século XX, que consideram o vídeo como a única forma civilizada de cultura. Havia alguma coisa em segurar um livro, em virar as páginas, até mesmo na possibilidade de se perder em divagações a respeito do que acabara de ler, ou mesmo de cochilar, sem acordar sobressaltado e descobrir que o filme já estava cem páginas adiante ou mesmo já havia terminado. Fisher achava o livro mais civilizado os filmes. Por isso, ficou ainda mais irritado com a interrupção. — Que é, agora, Garand? — perguntou, com impaciência. Wyler não perdeu seu sorriso cordial. Disse, por entre os dentes: — Encontramos, exatamente como você havia previsto. — Encontraram o quê? — quis saber Fisher, sem se lembrar da última conversa. Depois, percebendo de que assunto o outro estava falando, acrescentou apressadamente: — Não me conte nada que eu não deva saber. Não quero ter mais nada a ver com o Escritório. — Tarde demais, Crile. Precisamos de você. Tanayama quer vê-lo pessoalmente — Quando? — O mais cedo possível. — Nesse caso, conte-me o que está acontecendo. Não quero ir falar com ele no escuro. — É o que pretendo fazer. Estudamos todas as regiões do céu cujas fotografias não foram enviadas por Rotor. Aparentemente, as pessoas que fizeram essa análise perguntaram a si próprias, como você sugeriu, o que é que as câmaras da Sonda Profunda podiam ver que não podia ser visto do ponto de vista do Sistema Solar. A resposta óbvia era um deslocamento das estrelas mais próximas, e depois que meteram isso na cabeça, os astrônomos encontraram uma coisa espantosa, uma coisa que ninguém esperava. — O quê? — Encontraram uma estrela muito apagada, com uma paralaxe de mais de um segundo de arco. — Não sou astrônomo. Isso é raro? — Isso quer dizer que a estrela fica a menos de metade da distância de Alfa Centauri. — Você disse “muito apagada”. — Está atrás de uma pequena nuvem de poeira. Escute, se você não é astrônomo, sua mulher em Rotor era. Talvez ela tenha descoberto a estrela. Não comentou a respeito com você? Fisher balançou a cabeça. — Acho que não. Entretanto… — Sim? — Nos últimos meses que passamos juntos, parecia muito excitada. Na verdade, estava radiante. — Você não lhe perguntou por quê? — Imaginei que era por causa da partida iminente de Rotor. Isso me deixou furioso. — Por causa da sua filha? Fisher assentiu. — Devia estar excitada por causa da descoberta da nova estrela. Tudo encaixa no lugar. Naturalmente, foi para lá que foram. E se foi sua mulher que a descobriu, devia considerá-la como sua; Mais uma razão para estar ansiosa para ir. Isso não faz sentido? — Talvez. Não posso dizer que não faz. — Está bem. E sobre isso que Tanayama quer conversar com você. E ele está furioso. Parece que não é com você, mas que está furioso, está. Na tarde desse mesmo dia, Crile Fisher entrou no escritório do Serviço de Informações da terra, que os funcionários chamavam simplesmente de Escritório. Kattimoro Tanayama, diretor do Escritório havia mais de trinta anos, estava ficando velho. Os hologramas que a imprensa usava (não havia muitos) tinham sido tirados anos atrás, quando seu cabelo ainda era preto, o corpo ereto, a expressão vigorosa. Agora seu cabelo estava grisalho, o corpo (não muito alto) ligeiramente curvado, um ar geral de fragilidade. Talvez estivesse chegando a hora de aposentar-se, pensou Fisher, se é que não pretendia trabalhar até morrer. Os olhos, observou, continuavam mais vivos que nunca. Fisher teve alguma dificuldade para compreendê-lo. O inglês era a língua universal da Terra, mas tinha o seus dialetos, e o de Tanayama não era o da América do Norte, ao qual Fisher estava acostumado. Tanayama disse, friamente: — Então, Fisher, sua missão em Rotor foi um fracasso. Fisher achou que não adiantava protestar. Era inútil discutir com Tanayama sobre qualquer assunto. — Sim, Sr. Diretor — concordou, em tom neutro. — Mesmo assim, pode ser que tenha informações importantes para nós. Fisher suspirou e disse: — Já fui interrogado muitas vezes. — Foi o que me disseram. Entretanto, não lhe perguntaram uma coisa que eu gostaria de saber. — Sim, Sr. Diretor? — Em sua estada em Rotor, observou alguma coisa que o levasse a crer que os líderes rotorianos odiavam a Terra? Fisher levantou as sobrancelhas. — Odiavam? Para mim, os nativos de Rotor, como os de todas as colônias, consideravam a Terra como um planeta decadente, violento, e brutal. Mas odiar? Francamente, acho que nos desprezavam muito mais do que nos odiavam. — Estou falando dos líderes, não da população em geral. — Eu também, Sr. Diretor. Acho que não nos odiavam. — Não há outra explicação. — Explicação para que, Sr. Diretor? Se essa é uma pergunta que estou autorizado a fazer? Tanayama olhou para ele, muito sério (a força da sua personalidade fazia os outros esquecerem a sua baixa estatura) — Sabia que a nova estrela está se movendo na nossa direção? Exatamente na nossa direção? Fisher olhou para Wyler, assustado, mas Wyler estava sentado na sombra, bem longe da janela, e não participava da conversa. Tanayama, que estava de pé, disse: — Sente-se, Fisher, se isso o ajuda a pensar. Vou me sentar também. Sentou-se na borda da escrivaninha, com as pernas curtas penduradas. — Sabia a respeito da trajetória da estrela? — Não, Sr. Diretor. Não sabia nem mesmo da existência da estrela até que o Agente Wyler me contou. — Não sabia? Muitos em Rotor deviam saber. — Se é verdade, ninguém me contou. — Sua mulher estava excitada e radiante às vésperas da partida de Rotor. Foi o que me disse o Agente Wyler. Qual a razão? — O Agente Wyler acha que talvez tenha sido ela que descobriu a estrela. — E talvez ela conhecesse a trajetória da estrela e estivesse satisfeita com a idéia do que vai nos acontecer. — Não vemos como essa idéia poderia deixá-la satisfeita, Sr. Diretor. Na verdade, não tenho conhecimento de que soubesse do movimento da estrela ou suas implicações. Tanayama olhou para ele com ar pensativo, coçando o queixo devagar. — Os habitantes de Rotor eram todos euros, não eram? Fisher arregalou os olhos. Fazia anos que não ouvia aquela expressão vulgar… e nunca a ouvira saída da boca de um funcionário do governo. Lembrou-se do comentário de Wyler, póuco depois de sua volta para a Terra, a respeito das “Brancas de Neve” de Rotor. Decidiu que provavelmente não significava nada. Respondeu, com ar ofendido: — Não sei, Sr. Diretor. Não tive acesso aos seus registros. Não sei quem eram seus ancestrais. — Ora, vamos, Fisher. Você não precisa de registros para isso. Julgue pelas aparências. Durante o tempo que passou em Rotor encontrou algum indivíduo do tipo afro, mongol ou hindu? Alguém de pele escura. De olhos puxados? Fisher explodiu. — Sr. Diretor, parece que ainda estamos no século XX! — (Se houvesse uma forma mais contundente de manifestar o que estava sentindo ele a teria usado.) — Não penso nessas coisas, e ninguém mais na Terra deveria pensar. Estou surpreso com a sua atitude. Acho que não contribuiria em nada para a sua reputação se viesse a ser conhecida pelo público em geral. — Não me venha com histórias de fadas, Agente Fisher — disse o Diretor, movendo um dedo de um lado para outro em sinal de recriminação. — Estou falando sobre a vida real. Sei que na Terra ignoramos todas as nossas diferenças, pelo menos em teoria. — Em teoria? — exclamou Fisher, indignado. — Em teoria — repetiu Tanayama, friamente. — Quando os terráqueos vão para as colônias, são separados por raças. Por que fariam isso, se realmente ignorassem todas as diferenças? Nas colônias, todos pertencem à mesma raça, ou, se havia alguma mistura para começar, aqueles que estão em minoria se sentem tão pouco à vontade que acabam se transferindo para outra colônia. Não é verdade? Fisher não podia negar. Era verdade, e ele jamais havia parado para pensar a respeito. Tentou explicar: — É a natureza humana. Os iguais se atraem. É mais… é mais fácil. — A natureza humana, é claro. Os iguais se atraem, por que odeiam e desprezam os que são diferentes. — Existem colônias mon… existem colônias mongóis, também — argumentou Fisher, correndo o risco de ofender mortalmente o Diretor. Tanayama nem pestanejou. — Sei disso muito bem, mas são os euros que têm dominado o planeta no passado recente, e eles não podem se esquecer disso, não é mesmo? — Os outros também talvez não possam se esquecer, e teriam ainda mais motivos para odiar. — Mas foi Rotor que fugiu do Sistema Solar. — Acontece que foram eles que descobriram a propulsão hiperespacial. — E foram para uma estrela próxima que só eles conheciam, uma estrela que está se dirigindo para o Sistema Solar, talvez em curso de colisão. — Não temos certeza de que eles sabem disso, nem mesmo de que conhecem a estrela. — Claro que sabem! — disse Tanayama, em tom quase desdenhoso. — E partiram sem nos avisar! — Sr. Diretor… com todo o respeito… isto é ilógico. Por que iriam fundar colônias em um sistema que estivesse em rota de colisão com o Sistema Solar? Se formos afetados, eles também serão. — Eles poderão escapar facilmente, mesmo se construírem várias colônias. Nós, porém, teremos que evacuar oito bilhões de pessoas, uma tarefa muito mais difícil. — De quanto tempo dispomos? Tanayama deu de ombros. — Alguns milhares de anos, ao que me consta. — Isso é muito tempo. Talvez achassem que não havia necessidade de anos sem avisar. Ao se aproximar mais, a estrela certamente teria sido descoberta. — A essa altura, teríamos menos tempo para planejar a evacuação. Eles descobriram a estrela por acaso. Nós mesmos não a teríamos descoberto se você não se lembrasse daquela observação da sua mulher e depois nos aconselhasse a procurar na parte do céu que havia sido omitida nos dados da Sonda Profunda. Não, Rotor estava torcendo para que levássemos ainda muito tempo para descobrir a estrela. — Sr. Diretor, por que desejariam uma coisa dessas? Movidos apenas por um ódio sem sentido? — Sem sentido, não. Queriam que o Sistema Solar fosse destruído, e com ele todos os não-euros. Assim, a humanidade teria um novo começo, com base em uma população constituída exclusivamente por euros. Que tal? Fisher sacudiu a cabeça. — Impossível. Impensável. — Por que outra razão deixariam de nos avisar? — Talvez ignorassem a trajetória da estrela… — Impossível — disse Tanayama, ironicamente. — Impensável. Não, a verdade é que nos queriam ver destruídos. Mas vamos descobrir sozinhos a propulsão hiperespacial, viajar para essa nova estrela e acertar as contas com eles. TREZE DOMO Eugenia Insigna reagiu à declaração da filha com uma gargalhada. — Que foi que você disse, Marlene? Que eu vou para Eritro? — Pedi ao Comissário Pitt e ele disse que iria providenciar. — Mas por quê? — Porque você disse que queria fazer observações astronômicas precisas e que isso não é possível aqui em Rotor. Mas vejo que não foi essa a sua pergunta. — Tem razão. O que eu queria saber é por que o Comissário Pitt disse que iria providenciar. Já lhe pedi várias vezes a mesma coisa e ele sempre se recusou. Não quer deixar ninguém pisar em Eritro.. a não ser alguns especialistas. — Eu apenas apresentei-lhe a questão de forma diferente, mamãe. — Marlene hesitou por um momento. — Disse a ele que sabia que estava ansioso para livrar-se de você e essa seria uma ótima oportunidade. Insigna inspirou com tanta força que engasgou ligeiramente e teve de tossir. Depois, com os olhos úmidos, perguntou: — Como teve coragem de dizer uma coisa dessas? — Porque é verdade, mamãe. Não teria dito se não fosse verdade. Você incomoda o Comissário. Ele gostaria que deixasse de… que deixasse de fazer aquilo que o incomoda, seja o que for. Você sabe disso. — Sabe, minha filha, acho que de agora em diante vou ter de tomá-la como minha confidente. A forma como consegue descobrir meus segredos mais íntimos está me deixando envergonhada. — Eu sei, mamãe — disse Marlene, baixando o olhar. — Desculpe. — Mas eu ainda não entendi. Admito que ele está farto de mim. Por que, então, não me mandou para Eritro da primeira vez que lhe pedi? — Porque ele odeia Eritro, e livrar-se de você não lhe parecia uma razão suficiente para mandar alguém para lá. Só que desta vez não é só você que vai. Somos nós duas. Insigna inclinou-se para a frente, colocando as palmas das mãos na mesa. — Não, Molly… Marlene. Eritro não é lugar para você. Não vou ficar lá para sempre. Farei as minhas medidas e logo estarei de volta. Fique aqui esperando por mim. — Não pode ser, mamãe. Está claro que ele só a deixou partir porque é a única forma de livrar-se de mim. Foi por isso que concordou em mandar você quando lhe pedi para nós duas irmos, mas não concordou quando você lhe pediu para ir sozinha. Não compreende? Insigna franziu a testa. — Não, não compreendo. Realmente, não compreendo. Que é que você tem a ver com isso? — Quando estávamos conversando, e expliquei que sabia que estava doido para livrar-se de nós, seu rosto assumiu uma expressão artificial… você sabe, ele tentou esconder o que estava sentindo. Mas isso nunca funciona. Os olhos, por exemplo, revelam muita coisa. — De modo que ficou sabendo que ele queria se livrar de você, também. — Pior que isso. Ele tem medo de mim. — Por que teria medo de você? — Acho que detesta que eu saiba o que ele não quer que eu saiba. Muita gente me detesta por isso — acrescentou, com um travo amargo na voz. Insigna assentiu. — Posso entender isso. Você faz as pessoas se sentirem despidas… mentalmente despidas, quero dizer. — Olhou para a filha. Às vezes, eu mesma me sinto assim. Pensando bem, você me faz sentir assim desde que era pequena. Muitas vezes disse para mim mesma que você era simplesmente uma pessoa muito inteli… — Eu acho que sou — disse Marlene, rapidamente. — Isso, também, claro, mas era muito mais, embora na época eu tivesse dificuldade para aceitar a verdade. Diga-me… você se incomoda de conversar a respeito? — Não com você, mamãe — disse Marlene, mas havia um traço de cautela na sua voz. — Muito bem. Quando você era mais jovem e descobriu que podia fazer coisas que as outras crianças — e mesmo os adultos — não podiam, por que não veio me pedir explicações? — Tentei uma vez, juro, mas você se mostrou impaciente. Quero dizer: você não disse nada, mas percebi claramente que não queria ser incomodada com tolices infantis. Insigna arregalou os olhos. — Eu disse que eram tolices infantis? — Você não disse, mas a forma como olhou para mim foi suficiente. — Devia ter insistido em me contar. — Eu era apenas uma criança. Além disso, você vivia preocupada… com o Comissário Pitt, e também com o papai. — Está bem. Há alguma coisa que você queira me contar agora? — Apenas uma coisa. Quando o Comissário Pitt disse que podíamos ir, havia alguma coisa na sua expressão que me fez pensar que havia deixado alguma coisa de fora… que existe alguma coisa que ele não disse. — O que é, Marlene. — Aí é que está, mamãe. Não posso ler pensamentos, de modo que simplesmente não sei. Entretanto… — Sim? — Tive a impressão de que o que ele deixou de dizer era uma coisa bastante desagradável… até perigosa, talvez. Naturalmente, Insigna levou algum tempo se preparando para a viagem a Eritro. Havia coisas em Rotor que não podiam ser interrompidas de um momento para outro. Era preciso resolver certos assuntos internos do departamento de astronomia, deixar instruções para os subordinados, arranjar um substituto para o cargo de Astrônomo-Chefe e resolver algumas questões de última hora com Pitt, que, estranhamente, se recusava a tocar no assunto da viagem. Afinal, foi Insigna que abordou a questão, no último encontro que tiveram antes da partida. — Vou para Eritro amanhã, você sabe. — O que disse? Pitt levantou os olhos do documento que ela lhe havia entregue e que fingia examinar, embora Insigna estivesse convencida de que não havia lido uma única linha. (Estaria aprendendo com Marlene?) — Vou para Eritro amanhã, você sabe — repetiu, pacientemente. — Ah, amanhã é o dia? Bem, um dia vai voltar, de modo que isto não é realmente uma despedida. Cuide-se. Considere como uma espécie de férias. — Pretendo usar as observações que farei em Eritro para determinar a trajetória exata de Nêmesis. — Ah, é? — Ele fez um gesto vago com ambas as mãos, como se a questão não tivesse importância. — Como quiser. Uma mudança de ambiente faz muito bem, mesmo quando a gente não pára de trabalhar. — Quero lhe agradecer por autorizar minha ida, Janus. — Foi sua filha que me pediu. Você sabia? — Sabia. Ela me contou no mesmo dia. Disse para ela que não tinha direito de incomodar você. Foi muito tolerante com ela. — É uma moça bastante incomum. Não me incomodei de atender a seu pedido. É apenas temporário. Termine os seus cálculos e volte para cá. Ela pensou: “E a segunda vez que ele menciona a minha volta. Que conclusão Marlene tiraria disso, se estivesse aqui? Alguma coisa perigosa, foi o que ela disse. Mas o que? — Vamos voltar — disse, simplesmente. — Com a notícia, espero, de que Nêmesis vai passar pelo Sistema Solar sem causar nenhum prejuízo… daqui a cinco mil anos. — Isso só vamos saber depois que eu fizer as observações. Era estranho, pensou Insigna. Estava a mais de dois anos-luz do lugar do espaço onde havia nascido e no entanto só havia viajado duas vezes de espaçonave, e mesmo assim em viagens muito curtas: de Rotor para a Terra e da Terra de volta para Rotor. Mesmo assim, não tinha muita vontade de viajar no espaço. Era Marlene que havia insistido naquela viagem. Era ela que, por sua conta, tinha ido falar com Pitt e o persuadira a ceder àquela estranha forma de chantagem. E era ela que estava mais animada, ela e sua estranha compulsão de conhecer Eritro. Insigna não conseguia compreender aquilo e a considerava como mais uma faceta da complexa personalidade da filha. Entretanto, quando Insigna tremia com a idéia de deixar a segurança e o conforto de Rotor pelo vasto mundo vazio de Eritro, tão estranho e ameaçador, e a mais de seiscentos e cinqüenta mil quilômetros de distância (quase duas vezes a distância que Rotor estivera da Terra), era o entusiasmo de Marlene que a acalmava. A nave que as levaria para Eritro não era bonita nem graciosa. Era prática. Fazia parte de uma pequena esquadrilha de foguetes que trabalhavam como naves de transporte, enfrentando, durante parte da viagem, a turbulenta atmosfera do planeta. Insigna não achava que a viagem iria ser agradável. Estariam sem peso a maior parte do tempo, e dois dias inteiros assim seriam, na melhor das hipóteses, uma coisa bastante monótona. A voz de Marlene interrompeu seus devaneios. — Vamos, mamãe, estão à nossa espera. A bagagem já está a bordo. Insigna adiantou-se. Ao atravessar a escotilha, seu último pensamento foi: afinal, por que Janus Pitt concordou tão prontamente com o pedido de Marlene? Siever Genarr governava um mundo tão grande quanto a Terra. Ou, para sermos mais precisos, governava, diretamente, uma região coberta que no momento tinha uma área de quase três quilômetros quadrados, mas estava sendo ampliada aos poucos. O resto do mundo, porém, quase quinhentos milhões de quilômetros quadrados de mares e continentes, não era ocupado por seres humanos. Também não era ocupado por nenhuma forma de vida que não fosse microscópica. Assim, se um mundo é governado pelas formas de vida multicelulares que o habitam, então os homens (algumas centenas) que moravam e trabalhavam na região do Domo eram os seus únicos donos. E eles eram governados por Siever Genarr. Genarr não era um homem muito alto, mas era bastante forte, o que lhe dava um ar imponente. Na mocidade, isso costumava fazê-lo parecer um pouco mais velho do que realmente era, mas agora, que estava beirando os cinqüenta, o efeito havia praticamente desaparecido. O nariz era comprido e os olhos um tanto empapuçados. O cabelo estava começando a ficar grisalho. A voz era de barítono, bastante melodiosa. (Chegara a se interessar pela carreira teatral, mas seus talentos como administrador tiveram precedência.) Tinham sido esses talentos (principalmente) que o haviam mantido no Domo de Eritro durante dez anos, vendo-o crescer de uma estrutura incipiente de três andares até a gigantesca estação de pesquisa e mineração em que se transformara. O Domo tinha suas desvantagens. Poucas pessoas permaneciam ali por muito tempo. Trabalhavam por turnos, já que quase todos se consideravam exilados e estavam sempre querendo voltar para Rotor o mais cedo possível. A maioria não considerava a luz rósea de Nêmesis nem deprimente nem assustadora, embora as luzes dentro do Domo fossem iguais às de Rotor. Tinha suas vantagens, também. Genarr estava afastado dos tumultos da política de Rotor, que parecia mais vazia e provinciana do que nunca. Mais ainda, estava afastado de Janus Pjtt, cujas idéias sempre havia combatido, sem nenhum sucesso. Desde o início, Pitt havia sido contra a instalação de colônias em Eritro, ou mesmo contra a colocação de Rotor em uma órbita estável em torno de Eritro. Nessa questão, pelo menos,tinha sido fragorosamente derrotado pela opinião pública, mas relutava em conceder verbas para o Domo, o que fazia com que o projeto prosseguisse em ritmo bastante lento. Se Genarr não tivesse implantado com sucesso um programa de fornecimento de água para Rotor, muito mais barato do que se fossem buscar água nos asteróides, talvez a operação inteira tivesse sido cancelada por Pitt. Em geral, porém, a política de Pitt de ignorar a existência do Domo significava que raramente ele tentava interferir nas decisões administrativas de Genarr, o que convinha a este último. Genarr ficou surpreso, portanto, quando Pitt se deu ao trabalho de informá-lo pessoalmente da chegada de uma dupla de forasteiras, em vez de fazer a comunicação pelos canais competentes. Pitt, na verdade, fez questão de abordar o assunto com detalhes, naquela sua maneira seca e arbitrária, que não admitia perguntas nem comentários, e usou, além de tudo, um canal confidencial. A surpresa foi ainda maior quando o governador ficou sabendo que uma das recém-chegadas seria Eugenia Insigna. Em certa época, anos antes da Partida, tinham sido amigos, mas depois dos anos de universidade (que Genarr lembrava, saudosamente, como cheios de romantismo), Eugenia tinha ido fazer o doutorado na Terra e depois voltara para Rotor com um terráqueo. Desde que se casara com Crile Fisher, Genarr a havia visto apenas uma ou duas vezes, e assim mesmo de longe. E quando ela e Fisher se separaram, pouco antes da Partida, ela e Genarr estavam muito ocupados com o trabalho para reatar a velha amizade. Genarr, na verdade, havia pensado em procurá-la uma ou duas vezes, mas Eugenia estava aparentemente passando por uma fase difícil, com um casamento desfeito e uma filha pequena para criar, e Genarr não queria intrometer-se. Então, foi mandado para Eritro. Passava as férias em Rotor, mas não se sentia mais à vontade ali. Ainda tinha alguns amigos rotorianos, mas estavam ficando cada vez mais escassos. Agora Eugenia estava chegando com a filha. Genarr não se lembrava do nome da menina. Talvez nem soubesse qual era. Certamente não a conhecia. Devia ter uns quinze anos, e Genarr imaginou se seria parecida com a mãe quando tinha a mesma idade. Genarr olhou pela janela do escritório com um ar quase sub-reptício. Estava tão acostumado com o Domo de Eritro que não mais o encarava com olhos críticos. Abrigava operários de ambos os sexos. Adultos, apenas. Nenhuma criança. Trabalhadores temporários, que haviam assinado contratos com duração de semanas ou meses. Alguns renovavam o contrato, outros não. Com exceção de Genarr e quatro outros que, por um motivo ou por outro, tinham se acostumado a viver no Domo, não havia trabalhadores permanentes. Na verdade, o Domo não se parecia muito com um lar. Era mantido limpo e arrumado por questão de necessidade, mas tinha muito de artificial. Era principalmente o excesso de linhas retas e arcos, planos e círculos. Faltavam as irregularidades, faltava o caos da vida permanente, onde as moradias, ou mesmo as mesas de trabalho, se ajustavam aos meandros da personalidade de um determinado indivíduo. Havia Genarr, naturalmente. Sua mesa de trabalho, seu alojamento, refletiam a personalidade retilínea do ocupante. Essa, talvez, fosse uma das razões pelas quais se sentia à vontade no Domo de Eritro. A forma do seu espírito combinava com a geometria do ambiente. Qual a impressão, porém, que aquele ambiente causaria em Eugenia Insigna? (Por alguma razão, estava satisfeito por ela haver voltado a usar o nome de solteira.) A Eugenia de que se lembrava apreciava as formas irregulares, não podia passar sem um toque do inesperado. Teria mudado? Mudariam as pessoas, no fundo, alguma coisa? A deserção de Crile Fisher a teria transformado em uma pessoa amarga, revoltada? Genarr coçou a cabeça grisalha e pensou que aquelas especulações eram inúteis. Logo veria Eugenia pessoalmente, pois havia deixado instruções para que a levassem à sua presença assim que desembarcasse. Ou deveria ter ido recebê-la pessoalmente? Não! Já discutira a questão consigo mesmo uma dúzia de vezes. Não podia parecer ansioso demais; não seria apropriado para a sua posição. Genarr reconheceu para si mesmo que aquele não era o verdadeiro motivo. Não queria deixá-la pouco à vontade; não queria que Eugenia pensasse que ele era ainda o mesmo tímido admirador que se retirara de forma tão vergonhosa, em vez de competir com o terráqueo alto e atraente. Depois de conhecer Crile, Eugenia nunca mais olhara para ele… pelo menos, não como antes. Os olhos de Genarr reexaminaram a mensagem de Janus Pitt, seca, lacônica, como eram todas as suas mensagens, com aquele ar indefinível de autoridade, como se não admitisse a possibilidade de contestação. Agora estava reparando que Pitt falava mais da filha do que da mãe. Pitt afirmava que a filha havia manifestado um grande interesse por Eritro, e que, se desejasse explorar a superfície, Genarr deveria atendê-la. Por que agiria assim? Ali estava ela. Quatorze anos mais velha que na época da Partida. Vinte anos mais velha que antes de conhecer Crile, no dia em que tinham ido para a Área de Cultivo C e subido para os níveis de baixa gravidade, e ela havia rido quando ele tentara dar uma cambalhota e acabara caindo de bruços. (Na verdade, poderia ter-se machucado, porque, embora o peso diminuísse, a massa e a inércia continuavam as mesmas. Felizmente, não sofrera aquela humilhação.) Eugenia parecia mais velha, mas não havia engordado muito, e seu cabelo (mais curto, agora) ainda era castanho-escuro. Quando ela caminhou em sua direção, sorrindo, seu coração disparou. Eugenia estendeu as duas mãos e ele as tomou nas suas. — Siever. Eu traí você. Estou tão envergonhada! — Você me traiu, Eugenia? De que está falando? De que estaria ela falando? Não podia ser do seu casamento com Crile… — Devia ter pensado em você com mais freqüência. Devia ter mandado recados para você, insistido para que fosse me visitar. — Em vez disso, esqueceu-se de mim! — Oh, isso não é verdade. Pensava em você de vez em quando. Só que nunca fiz nada de concreto para tornar a vê-lo. Genarr fez que sim com a cabeça. Que havia para dizer? — Sei que andou muito ocupada. E eu estava aqui, longe dos olhos e, portanto, longe do coração. — Longe do coração, não. Você não mudou nada, Siever. — Essa e a vantagem de parecer velho e carcomido quando a gente tem vinte anos. Depois disso, você não muda mais, Eugenia. O tempo passa, e você só fica parecendo um pouquinho mais velho e mais carcomido. Nada que dê para notar. — Deixe disso! Parece que você gosta de ser cruel para si mesmo, só para que as mulheres sentimentais pulem em sua defesa. Isso também não mudou nada. — Onde está sua filha, Eugenia? Soube que ela vinha com você. — É verdade. Minha filha considera Eritro um paraíso, por razões que não consigo compreender. Foi para o nosso alojamento desarrumar as malas. É esse tipo de pessoa. Séria. Responsável. Prática. Cumpridora dos deveres. Possui o que alguém já rotulou de virtudes prosaicas. Genarr riu. — Sinto-me muito à vontade com elas. Se soubesse como tenho tentado, em minha vida, cultivar pelo menos um vício atraente. Jamais consegui. — Siever, acho que, depois de certa idade, a gente precisa cada vez mais de virtudes prosaicas e cada vez menos de vícios atraentes. Mas por que você veio morar permanentemente em Eritro? Sei que o Domo de Eritro tem de ser administrado, mas você não é a única pessoa em Rotor capaz de fazer o serviço. — Na verdade, Eugenia, acho que sou, sim. De qualquer maneira, gosto daqui e de vez em quando vou passar férias em Rotor. — E nunca me procurou? — Só porque estou de férias não quer dizer que você esteja também. Desconfio que tenha andado muito mais ocupada do que eu, como está desde que descobriu Nêmesis. Mas estou desapontado. Queria conhecer sua filha. — Vai conhecer. O nome dela é Marlene. Na verdade, é Molly no meu coração, mas ela detesta o apelido. Depois de fazer quinze anos, considera-se uma adulta e faz questão de ser chamada de Marlene. Na verdade, não quis que ela estivesse presente no nosso primeiro encontro. Como poderíamos recordar os velhos tempos na presença dela? — Quer lembrar os velhos tempos, Eugenia? — Sob alguns aspectos. Genarr hesitou. — Sinto muito que Crile não tenha partido com você. O sorriso de Insigna ficou gélido. — Sob alguns aspectos, Siever. — Ela se voltou e olhou pela janela. — A propósito: este lugar é bem interessante. O pouco que vi me deixou impressionada. Iluminação feérica. Ruas largas. Construções de grande porte. No entanto, lá em Rotor quase não se fala do Domo. Quantas pessoas vivem e trabalham aqui? — Varia muito. Já tivemos quase novecentos funcionários. No momento, estamos reduzidos a quinhentos e dezesseis. Todo dia alguns chegam, outros vão embora. — Exceto você. — E uns poucos outros. — Mas qual a necessidade do Domo, Siever? Afinal, a atmosfera de Eritro é respirável. Pela primeira vez, Genarr não a encarou para responder. — É verdade, mas ninguém se sente à vontade na superfície. Quando você sai do Domo, é banhado por uma luz rosada, que tende a alaranjada quando Nêmesis está alto no céu. A intensidade é suficiente para ler. Mesmo assim, não parece natural. A própria Nêmesis não parece natural. É grande demais. A luz avermelhada faz as pessoas ficarem deprimidas. Além disso, é perigoso olhar diretamente para Nêmesis. Como a luz visível que emite não é muito forte, as pessoas não se dão conta de que a radiação infravermelha pode queimar a retina. É por isso que exigimos que as pessoas usem um capacete especial quando estão fora do Domo. — Então o Domo existe principalmente para assegurar uma iluminação normal para as pessoas. — Isso mesmo. O ar e a água que circulam no Domo, por exemplo, são simplesmente recolhidos no exterior; não há necessidade de nenhum tratamento especial. A não ser, naturalmente, para eliminar os eucariotes. Você sabe, as pequenas células verde-azuladas. Insigna assentiu, pensativa. Nessas células estava a explicação para o oxigênio encontrado na atmosfera de Eritro. Havia vida em Eritro, até com uma certa abundância, mas era uma vida microscópica, equivalente às formas mais simples de vida celular no Sistema Solar. — São mesmo procariotes, Siever? Sei que é assim que são amadas, mas é assim que nossas bactérias também são designadas. São bactérias? — Se são equivalentes a alguma coisa na história da vida no Sistema Solar, só podem ser às cianobactérias, aquelas que executam a fotossíntese. Sua pergunta, porém, é pertinente. Não, não são as nossas cianobactérias. Possuem nucleoproteínas, mas com uma estrutura bem diferente da que é encontrada nas nossas formas de vida. Também dispõem de uma espécie de clorofila que não contém magnésio e absorve radiação apenas na faixa do infravermelho, de modo que é incolor em vez de verde. As enzimas são diferentes, os minerais essenciais aparecem em proporções diferentes. Mesmo assim, são suficientemente parecidas com as células da Terra para serem chamadas de procariotes. Ouvi dizer que os nossos biólogos propuseram o termo “eritriotes’ mas para leigos como nós, procariotes é o bastante. — A existência dessa forma de vida microscópica é suficiente para explicar o teor de oxigênio na atmosfera de Eritro? — Perfeitamente. Ainda bem, porque seria difícil encontrar outra explicação. A propósito, Eugenia, você que é astrônoma, pode me dizer qual a última estimativa para a idade de Nêmesis? Insigna deu de ombros. — As anãs vermelhas são praticamente imortais. Nêmesis pode ser tão antiga quanto o Universo e passar mais cem bilhões de anos sem sofrer nenhuma mudança perceptível. O melhor que podemos fazer é medir a proporção de elementos mais pesados em sua composição e tentar calcular sua idade a partir desses dados. Supondo que se trate de uma estrela de primeira geração e que tenha começado apenas com hidrogênio e hélio, deve ter pouco mais de dez bilhões de anos de idade… ou seja, pouco mais do dobro da idade do Sistema Solar. — Então Eritro também tem dez bilhões de anos de idade. — Claro. Os sistemas solares se formam de uma vez, e não aos poucos. Por que pergunta? — Acho estranho que em dez bilhões de anos a vida não tenha passado do estágio dos procariotes. — Não se surpreenda, Siever. Na Terra, durante os primeiros dois ou três bilhões de anos depois que a vida apareceu, só havia procariotes. Aqui em Eritro, a concentração de energia na luz solar é muito menor que na Terra. É preciso muita energia para formar estruturas complexas. Esta questão tem sido muito discutida em Rotor. — Tenho certeza, mas poucas notícias a respeito chegam aqui ao Domo. Estamos muito preocupados, suponho com os problemas locais… embora, naturalmente, qualquer coisa a respeito dos procariotes possa ser considerada como um problema local. — Rotor também não se fala muito a respeito do Domo. — Eugenia não há nada de glamouroso a respeito do Domo. É apenas um local de trabalho, e não me surpreende que não apareça nos noticiários de Rotor. São as novas colônias que estão merecendo toda a atenção da imprensa. Vai se mudar para uma delas? — Jamais. Sou rotoriana e pretendo continuar assim. Não estaria aqui — se me perdoa a franqueza — se não tivesse que executar certas medidas astronômicas. Para as observações que pretendo realizar, necessito de uma base mais estável que Rotor. — Foi o que Pitt me informou. Minhas ordens são para ajudá-la no que for possível. — Ótimo. Tenho certeza de que posso contar com a sua colaboração. A propósito: você disse há pouco que vocês tomam precauções para evitar que o Domo seja contaminado pelos procariotes. Essas precauções estão dando resultado? A água é segura para se beber? — Claro que é. Não existem procariotes no interior do Domo. Toda a água que entra — na verdade, tudo que entra — é submetida a raios de luz violeta, que destroem os procariotes em questão de segundos. Os fótons de alta freqüência dessa luz têm energia demais para os pequenos seres e decompõem suas moléculas. Mesmo que alguns procariotes consigam escapar, não são venenosos, até onde sabemos, nem perigosos sob nenhum aspecto. Nós os testamos em animais. — É um alívio saber disso. — Por outro lado, nossos microrganismos não podem competir com os procariotes de Eritro nas condições de Eritro. Pelo menos, quando colocamos nossas bactérias no solo de Eritro, elas não conseguiram crescer e multiplicar-se. — E as plantas multicelulares? — Tentamos, também, mas os resultados não foram animadores. Talvez isso se deva à qualidade da luz de Nêmesis, já que podemos cultivar plantas perfeitamente no interior do Domo, Usando o solo e a água de Eritro. Comunicamos essas observações a Rotor, naturalmente, mas duvido que sejam muito divulgadas. Como disse, Rotor não está muito interessado no Domo. Certamente, o voluntarioso Pitt não está interessado em nós, e em Rotor é ele quem manda, não é? Genarr disse aquilo com um sorriso, mas o sorriso parecia falso. (Que pensaria Marlene a respeito? perguntou-se Insigna.) — Pitt não é voluntarioso. Ele às vezes é teimoso, o que é bem diferente. Sabe, Siever, quando éramos jovens, sempre pensei que um dia você seria Comissário. Eu o achava muito inteligente. — Achava? — Tenho certeza de que continua inteligente, mas naquela época era tão engajado politicamente, tinha idéias tão interessantes, que não me cansava de ouvi-lo. Sob certos aspectos, você poderia ser um Comissário melhor do que Janus. Ouviria mais as pessoas. Seria menos individualista. — É exatamente por isso que eu não seria um bom Comissário. Eugenia, não tenho metas precisas na vida, apenas o desejo de fazer o que me parece certo no momento, na esperança de realizar algo de útil. Pitt, por outro lado, sabe exatamente o que quer e usa de todos os recursos para conseguir seus objetivos. — Você está sendo injusto com ele, Siever. Ele pode ter uma personalidade forte, mas é um homem bastante razoável. — É claro, Eugenia. Ser razoável é uma das grandes qualidades de Pitt. Seja qual for o rumo que escolhe para seguir, existe sempre um motivo perfeitamente lógico para suas decisões. É capaz de imaginar um motivo para cada ocasião, e expõe suas razões de forma tão eloqüente que convence qualquer um, até ele próprio. Estou certo que, se você teve negócios a tratar com ele, foi capaz de convencê-la a fazer coisas que a princípio discordava, e não conseguiu isso através de ordens ou ameaças, mas de argumentos muito lógicos, muito racionais. — Bem… — começou Insigna, tímida. — Vejo que você já sabe como ele pode ser razoável — acrescentou Genarr, com ar irônico. — Teve, portanto, ocasião de observar pessoalmente por que ele é um excelente Comissário. Pode não ser uma boa pessoa, mas é um bom Comissário. — Não concordo que ele não seja uma boa pessoa, Siever — protestou Insigna, balançando a cabeça. — Está bem, não adianta discutirmos sobre isso. Quero conhecer sua filha — disse Genarr, levantando-se. — Posso visitar o alojamento de vocês depois do jantar? — Seria um prazer, Siever. Depois que ela partiu, Genarr ficou olhando para a porta com um sorriso amarelo nos lábios. Eugenia tinha falado em recordar o passado, e sua primeira reação fora falar no marido dela… o que a fizera recuar. Suspirou. Continuava com aquele dom extraordinário de arruinar as próprias oportunidades. — O nome dele é Siever Genarr, mas deve chamá-lo de Comandante, pois é ele que governa o Domo de Eritro — disse Eugenia Insigna para a filha. — Está bem, mamãe. — E não quero que o deixe sem graça. — Eu não faria isso. — Você faz isso sem querer, Marlene. Tome cuidado. Aceite o que ele disser e não tente corrigi-lo com base na sua linguagem corporal. Por favor! Éramos muito amigos no tempo do colégio. Embora esteja aqui no Domo há dez anos, e eu não o veja há muito tempo, ainda somos bons amigos. — Pensei que tivessem sido namorados. — Foi exatamente isso que eu quis dizer — advertiu Insigna. — Não quero que você fique olhando para ele, tentando perceber o que realmente é e está pensando. Para seu governo, Siever nunca foi meu namorado, não exatamente, e nunca fomos amantes. Éramos amigos e gostávamos um do outro… como amigos. Mas depois do seu pai… — Sacudiu a cabeça e fez um gesto vago. — E tome cuidado com o que disser a respeito do Comissário Pitt… se o assunto vier à baila. Tenho a impressão de que o Comandante Genarr não confia no Comissário Pitt… Marlene brindou a mãe com um dos seus raros sorrisos. — Tem andado estudando o comportamento subliminar do Comandante Siever? Porque o que você tem é mais que uma impressão. Insigna sacudiu a cabeça. — Está vendo? Você não consegue evitar. Muito bem, é mais que uma impressão. Ele disse que não confia no Comissário. E sabe de uma coisa? — acrescentou, quase para si mesma. — Pode ser que tenha razão… — Voltou-se para Marlene e disse, bruscamente: — Vou repetir, Marlene. Pode observar à vontade o Comandante e descobrir tudo o que quiser, mas não diga nada para ele. Diga para mim! Entendeu? — Acha que estamos correndo perigo, mamãe? — Não sei. — Eu acho — declarou Marlene, sem emoção. Senti que havia perigo no momento em que o Comissário Pitt disse que podíamos vir para Eritro. Só não sei onde está o perigo. Ver Marlene pela primeira vez foi um choque para Siever Genarr, tornado maior ainda pelo fato de que a menina olhou para ele com uma expressão taciturna que dava a impressão de que sabia perfeitamente bem que ele estava chocado e por quê. Não havia nada em Marlene que parecesse indicar que era filha de Eugenia, nada da beleza, nada da graça, nada do encanto. Apenas aqueles grandes olhos escuros que no momento estavam pregados nele, e que também não eram de Eugenia. Era o único ponto em que superava a mãe. Pouco a pouco, porém, corrigiu a primeira impressão. Insigna lhe ofereceu uma sobremesa e uma xícara de chá, e ele aceitou. Enquanto comiam, Marlene se comportou como uma perfeita dama. Além disso, parecia uma pessoa muito inteligente. Que é que Eugenia havia dito? Todas as virtudes prosaicas? Não era tão mal assim. Parecia carente de amor, como as pessoas que não são bonitas costumam se sentir. Como ele próprio se sentia. De repente, sentiu uma grande simpatia por ela. Algum tempo depois disse: — Eugenia, gostaria de conversar a sós com Marlene. — Alguma razão em particular? — disse Insigna, em um tom um pouco ofendido. — Bem, foi Marlene que falou com o Comissário Pitt e o convenceu a permitir que vocês duas viessem para o Domo. Como Comandante do Domo, dependo diretamente das decisões do Comissário Pitt, de modo que gostaria muito de saber exatamente o que se passou naquela entrevista. Achei que sua filha falaria mais livremente se estivéssemos a sós — justificou-se Siever. Ele esperou Insigna sair e depois se voltou para Marlene, que estava sentada em uma grande poltrona em um canto da sala, com as mãos pousadas no colo, os lindos olhos negros encarando gravemente o comandante. — Sua mãe parecia um pouco nervosa por deixá-la aqui comigo — disse para ela, com um toque de humor na voz. — Está nervosa, também? — Absolutamente. E se minha mãe estava nervosa, era por sua causa. — Por minha causa? Como assim? — Acha que eu seria capaz de ofendê-lo de alguma forma. — Você seria capaz, Marlene? — Não intencionalmente, Comandante. Tentarei evitar. — Estou certo de que vai conseguir. Sabe por que eu quis falar com você em particular? — Disse a minha mãe que quer saber detalhes da minha entrevista com o Comissário Pitt. Isso é verdade, mas o senhor também deseja saber como eu sou. Genarr levantou as sobrancelhas. — É natural que eu queira conhecer você melhor. — Não é bem isso… — O que é, então? Marlene desviou os olhos. — Desculpe, Comandante. — Desculpe por quê? Marlene fez uma careta e não disse nada. — Marlene, Marlene, qual é o problema? Você precisa me contar. É importante que use de toda a franqueza comigo. Se sua mãe disse a você para tomar cuidado com o que diz esqueça. Se insinuou que sou muito sensível e me ofendo facilmente, esqueça também. Na verdade, estou lhe ordenando neste momento que seja franca comigo e não tenha medo de me ofender, e você tem de obedecer à minha ordem, porque sou o Comandante do Domo de Eritro. Marlene começou a rir. — Está mesmo ansioso para saber como sou, certo? — Naturalmente. — Porque está imaginando como posso ter a aparência que tenho, sendo filha da minha mãe. Genarr arregalou os olhos. — Eu não disse nada parecido. — Não foi preciso. Você é um velho amigo da minha mãe. Ela me contou. Mas você estava apaixonado por ela, ainda está, e esperava que eu me parecesse com mamãe quando ela era jovem; por isso, quando me viu, recuou, chocado. — Foi mesmo? Deu para notar? — Foi um pequeno gesto, porque o senhor é um homem educado, mas deu para notar. Depois, ficou olhando alternadamente para mamãe e para mim. E o tom com que me dirigiu a palavra pela primeira vez? Foi tudo muito claro. Você estava achando que eu não me parecia nem um pouco com minha mãe e estava muito desapontado. Genarr se recostou na cadeira e exclamou: — Mas isso é maravilhoso! O rosto de Marlene se iluminou. — Está sendo sincero, Comandante. Está sendo sincero! Não está ofendido. Não está assustado. Está satisfeito. O senhor é a primeira pessoa, a primeira, que reage assim. Até a minha mãe não gosta. — Gostar ou não gostar não importa. Isso é totalmente irrelevante quando estamos diante de um dom extraordinário. Há quanto tempo é capaz de decifrar a linguagem corporal, Marlene? — Sempre fui, mas estou melhorando com a idade. Acho que todos seriam capazes de fazer isso se prestassem mais atenção… e pensassem. — Não é bem assim, Marlene. É difícil. E você diz que eu gosto da sua mãe. — Tenho certeza, Comandante. Quando está perto dela, cada gesto, cada olhar, cada palavra levam à mesma conclusão. — Acha que ela percebeu? — Está desconfiada, mas prefere que não seja verdade. Genarr desviou os olhos. — Sempre foi assim. — É por causa do meu pai. — Eu sei. Marlene hesitou. — Mas acho que está errada. Se pudesse vê-lo do jeito que estou vendo agora… — Ela não pode. Infelizmente. Fico feliz que você possa. Você é linda. Marlene enrubesceu. Depois, disse: — O senhor está sendo sincero! — Claro que estou. — Mas… — Não posso mentir para você, posso? Pois não vou nem tentar. Seu rosto não é bonito. Seu corpo não é bonito. Mas você é bonita, e isso é que é importante. E você sabe que eu realmente penso assim. — É verdade — disse Marlene, sorrindo de felicidade. Genarr sorriu também. — Vamos falar do Comissário Pitt? Agora que a conheço melhor, esta conversa se tornou ainda mais importante. Está disposta? Marlene pousou as mãos no colo, sorriu um pouco mais para Genarr — Sim, tio Siever. Importa-se que o chame assim? — Absolutamente. Na verdade, sinto-me honrado. Agora… fale-me do Comissário Pitt. Ele me enviou instruções para colaborar com sua mãe em tudo que for possível e fornecer-lhe todos os equipamentos astronômicos que requisitar. Por que acha que fez isso? — Minha mãe pretende determinar com precisão a trajetória de NêmeSis, e Rotor é instável demais para esse tipo de medida. Na superfície de Eritro, isso poderá ser feito com relativa facilidade. — Esse projeto é recente? — Não, tio Siever. Ela me contou que é uma idéia antiga. — Então por que não pediu para vir para cá há mais tempo? — Ela pediu, mas o Comissário Pitt negou. — Nesse caso, o que o fez mudar de idéia? — Ele queria se livrar da minha mãe. — É compreensível… se ela vivia insistindo em obter a permissão. Mas provavelmente sua mãe o incomodava fazia muito tempo. Por que a mandou para cá só agora? — Para se livrar de mim — explicou Marlene, em voz baixa. QUATORZE PESCARIA Cinco anos se haviam passado desde a Partida. Crile Fisher achava difícil acreditar que fosse só isso; para ele, parecia muito mais. Rotor não pertencia ao passado, mas a uma vida totalmente diferente, que recordava com crescente incredulidade. Havia mesmo morado em Rotor? Havia mesmo se casado com uma rotoriana? Lembrava-se claramente apenas da filha, e mesmo assim, com uma certa confusão, pois havia ocasiões em que parecia recordá-la como uma adolescente. Naturalmente, o problema era complicado pelo fato de que sua vida nos últimos três anos, desde que a Terra descobrira a Estrela Vizinha, tinha sido frenética. Estivera em sete colônias. Todas essas colônias eram habitadas por pessoas da sua raça, que falavam uma língua parecida com a sua e tinham costumes semelhantes. (Essa era a vantagem da Terra. Podia fornecer agentes com a mesma aparência que a população de qualquer colônia) Naturalmente, não era fácil se misturar com os moradores de uma colônia. Embora se parecesse superficialmente com eles, tinha um sotaque peculiar, não podia caminhar tão ereto nos lugares em que a gravidade era mais forte que na Terra, nem deslizar tão suavemente nos lugares em que a gravidade era menor. Não, em cada colônia que visitava, ele se traía de dez formas diferentes, e a população local sempre demonstrava uma certa reserva, embora, de acordo com as normas, tivesse sido submetido a uma quarentena e a um exame médico completo antes de ter permissão para desembarcar. Naturalmente, permanecia em cada colônia apenas por poucos dias ou semanas. Suas missões não exigiam que se instalasse em uma colônia de forma semipermanente ou constituísse família, como havia feito em Rotor. Em Rotor, estivera em busca da propulsão hiperespacial, mas agora a Terra estava interessada em questões menos importantes, ou pelo menos ele havia sido encarregado de missões menos importantes. Fazia três meses que estava de volta à Terra. Não havia ainda notícia de uma nova missão, nem se sentia ansioso para arranjar uma. Estava cansado de viajar, cansado de.estar entre estranhos, cansado de se fazer passar por turista. Agora, ali estava Garand Wyler, seu velho amigo e colega, recém-chegado de uma das colônias, olhando para ele com olhos cansados. A pele morena de sua mão refletiu a luz quando a levou ao nariz por um momento; depois, deixou-a cair. Fisher sorriu. Conhecia aquele gesto por experiência própria. Toda colônia tinha um odor característico, que dependia das plantas locais, das especiarias usadas na comida, dos perfumes à venda, das máquinas e lubrificantes utilizados pela indústria. Os visitantes logo se acostumavam com o cheiro e deixavam de notá-lo, mas, ao voltarem à Terra, descobriam que era difícil livrar-se dele. Mesmo depois de tomar banho e mudar de roupa, ainda podiam sentir o odor no próprio corpo. — Seja bem-vindo — disse Fisher. — Como foi a viagem desta vez? — Péssima, como sempre. O velho Tanayama está certo. O que as colônias mais temem e odeiam é a variedade. Não querem que haja diferenças de gosto, aparência, estilo de vida. Para eles, o importante manter a uniformidade. — Tem razão. É uma pena. — É uma forma muito tímida e passiva de colocar as coisas, Crile. “E uma pena.” “Upa, deixei cair o prato. É uma pena.” Estamos falando da humanidade! Estamos falando da longa luta da Terra para encontrar um modo de convivência para todas as culturas, para todas as raças. Não é ainda perfeito, mas compare com o que era há menos de um século, e vai achar um paraíso. Então, quando temos a oportunidade de levar nossa experiência para o espaço, jogamos tudo fora e voltamos para a Idade das Trevas. E você diz: “É uma pena.” Uma reação e tanto para algo que é uma grande tragédia. — Concordo inteiramente, mas se não posso fazer nada de concreto para mudar a situação, que importa a veemência das minhas denúncias? Esteve em Akruma, não esteve? — Estive — disse Wyler. — Eles sabem a respeito da Estrela Vizinha? — Sabem, sim. A essa altura, todas as colônias já sabem. — Estão preocupados? — Nem um pouco. Por que estariam? Têm milhares de anos para fazer alguma coisa. Muito antes de a Estrela Vizinha se aproximar, e se houver algum perigo, o que não é certo, você sabe, eles podem simplesmente dar o fora. Na verdade, eles admiram Rotor. Não será preciso muita coisa para fazê-los seguir o exemplo. — O tom de Wyler era amargo. — Vão todos partir, e ficaremos sozinhos. Como vamos construir colônias suficientes para abrigar oito bilhões de seres humanos? — Está parecendo Tanayama. De que adiantará persegui-los? De que adiantará puni-los, ou mesmo destruí-los? Ainda estaremos aqui, diante do mesmo problema insolúvel. Se todos ficassem, como bons meninos, para enfrentar junto conosco a Estrela Vizinha, estaríamos em melhor situação? — Não seja tão frio, Crile. Tanayama é mais agressivo e eu estou do lado dele. Está disposto a mover mundos e fundos para desenvolver a propulsão hiperespacial. Precisa dela para ir atrás de Rotor e reduzi-lo a pedacinhos. Mesmo que isso não nos ajude em nada, a propulsão hiperespacial será útil para evacuar a população da Terra, se a Estrela Vizinha tornar isso necessário. De modo que apóio o que Tanayama está fazendo, embora não concorde inteiramente com os seus motivos. — Suponha que a gente consiga desenvolver a propulsão hiperespacial e depoisdescubra que só dispõe de tempo e recursos suficientes para evacuar um bilhão de pessoas. Como vamos escolher esse bilhão de felizardos? Que acontece se as pessoas que estão no comando começarem a salvar apenas os parentes e amigos? — Não quero nem pensar, Crile. — Ainda bem que estaremos mortos antes da coisa começar. — Na verdade — disse Wyler, baixando de repente o tom de voz —, acho que a coisa já começou. Desconfio que já temos a propulsão hiperespacial. A expressão de Fisher foi de total descrença. — Que o faz pensar assim? Sonhos? Intuição? — Não. Conheço uma mulher cuja irmã conhece alguém na equipe do Velho. Isso lhe satisfaz? — Claro que não. Vai ter de me dar mais detalhes. — Não posso. Escute, Crile, sou seu amigo. Sabe que o ajudei a recuperar a antiga posição no Escritório. — Sei, e sou muito grato. Tenho tentado retribuir-lhe o favor. — Está bem. Agora vou fornecer-lhe algumas informações sigilosas, e acho que vai considerar muito úteis e importantes. Promete que jamais revelará a alguém como conseguiu essas informações? — Prometo. — Você sabe o que temos feito ultimamente, é claro. — Sei — disse Fisher. Era o tipo de pergunta desnecessária, que não exigia outro tipo de resposta. Havia cinco anos, os agentes do Escritório (Fisher entre eles, nos últimos três anos) vinham vasculhando os depósitos de lixo de todas as colônias, à procura de um segredo muito especial. Desde que surgira o boato de que Rotor havia inventado a propulsão hiperespacial, todas as colônias (e a Terra, também) haviam iniciado um programa de pesquisa na área. Quando Rotor abandonara o Sistema Solar, os boatos se transformaram em certeza e os programas tinham sido intensificados. Presumivelmente, a maioria das colônias dispunha de parte da solução. De acordo com o Acordo de Intercâmbio Científico, essas peças do enigma deviam ser compartilhadas por todos, caso em que, provavelmente a descoberta da propulsão hiperespacial não demoraria muito. Entretanto, nesse caso em particular, seria pedir demais. Era impossível prever todas as aplicações práticas da nova técnica, e cada colônia tinha a esperança de ser a primeira a chegar ao resultado final, e com isso teria uma liderança importante em relação às outras. Por isso, cada uma guardava a sete chaves as informações de que dispunha, e ninguém conseguia dados suficientes para resolver o problema. A Terra, que dispunha de um bom serviço de investigações, tinha começado a espionar indiscriminadamente todas as colônias. A Terra estava pescando, e um desses pescadores era Fisher — Já conseguimos reunir muita informações, Crile. Mais do que o suficiente, acho eu. De modo que vamos ter a propulsão hiperespacial. E acho que vamos até a Estrela Vizinha. Você gostaria de participar dessa viagem? — Por que acha que eu iria, Garand? Se é que vai haver uma viagem assim, o que eu duvido. — Tenho certeza de que vai. Não posso lhe revelar minha fonte, mas sei que é confiável. E é claro que você vai. Terá oportunidade de ver sua mulher. E também sua filha. Fisher se remexeu, inquieto. Parecia que havia passado anos tentando esquecer aqueles olhos. Marlene devia ter seis anos agora. Provavelmente, já estava falando em um tom suave, destacando as palavras… como Roseanne. Provavelmente, adivinhava o que as pessoas estavam pensando… como Roseanne. — O que está falando não faz sentido, Garand. Mesmo que houvesse uma viagem assim, por que me convidariam? A prioridade seria para os especialistas. Além disso, se há uma pessoa que o Velho jamais haveria de chamar, essa pessoa sou eu. Ele pode ter me admitido de volta no Escritório, e permitido que eu participasse de novas missões, mas jamais me perdoou por haver fracassado em Rotor. — Aí é que está. É isso que o torna um especialista. Se o Velho está indo atrás de Rotor, como poderia dispensar o único terráqueo que viveu lá durante quatro anos? Quem seria capaz de entender melhor a psicologia dos rotorianos? Peça uma entrevista com o Velho. Diga isso para ele, mas não se esqueça de que, oficialmente, você não sabe que já temos a propulsão hiperespacial. Converse apenas em termos de possibilidades, faça uso do condicional. E não mencione o meu nome. Eu também não devia saber de nada. Fisher franziu a testa, pensativo. Seria possível? Não ousava sonhar. No dia seguinte, enquanto Fisher ainda estava decidindo se devia arriscar-se a pedir uma entrevista com Tanayama, a decisão foi tirada de suas mãos. Ele foi chamado. Os agentes comuns raramente eram chamados à presença do diretor. Havia muitos assistentes para lidar com eles. E quando um agente era chamado pelo Velho, raramente era para ouvir boas notícias. Assim, Crile Fisher se preparou, com resignação, para ser enviado para inspecionar as fábricas de fertilizantes. Tanayama olhou para ele detrás da escrivaninha. Nos três anos que se seguiram à descoberta da Estrela Vizinha, Fisher o vira poucas vezes. Não mudara quase nada. Era pequeno e enrugado havia tanto tempo que talvez não houvesse mais nada para mudar. Os olhos continuavam vivos, como sempre. Talvez até estivesse usando a mesma roupa de três anos atrás; Fisher não poderia dizer. Mas se a voz rouca também era a mesma, o tom era surpreendente. Parecia que, contra todas as expectativas, o Velho o havia chamado para elogiá-lo. — Fisher, você trabalhou muito bem — disse Tanayama em seu sotaque curioso. — Queria que ouvisse isso de mim pessoalmente. Fisher, ainda de pé (não tinha sido convidado para sentar- se), fez o que pôde para dissimular sua surpresa. — Naturalmente, não poderá haver nenhuma homenagem pública, nenhum espetáculo de lasers, nenhum desfile holográfico. Mas isso não diminui a importância do que você fez. — Isso é suficiente, Sr. Diretor. Muito obrigado. Tanayama ficou olhando fixamente para Fisher com seus olhos apertados. — É tudo que tem a dizer? Nenhuma pergunta? — Presumo, Sr. Diretor, que me dirá tudo que preciso saber. — Você é um agente, um homem capaz. Que conseguiu descobrir sozinho? — Nada, Sr. Diretor. Não descubro nada que não tenha instruções para descobrir. Tanayama anuiu com a cabeça. — Uma resposta apropriada, mas pouco convincente. O que é que você já sabe? — Parece satisfeito comigo, Sr. Diretor, de modo que que é provável que eu tenha fornecido ao Escritório informações que se revelaram úteis. — Sob que aspecto? — Acredito que no momento nada seria mais importante do que descobrir o segredo da propulsão hiperespacial. A boca de Tanayama fez um “Ah-h-h” silencioso. — E depois? Supondo que seja verdade, que vamos fazer em seguida, Fisher? — Viajar para a Estrela Vizinha. Localizar Rotor. — Nada mais que isso? Onde está a sua imaginação Nesse ponto, Fisher achou que seria tolice ficar calado. Jamais teria uma oportunidade melhor. — Só mais uma coisa. Quando a primeira nave da Terra movida por propulsão hiperespacial deixar o Sistema Solar, estarei a bordo. — No momento em que terminou a frase, Fisher compreendeu que tinha dito a coisa errada. A expressão de Tanayama mudou. — Sente-se! — exclamou ele em tom brusco. Fisher ouviu o movimento da cadeira atrás dele, rolando em sua direção ao captar a instrução de Tanayama, instrução que o seu motor computadorizado era capaz de compreender. Fisher sentou-se, sem olhar para trás para ver se a cadeira estava em posição. Fazer isso seria insultar o anfitrião, e, naquele momento, não tinha nenhuma vontade de insultar Tanayama. — Por que quer estar a bordo? Fisher se controlou para não gritar. — Sr. Diretor, minha esposa mora em Rotor. — Uma esposa que você abandonou há cinco anos. Acha que o receberia de volta? — Tenho uma filha, Sr. Diretor. — Tinha um ano quando você partiu. Acha que sabe que você é seu pai? Ou se importa com isso? Fisher não disse nada. Eram perguntas que havia feito para si mesmo, vezes sem conta. Tanayama esperou um pouco e depois disse: — Acontece que não vai haver nenhum vôo para a Estrela Vizinha, de modo que a questão é irrelevante. Mais uma vez, Fisher teve que lutar para controlar-se — Desculpe, Sr. Diretor. O senhor não afirmou que tem a propulsão hiperespacial. Disse apenas “Supondo que seja verdade…” Eu devia ter percebido que a escolha de palavras foi deliberada. — Devia, sim. Entretanto, é verdade, nós temos a propulsão hiperespacial. De modo que podemos vencer as distâncias interestelares como Rotor fez; pelo menos, poderemos, quando construirmos um veículo apropriado, o que pode levar um ou dois anos. E depois? Está sugerindo seriamente que devemos levar es se veículo até a Estrela Vizinha? — É apenas uma opinião, Sr. Diretor — disse Fisher, cautelosamente. — Uma opinião inútil. Pense, homem. A Estrela Vizinha está a mais de dois anos-luz de distância. Mesmo com a propulsão hiperespacial vamos levar mais de dois anos para chegar lá. Nossos técnicos me disseram que, embora a propulsão hiperespacial permita a uma nave viajar mais depressa que a luz por breves períodos de tempo, nenhum ponto do espaço pode ser alcançado mais depressa do que se a distância do ponto de origem ao ponto de destino fosse percorrida o tempo todo à velocidade da luz. — Mas se é assim… — Se é assim, você seria forçado a permanecer em uma pequena nave durante mais de dois anos, junto com os outros tripulantes. Acha que agüentaria uma viagem assim? Não, o que precisamos é de uma colônia, uma estrutura suficientemente grande para oferecer uma qualidade de vida aceitável aos tripulantes durante a jornada. Algo como Rotor. Quanto tempo levaria para construir algo assim? — Não faço idéia, Sr. Diretor. — Dez anos, no mínimo. Não se esqueça de que não construímos uma colônia há quase um século. Ultimamente, todas as colônias têm sido construídas por outras colônias. Se, de repente, começarmos a construir uma, atrairemos a atenção de todas as colônias já existentes, e isso deve ser evitado a todo custo. Além disso, se fosse possível construir uma colônia, equipá-la com propulsão hiperespacial e enviá-la para a Estrela Vizinha em uma viagem de dois anos, que faríamos quando ela chegasse lá? Como Colônia, seria vulnerável e fácil de destruir se Rotor dispuser de naves de guerra, o que é mais do que provável. Rotor deve ter mais naves de guerra do que podemos levar em nossa colônia. Afinal, estão lá há mais de três anos, e terão mais doze anos para se prepararem Não teríamos a mínima chance. — Nesse caso, Sr. Diretor… — Pare de tentar adivinhar, Agente Fisher. O que precisamos é de uma forma de viajar o tempo todo no hiperespaço, de modo a podermos cobrir qualquer distância no tempo que quisermos. — Desculpe, Sr. Diretor, mas isso é possível? Mesmo em tese? — Não sou eu nem você que vai dizer. Precisamos de cientistas para examinar o assunto, mas não os temos. Durante um século ou mais, os melhores cientistas da Terra vêm emigrando para as colônias. Temos que inverter essa tendência. Precisamos invadir as colônias, por assim dizer, e convencer os físicos e engenheiros a voltarem para a Terra. Podemos oferecer-lhes muita coisa, mas tudo deve ser feito com muito tato. Não podemos agir abertamente, caso contrário, as colônias tomarão medidas preventivas. Agora… — Sim, Sr. Diretor? — Uma das pessoas que tenho em mente é T. A. Wendel, que, pelo que dizem, é quem mais entende de hiperespaço em todo o Sistema Solar… — Foram os hiperespacialistas de Rotor que descobriram a propulsão hiperespacial — observou Fisher, com um certo sarcasmo na voz. Tanayama não se abalou. — Muitas descobertas foram feitas por acidente; um cérebro inferior pode sair tropeçando enquanto um cérebro superior perde tempo estabelecendo fundamentos mais firmes. Isto tem acontecido com relativa freqüência. Além disso, Rotor descobriu apenas uma forma de viajar à velocidade da luz. Estou atrás de uma forma de viajar muito mais depressa que a luz. Para isso, preciso de Wendel. — Quer que eu vá buscá-lo? — Buscá-la. É uma mulher. Tessa Anita Wendel, de Adelia. — Oh? — É por isso que preciso de você para o trabalho. Aparentemente — continuou Tanayama, com uma expressão levemente divertida — você exerce uma atração irresistível sobre as mulheres. O rosto de Fisher continuou impassível. — Peço perdão por discordar, Sr. Diretor, mas não penso assim. Nunca pensei assim. — Os relatórios não deixam margem a dúvidas. Wendel é uma mulher de meia-idade, quarenta e poucos anos, divorciada duas vezes. Não deve ser difícil de persuadir. — Para ser franco, Sr. Diretor, a missão não me agrada e, nessas circunstâncias, talvez fosse melhor designar outro agente para o trabalho. — Mesmo assim, terá de ser você. Se acha que não está suficientemente motivado para executar a missão a contento, vou fornecer-lhe a motivação, Agente Fisher. O senhor fracassou em Rotor, mas conseguiu se redimir, em parte, fornecendo indicações que levaram à descoberta da Estrela Vizinha. Esta é sua oportunidade de redimir-se totalmente. Caso, porém, não consiga trazer essa mulher para a Terra, isso será um fracasso maior que o de Rotor, e o senhor nunca terá outra oportunidade para se redimir. Entretanto, não quero que trabalhe movido apenas por motivações negativas. Traga Wendel para cá e quando construirmos uma nave superluminal e a lançarmos em direção à Es trela Vizinha, poderá estar a bordo, se ainda quiser. — Farei o possível, e faria o possível, mesmo que não tivesse me fornecido nem a motivação negativa nem a positiva. — Uma excelente resposta — disse Tanayama, permitindo se o mais leve dos sorrisos —, e sem dúvida muito bem ensaiada. Fisher deixou a sala, cônscio de que havia sido convocado a participar da pescaria mais importante da história do planeta. QUINZE PRAGA Eugenia Insigna sorriu para Genarr durante a sobremesa. — Você parece levar uma vida bastante agradável aqui. Genarr retribuiu o sorriso. — Agradável, mas claustrofóbica. Vivemos em um mundo muito grande, mas estamos limitados pelo Domo. A vida tende a ficar monótona. Quando conheço alguém interessante, é por pouco tempo; as pessoas não passam aqui mais que alguns meses. Mas a maioria dos trabalhadores me traz um tédio profundo, embora provavelmente não tanto quanto o que trago a eles. É por isso que a chegada de vocês duas teria sido um espetáculo de holovisão, mesmo que fosse outra pessoa. Sendo você… — Bondade sua — disse Insigna, em tom triste. Genarr pigarreou. — Marlene me avisou, para o meu próprio bem, que “ ainda não superou o episódio do… Insigna não deixou que terminasse. — Ainda não vi sinais desse espetáculo de holovisão a que se referiu. Genarr desistiu. — Apenas uma maneira de falar. Estamos planejando uma pequena festa para amanhã à noite, ocasião em que será apresentada formalmente, e todos terão chance de conhecê-la. — E discutir minha aparência, meu gosto em matéria de roupas, etc. — Tenho certeza. Mas Marlene será convidada, também, o que significa, suponho, que ficaremos conhecendo muito mais a respeito de nós do que a respeito de você. Insigna olhou para ele, apreensiva. — Marlene andou fazendo das suas? — Está perguntando se interpretou minha linguagem corporal? Sim, senhora. — Eu a proibi de fazer isso. — Acho que ela não pode evitar. — Tem razão. Não pode. Mas a proibi também de lhe contar a respeito. Estou vendo que não adiantou nada. — Na verdade, eu lhe ordenei que me contasse. Disse a ela que teria de obedecer, já que sou o Comandante daqui. — Sinto muito. Ela pode ser tão inconveniente… — Mas não foi. Não para mim. Eugenia, por favor, compreenda. Gosto de sua filha. Gosto muito dela. Imagino que tenha tido uma infância muito infeliz, sendo alguém que sabe demais e de quem ninguém gosta. Considero um milagre que tenha conservado o que você chama de virtudes prosaicas. — Estou lhe avisando. Ela não vai mais deixar você em paz. E tem apenas quinze anos. — Existe uma lei, penso eu, que impede que as mães se lembrem de como eram quando tinham quinze anos. Ela mencionou casualmente um rapaz, e você deve saber que a dor-de-cotovelo é tão aguda aos quinze anos do que aos vinte e cinco. Talvez seja até mais aguda. Se bem que talvez você tenha tido uma adolescência mais feliz, por causa da sua aparência. Não se esqueça de que Marlene se encontra em uma posição particularmente vulnerável. Ela sabe que não é bonita, mas que é inteligente. Acha que a inteligência deveria compensar a falta de beleza e vê que, na prática isso não acontece, o que a deixa profundamente frustrada — Estou vendo, Siever — disse Insigna, tentando parecer jovial —, que você tem jeito para psicólogo! — Não, não é isso. Só consigo entender como Marlene se sente porque também passei pelo que ela está passando. — Oh… Insigna não sabia o que dizer. — Está tudo bem, Insigna. Não tenho intenção de sentir pena de mim mesmo, e não estava tentando conquistar a sua simpatia. Tenho quarenta e nove anos, e não quinze, e consegui a verdadeira paz interior. Se fosse bonito e estúpido quando tinha quinze anos, ou vinte e um, como, naquela época da vida, tanto desejei ser, hoje não seria mais bonito… mas continuaria a ser estúpido. De modo que, a longo prazo, levei a melhor, como sem dúvida, acontecerá com Marlene… se ela chegar até lá. — Que quer dizer com isso, Siever? — Marlene me contou que conversou com nosso bom amigo Pitt e que implicou deliberadamente com ele para forçá-lo a permitir que vocês duas viessem para Eritro. — Não aprovo o que minha filha fez. Não estou falando em manipular Pitt, porque não acho que Pitt possa ser manipulado. Estou falando em tentar manipulá-lo. Marlene está chegando ao ponto em que pensa que pode controlar as pessoas como se fossem marionetes, e isso pode trazer-lhe sérios problemas. — Eugenia, não quero assustá-la, mas tenho a impressão de que Marlene já está com sérios problemas. Pelo menos, Pitt espera que ela esteja. — Ora, Siever, isso é impossível. Pitt pode ser teimoso e ditatorial, mas não tem um pingo de maldade. Não iria fazer nada contra uma simples adolescente só porque ela o deixou sem graça. O jantar havia terminado, mas as luzes ainda estavam com baixa intensidade no elegante apartamento de Genarr, e Insigna reagiu com uma careta quando Genarr se inclinou para apertar o botão que ligava o escudo protetor. — Segredos, Siever? — perguntou, com um riso forçado. — Sim, na verdade, Eugenia, vou ter que bancar de novo o psicólogo. Você não conhece Pitt tão bem como eu. Tive a coragem de desafiá-lo, e é por isso que estou aqui. Ele quis se livrar de mim. No meu caso, está satisfeito em manter-me a distância. No caso de Marlene, porém, isso pode não ser suficiente. Outro riso forçado. — Ora, vamos, Siever. O que está tentando dizer. — Escute, e você vai entender. Pitt gosta de agir furtivamente. Detesta quando alguém adivinha suas intenções. Aprecia a sensação de estar se movendo por uma estrada que só ele conhece, arrastando os outros com ele. — Talvez você tenha razão. Ele manteve a existência de Nêmesis em segredo durante muito tempo… chegou a me proibir de tocar no assunto com outras pessoas. — Ele tem muitos segredos, a maioria dos quais eu e você desconhecemos, tenho certeza. Mas lá está Marlene, para quem os pensamentos e emoções das outras pessoas são transparentes. Ninguém gosta disso… muito menos Pitt. Por isso, ele a manda para cá… e você, também, já que Marlene não viria sem você. — Muito bem. E daí? — Acha que ele vai permitir que sua filha volte para Rotor? — Isso é paranóia, Siever. Não pode acreditar que Pitt pretenda manter minha filha em Eritro para sempre. — Ele pode fazer isso, sim. Eugenia, você não conhece a história do Domo como eu, e como Pitt, e como ninguém além de nós dois conhece. É mais um dos segredos de Pitt. Você precisa saber por que permanecemos aqui no Domo e não fazemos nenhum esforço para colonizar Eritro. — Você já explicou. O tipo de luz… — Esta é a explicação oficial, Eugenia. Esqueça a luz; a gente pode se acostumar com ela. Pense no resto que nós temos: um mundo com uma gravidade normal, uma atmosfera respirável, temperaturas amenas, um clima parecido com o da Terra, uma população de procariotes inofensivos, nenhuma forma de vida multicelular. No entanto, nada fazemos para colonizar o mundo. — Por que não? — Logo depois que o Domo foi construído, alguns operários saíram para explorar o exterior. Não tomaram nenhuma precaução especial: respiraram o ar, beberam a água. — Sim? — Alguns ficaram doentes. Uma doença mental. Irreversível. Nenhuma forma violenta de loucura, mas ficaram… divorciados da realidade. Alguns melhoraram com o tempo, mas nenhum, pelo que sei, se recuperou por completo. Aparentemente, não se trata de um mal contagioso. Foram todos internados em Rotor.. muito discretamente. Eugenia franziu a testa. — Está falando a verdade, Siever? Nunca Ouvi uma palavra a respeito. — Lembro mais uma vez a você que Pitt gosta de segredos. Esta é uma coisa que você não precisava saber. Não era do seu departamento. Mas eu precisava saber, porque fui mandado pa ra cá para resolver o assunto. Se minha missão falhasse, poderíamos ter de abandonar Eritro, o que certamente despertaria suspeitas em toda a população. — Ficou em silêncio por um momento. — Não deveria estar lhe contando isto. Em certo sentido, estou traindo o juramento que fiz quando tomei posse deste cargo. Entretanto, pelo bem de Marlene… Um olhar de apreensão apareceu no rosto de Eugenia. — Que está dizendo? Que Pitt… — Estou dizendo que Pitt pode estar esperando que Marlene seja atacada pela “Praga de Eritro”. Não seria uma doença mortal, mas afetaria o seu cérebro de tal forma que provavelmente perderia o dom que Pitt tanto teme… — Mas isso é horrível, Siever. Impensável. Submeter uma criança… — Não estou dizendo que vá acontecer, Eugenia. O que Pitt deseja não é necessariamente o que vai acontecer. Depois que cheguei aqui, introduzi vários métodos de proteção. Não saímos do Domo, a não ser em trajes protetores, e não ficamos lá fora por mais tempo que o necessário. Os métodos de filtragem do Domo também foram melhorados. Depois que instituí essas medidas, só tivemos dois casos, e foram brandos. — Mas qual é a causa da doença, Siever? Genarr riu. — Não sabemos. Isso é o pior. Experiências cuidadosas mostraram que não há nada no ar ou na água que possa causar a doença. Nem no solo; afinal de contas, temos o solo aqui no Domo, não podemos nos separar dele. Temos o ar e a água, também, mas filtrados e esterilizados. Entretanto, muitas pessoas respiraram o ar e beberam a água de Eritro e continuaram mais saudáveis do que nunca. — Nesse caso, devem ser os procariotes. — Impossível. Nós todos já estivemos expostos a eles, e foram usados em várias experiências com animais. Nada aconteceu. Além disso, se os procariotes fossem os responsáveis, a Praga deveria ser contagiosa, o que não é o caso. Fizemos experiências com a radiação de Nêmesis e constatamos que é inofensiva. O que é mais: uma vez, apenas uma vez, uma pessoa que nunca havia saído do Domo contraiu a doença. É um mistério. — Não tem nenhuma teoria? — Eu? Não. Limito-me a ficar satisfeito porque não aconteceram novos casos. Entretanto, enquanto não conhecermos a causa não podemos ter certeza de que não começará tudo de novo. Houve uma sugestão… — Qual foi? — Um psicólogo fez essa sugestão, que transmiti a Pitt. Ele afirmava que as pessoas atingidas pela doença eram diferentes das outras: mais inteligentes, mais criativas, mais originais. Em sua opinião por algum motivo, os cérebros mais brilhantes eram também os menos resistentes à Praga. — Acha que isso é possível? — Não sei. O problema é que não há nenhuma outra diferença. Os dois sexos são igualmente atingidos, sem distinção de idade, educação ou características físicas. Naturalmente, as vítimas da Praga constituem uma amostra bastante restrita, de modo que as estatísticas não são confiáveis. Pitt achou que devíamos aceitar provisoriamente a teoria do psicólogo, de modo que, nos últimos anos, não veio ninguém para cá que tivesse uma inteligência acima da média. Procuramos gente medíocre. Como eu. Sou um exemplo típico de indivíduo imune. Tenho um cérebro comum. Certo? — Ora, vamos, Siever, você não é… — Por outro lado — disse Genarr, sem esperar para ouvir o elogio —, eu diria que Marlene possui um cérebro fora do comum… — Oh, sim! — exclamou Eugenia. — Agora entendo aonde você quer chegar! — Quando Pitt descobriu que Marlene tinha esse dom e que queria ir para Eritro, deve ter pensado que, simplesmente concordando com o pedido da menina, resolveria o problema de forma definitiva — Pelo que você está dizendo, quanto mais cedo voltarmos para Rotor, melhor. — Sim, mas acho que isso não será tão fácil. Se conheço Pitt, ele vai insistir em que essas medidas que você pretende fazer são muito importantes e devem ser terminadas a qualquer custo. Não, só posso sugerir que você termine essas medidas o mais rápido que puder. Quanto a Marlene, tomaremos todas as precauções que for possível. Há muito tempo que ninguém é atingido pela Praga e, por enquanto, a idéia de que os cérebros mais inteligentes são particularmente vulneráveis não passa de uma teoria. Não há razão para sermos pessimistas. Podemos manter Marlene em segurança e frustrar os planos de Pitt. Você vai ver. Insigna ficou olhando para Genarr, sentindo um aperto no coração. DEZESSEIS HIPERESPAÇO Adelia era uma colônia agradável, muito mais agradável do que Rotor. Crile Fisher estivera em seis colônias depois de Rotor e achara todas mais agradáveis que Rotor. (Fez uma pausa para recordar os nomes e suspirou. Eram sete, e não seis. Estava ficando esquecido. Talvez fosse excesso de trabalho.) Fosse qual fosse o número, Adelia era a mais agradável das colônias que Crile visitara. Não, talvez, fisicamente. Rotor era uma colônia mais antiga, com mais tradições. Havia um clima de eficiência, uma sensação de que cada pessoa conhecia exatamente o seu lugar e estava satisfeita com ele. Naturalmente, Tessa estava ali em Adelia… Tessa Anita Wendel. Crile ainda não a havia abordado, talvez porque o fato de Tanayama o considerar como irresistível para as mulheres o deixara abalado. Por mais que tentasse considerar o comentário como uma brincadeira, via-se forçado, quase contra a vontade, a agir com prudência. Não queria que uma atitude precipitada levasse a um insucesso capaz de prejudicar a imagem que o superior fazia dele. Apenas duas semanas depois de chegar à colônia foi que Fisher a viu pela primeira vez. Sempre se surpreendia com o fato de nas colônias ser relativamente fácil conseguir aproximar de qualquer pessoa. Apesar de todas as viagens que fizera, jamais conseguira se acostumar com o pequeno tamanho das colônias e suas populações, com o modo como todo mundo se conhecia dentro do seu círculo pessoal, todo mundo, mesmo… e quase todo mundo fora desse círculo, também. Quando, afinal, conseguiu ver Tessa Wendel, ficou bastante impressionado. Ao descrevê-la como uma mulher de meia-idade, divorciada duas vezes, acompanhando a descrição com uma expressão de desagrado, como se estivesse encarregando Fisher de uma missão difícil, Tanayama o fizera imaginar uma mulher dura, calejada, talvez com um tique nervoso, e uma atitude cínica (ou ansiosa) em relação aos homens. Vista a uma distância moderada, Tessa não parecia nada disso. Era quase tão alta quanto Fisher, e morena, de cabelos lisos e lustrosos. Parecia muito viva e sorria com facilidade. As roupas eram de uma simplicidade agradável, como se ela saísse do seu caminho para fugir dos excessos. Era esbelta e de aparência surpreendentemente jovem. Fisher foi forçado a perguntar-se por que se teria divorciado duas vezes. Depois de conhecê-la, estava propenso a pensar que talvez se havia cansado dos maridos, e não o oposto, embora o bom senso lhe dissesse que a compatibilidade era um coisa impossível de avaliar apenas pela aparência. Precisava comparecer a algum acontecimento social no qual ela também estivesse presente. O fato de ser um terráqueo era um empecilho, mas havia pessoas em todas as colônias que, de uma forma ou de outra, estavam a serviço da Terra. Uma delas certamente providenciaria o “lançamento” de Fisher, para usar a expressão empregada em quase todas as colônias para designar a entrada de alguém em um círculo social. Chegou o dia, portanto, em que ele e Wendel estavam frente a frente, e ela olhou para Fisher pensativamente, os olhos percorrendo-lhe o corpo de cima para baixo e depois de baixo para ncima, após o que se seguiu o inevitável. — O senhor é da Terra, não é, Sr. Fisher? — Sou, sim, Dra. Wendel. Sinto muito se isso desagrada a senhora. — Não me desagrada. Presumo que tenha sido desconta minado. — Fui, sim. Até a morte, quase. — E por que enfrentou o processo de descontaminação para vir para cá? — Porque me disseram que as mulheres adelianas são lindíssimas — respondeu Fisher, sem olhar diretamente para ela, mas ansioso por ver o efeito que causava. — Deve estar desapontado. — Pelo contrário, o que me disseram era a mais pura verdade. — Você é um procurador, sabia? Fisher não sabia o que era “procurador” na gíria adeliana, mas Wendel estava sorrindo, de modo que chegou à conclusão de que o primeiro contato tinha sido bastante satisfatório. Seria porque ele era irresistível? De repente, se lembrou de que nunca havia tentado ser irresistível com Eugenia? Simplesmente procurara uma forma de ser lançado na difícil sociedade de Rotor. A sociedade de Adelia não era tão difícil, pensou Fisher, mas era melhor não fazer pouco dos próprios encantos. Um mês depois, Fisher e Wendel estavam suficientemente à vontade um com o outro para passar algum tempo juntos em um ginásio de baixa gravidade. Fisher havia quase apreciado o exercício, mas apenas quase, porque nunca se acostumara com a ginástica em baixa gravidade o suficiente para evitar uma certa sensação de náusea. Em Rotor, ele não participava desse tipo de atividade, por não ser rotoriano de nascimento. (Não havia nenhuma lei contra isso, mas os costumes freqüentemente são mais importantes que as leis.) Tomaram um elevador para um nível com gravidade normal, e Fisher sentiu o estômago voltar ao normal. Tanto ele como Wendel estavam usando trajes sumários, e ele teve a impressão de que ela estava tão consciente do seu corpo quanto ele estava do dela. Depois de tomarem banho, os dois vestiram roupões e foram para uma das cabinas, onde encomendaram uma refeição ligeira. — Você fica bem à vontade em baixo G para um terráqueo, Crile. Está se divertindo em Adelia? — Sabe que estou, Tessa. Um terráqueo jamais conseguiria se acostumar totalmente com um mundo pequeno, mas sua presença tem compensado todas as desvantagens. — É exatamente o que diria um procurador. Como Adélia se compara a Rotor? — A Rotor? — Ou às outras colônias onde você esteve? Posso dizer o nome de todas elas, Crile. Fisher estava confuso. — Que foi que você fez? Investigou minha vida? — Naturalmente. — Sou tão interessante assim? — Eu me interesso por qualquer um que sai do seu cantinho para se interessar por mim. Quero saber por quê. Excluindo a possibilidade de sexo, naturalmente. — Por que estou interessado em você, então? — Você é que vai me dizer. Por que esteve em Rotor? Você passou lá tempo suficiente para se casar e ter uma filha, mas deu o fora antes que ele partisse. Estava com medo de ter que passar o resto da vida em Rotor? Não gostava de lá? Depois de se sentir confuso, Fisher estava agora se sentindo acossado. — Na verdade, eu não me sentia muito bem em Rotor porque os rotorianos não gostavam de mim… eles não aceitam os terráqueos, sabe? E você tem razão. Eu não queria passar o resto da vida como um cidadão de segunda classe. Outras colônias são mais hospitaleiras. Adelia é uma delas. — Acontece que Rotor tinha um segredo no qual a Terra estava interessada, não tinha? — perguntou Wendel, com os olhos brilhando. — Um segredo? Você deve estar falando da propulsão hiperespacial. — É, acho que é disso que estou falando. E acho que é disso que você estava atrás. — Eu? — Você, claro. Conseguiu o que queria? Afinal, foi por isso que se casou com uma cientista rotoriana, não foi? — Apoiou o rosto nas mãos, os cotovelos na mesa, e inclinou-se na direção de Fisher. Fisher sacudiu a cabeça e respondeu, cautelosamente: — Minha mulher jamais conversou comigo sobre esse assunto. Você está totalmente enganada. Wendel ignorou a observação. — E agora quer conseguir o segredo de mim. Como planeja fazer isso? Casando-se comigo? — Você me revelaria alguma coisa se eu me casasse com você? — Não. — Então o casamento parece estar fora de questão, não é? — Que pena — disse Wendel, sorrindo. — Está me fazendo essas perguntas porque você é uma hiperespacialista? — Onde foi que você descobriu qual é a minha especialidade? Na Terra, antes de vir para cá? — Seu nome está no Quem é Quem em Adelia. — Ah, você me investigou, também! Somos uma dupla interessante. Reparou que eu apareço como física teórica? — É, mas eu vi uma lista dos artigos que você escreveu e em quase todos eles há a palavra “hiperespaço”, e então concluí que você devia ser uma hiperespacialista. — Na verdade, sou uma física teórica que se interessa pelo hiperespacialismo do ponto de vista puramente teórico. Nunca tentei colocar em prática nenhuma das minhas idéias. — Mas Rotor tentou. Isso a deixou aborrecida? Afinal, alguém em Rotor passou à sua frente. — Por que deveria ficar aborrecida? A teoria é interessante, mas não as aplicações. Se você lesse os meus artigos, em vez de se limitar aos títulos, descobriria que eu afirmo, com todas as letras, que a propulsão hiperespacial não vale o esforço. — Os rotorianos conseguiram lançar uma nave à grande distância e estudaram as estrelas. — Está se referindo à Sonda profunda. Isso permitiu a Rotor obter medidas de paralaxe para várias estrelas relativamente afastadas, mas isso compensou o investimento? A que distância a Sonda Profunda chegou? Apenas alguns meses-luz. Isso não é muito. — Eles fizeram mais que lançar a Sonda Profunda. A colônia inteira partiu. — Sei disso, Fisher. Aconteceu em 22, há seis anos. E tudo que sabemos foi que partiram. — Isso não basta? — Claro que não. Para onde foram? Ainda estão vivos? Nas colônias, os seres humanos nunca estiveram totalmente isolados. Havia a Terra nas vizinhanças, e outras colônias, também. Será que algumas dezenas de milhares de seres humanos estão em condições de sobreviver, sozinhos no Universo, em uma pequena colônia? Não temos certeza de que isso seja psicologicamente possível. Em minha opinião, não é. — Provavelmente, estavam à procura de um planeta habitável. Não pretendiam passar o resto da existência em Rotor. — Como iriam encontrar um planeta? Faz seis anos que partiram. Como a propulsão hiperespacial não lhes permite viajar com uma velocidade média maior que a da luz, até agora só poderiam ter chegado a duas estrelas. Uma é Alfa Centauri, um sistema de três estrelas, uma das quais é uma anã vermelha, localizada a uma distância de quatro vírgula três anos-luz do Sistema Solar. A outra possibilidade é a Estrela de Barnard, uma anã vermelha localizada a cinco vírgula nove anos-luz de distância do Sistema Solar. Quatro estrelas: uma muito parecida com o Sol, uma mais ou menos parecida com o Sol e duas anãs vermelhas. As duas estrelas parecidas com o Sol fazem parte de um sistema binário, e portanto é pouco provável que disponham de um planeta semelhante à Terra em uma órbita estável. Para onde iriam, então? Eles não vão conseguir, Crile. Sinto muito. Sei que sua mulher e filha estavam em Rotor, mas eles não vão conseguir. Fisher manteve a calma. Sabia de uma coisa que ela desconhecia: da existência da Estrela Vizinha… mas era uma anã vermelha, também. — Então acha que as viagens interestelares são impossíveis? — perguntou a Wendel. — Na prática, sim, se não pudermos contar com nada melhor que a propulsão hiperespacial. — Do jeito que você está falando, até parece que existe alguma coisa melhor que a propulsão hiperespacial, Tessa. — Talvez haja. Não faz muito tempo, a própria propulsão hiperespacial era considerada impossível. Por que não podemos sonhar com vôos totalmente hiperespaciais, a velocidades maiores que a da luz? Se pudéssemos viajar a velocidades superluminais, toda a Galáxia, talvez todo o Universo, poderia se transformar em um grande Sistema Solar. — É um lindo sonho, mais será viável? — Desde a partida de Rotor, já tivemos três conferências a respeito do assunto, da qual participaram todas as colônias. — Somente as colônias? E a Terra? — A Terra enviou observadores, mas hoje em dia a Terra não é exatamente o paraíso dos físicos. — A que conclusões chegaram nessas conferências? Wendel sorriu. — Você não é físico. — Deixe de fora as partes difíceis. Estou curioso. Ela se limitou a sorrir. Fisher bateu na mesa com o punho cerrado. — Esqueça essa sua teoria de que sou algum tipo de agente secreto atrás dos seus segredos. Tenho uma filha em algum lugar do espaço, Tessa. Você diz que provavelmente ela está morta. E se estiver viva? Há alguma chance de que eu possa… O sorriso de Wendel desapareceu. — Desculpe. Não pensei nisso. Mas seja prático. Localizar uma colônia em um volume de espaço que, no momento atual, pode ser representado por uma esfera com um raio de seis anos-luz, e que está aumentando sem parar, é uma tarefa obviamente impossível. Levamos mais de um século para encontrar o décimo planeta, embora tivéssemos um volume muito menor de espaço para vasculhar e o planeta fosse muito maior do que Rotor. — A esperança é a última que morre. É possível viajar mais depressa que a luz? Quero que me diga sim ou não. — Vou ser franca com você: a maioria acha que não. Talvez alguns achem que é possível, mas eles dizem isso bem baixinho. — Não há ninguém que diga que sim em alto e bom som? — Só conheço uma pessoa. Eu mesma. — Você acha que é possível? — disse Fisher, com uma surpresa que não precisava fingir. — Diz isso abertamente? — Escrevi alguns artigos sobre o assunto. Aqueles artigos dos quais você se limitou a ler o título. Ninguém concorda comigo, é claro, e já me enganei antes, mas acho que desta vez estou certa. — Por que outros acham que você está errada? — Essa é a parte difícil. É uma questão de interpretação. A propulsão hiperespacial desenvolvida pelos rotorianos, cujos princípios, a propósito, já são conhecidos pelos cientistas de todas as colônias, depende do fato de que o produto da relação entre a velocidade da nave pela velocidade da luz, multiplicada pelo tempo, é constante, onde a relação entre a velocidade da nave e a velocidade da luz é um número maior que a unidade. — O que significa isso na prática? — Que se você está viajando mais depressa que a luz, quanto maior a sua velocidade, menor o tempo durante o qual consegue manter essa velocidade, e maior o tempo que você deve viajar mais devagar que a luz antes de poder viajar de novo mais depressa que a luz. Como resultado, na média, você não consegue cobrir uma dada distância viajando mais depressa que a luz. — E daí? — Essa limitação da velocidade se parece com as limitações impostas a outras grandezas físicas pelo princípio de indeterminação, e todos nós estamos convencidos de que é impossível violar o princípio de indeterminação. Assim, se o princípio de indeterminação está envolvido, as viagens hiperespaciais são teoricamente impossíveis; assim pensa a maioria dos físicos no momento. Minha opinião, por outro lado, é de que a limitação da velocidade apenas se parece com as limitações impostas pelo princípio de indeterminação, caso em que a possibilidade de viajar no hiperespaço, a uma velocidade maior que a da luz, por um tempo ilimitado, não pode ser descartada. — A questão deverá ser esclarecida no futuro próximo? — Não me parece provável — respondeu Wendel, sacudindo a cabeça. — As colônias não estão interessadas em desenvolver a propulsão hiperespacial. Ninguém parece disposto a repetir a experiência de Rotor e viajar durante anos para uma região desconhecida do espaço. Por outro lado, nenhuma colônia vai investir uma enorme quantidade de dinheiro, recursos e mão-de-obra especializada em uma técnica que a grande maioria dos cientistas considera teoricamente impossível. Fisher inclinou-se para a frente. — Isso não deixa você frustrada? — Claro que sim. Sou física e gostaria de provar que minha visão do Universo está correta. Entretanto, tenho de me conformar com o fato de que jamais conseguirei dinheiro suficiente para minhas pesquisas em nenhuma das colônias. — Acontece, Tessa, que a Terra está disposta a financial suas pesquisas… independente do custo. — Verdade? — Tessa sorriu e estendeu a mão para afagar os cabelos de Fisher, de forma lenta e sensual. Bem que eu desconfiava que acabaríamos falando da Terra. Fisher segurou a mão de Wendel e pousou-a delicadamente sobre a mesa. — Você estava dizendo a verdade a respeito de sua opinião sobre as viagens no hiperespaço não estava, Wendel? — Juro. — Então a Terra precisa de você. — Por quê? — Porque a Terra precisa das viagens no hiperespaço, e você é a única física importante que considera isso possível. — Se você sabia disso, Crile, para que o interrogatório? — Eu não sabia disso até você me contar. Eu só sabia que você é a mais brilhante cientista viva. — Oh, eu sou, eu sou — disse Wendel, em tom de brincadeira. — E mandaram você me buscar? — Vim aqui para convencê-la. — Convencer-me a fazer o quê? Ir com você para a Terra? Superpovoada, suja, empobrecida, sujeita aos caprichos do tempo. Que idéia maravilhosa! — Preste atenção, Tessa. A Terra não é toda igual. Pode ter todos esses defeitos, mas existem partes da Terra muito bonitas e tranqüilas, e são apenas essas partes que você vai ver. Na verdade, você não faz a menor idéia de como é a Terra. Nunca esteve lá, esteve? — Nunca. Nasci aqui em Adelia. Visitei outras colônias, mas nunca estive na Terra, obrigada. — Então não pode saber como é a Terra. Não pode saber como é um mundo grande. Um mundo de verdade. Vive aqui em um ambiente fechado, em uma caixa de brinquedos, com alguns quilômetros de superfície, juntamente com um punhado de pessoas. Vive em um mundo em miniatura, que conhece como a palma da sua mão e não tem mais nada para lhe oferecer. A Terra, por outro lado, tem mais de seiscentos milhões de quilômetros quadrados de Superfície. Tem oito bilhões de habitantes. E uma variedade infinita… muita coisa realmente ruim, mas também muita coisa boa! — Vocês são muito pobres. A ciência na Terra está muito atrasada. — Porque a maioria dos cientistas se mudou para as colônias. É por isso que precisamos de você e de outros. Venha para a Terra! — Ainda não entendo por quê. — Porque temos metas, ambições, desejos. As colônias estão muito acomodadas! — De que adiantam todas essas metas, ambições e desejos? A pesquisa hiperespacial é muito dispendiosa. — E a riqueza da Terra per capita é muito pequena, devo admitir. Individualmente, somos pobres, mas oito bilhões de pessoas, cada uma contribuindo com uma pequena quantia, podem juntar uma boa soma. Nossos recursos, mal empregados como têm sido, ainda são enormes, e podemos dispor de mais dinheiro e mão-de-obra que todas as colônias juntas… se for para alguma causa que todos considerem prioritária. Eu lhe asseguro que a Terra considera os vôos hiperespaciais como uma necessidade urgente. Venha para a Terra, Tessa, e será tratada como o mais precioso dos recursos, um cérebro brilhante de que necessitamos desesperadamente… e que não podemos substituir por nenhum elemento local. — Não estou certa de que Adelia me concederia um visto de saída — disse Wendel. — Pode ser uma colônia acomodada, mas também conhece o valor dos cérebros. — Não podem objetar a que você compareça a um congresso científico na Terra. — Está sugerindo que eu deserte? — Prometo-lhe que será muito bem-tratada. Terá uma vida mais confortável do que aqui. Será a diretora do projeto hiperespacial, com uma verba ilimitada ao seu dispor. Poderá planejar as experiências que quiser, construir aparelhos, fazer observações… — É uma oferta tentadora! — Há alguma coisa mais que você deseje? — perguntou Fisher, muito sério. — Por que mandaram você? Por que escolheram um homem atraente? Estavam esperando que levasse de volta uma física idosa, sentimental, frustrada, atraída pelo seu corpo como um peixe pela isca? — Não sei o que estava pensando quem me mandou, Tessa, mas não era isso que eu estava pensando. Não depois de conhecê-la. Você não é idosa. Também não acredito que seja sentimental ou frustrada. O que a Terra está lhe oferecendo é o sonho de qualquer físico. Isso não tem nada a ver com o fato de você ser homem ou mulher, velha ou moça. — Suponha que eu seja teimosa e me recuse a ir para a Ter ra. Que medidas extremas você está instruído a tomar para me persuadir? Esquecer sua repugnância e fazer amor comigo? — Wendel cruzou os braços sobre os magníficos seios e olhou interrogativamente para Fisher. — Mais uma vez, não posso dizer o que estava pensando quem me enviou — disse Fisher devagar, escolhendo as palavras. — Fazer amor não era parte de minhas instruções explícitas, nem de minhas intenções, mas se fosse, eu lhe asseguro que tal perspectiva não me desagradaria. Achei, porém, que você reconheceria as vantagens do ponto de vista de uma cientista e não faria pouco de você supondo que necessitaria de mais alguma coisa. — Pois está muito enganado. Reconheço as vantagens do ponto de vista de uma cientista, e estou ansiosa para aceitar a oferta e fazer o que estiver ao meu alcance para desenvolver o vôo hiperespacial… mas também não quero que desista de me persuadir por outros métodos. — Mas… — Eu suma: se você me quer, deve pagar o preço. Use de todos os recursos para me persuadir, ou não irei para a Terra. Por que supõe que estamos aqui, em uma cabina? Afinal, para que servem as cabinas? Depois que fizemos ginástica, tomamos um banho, comemos alguma coisa, bebemos alguma coisa, conversamos, tivemos prazer em todas essas coisas, está na hora de experimentarmos outro tipo de prazer. Eu insisto. Convença-me a ir para a Terra. — A um toque dos seus dedos, a iluminação da cabina diminuiu sensivelmente DEZESSETE A SALVO Insigna se sentia inquieta. Siever Genarr estava insistindo para que Marlene fosse consultada. — Você é mãe dela, Eugenia, e não pode deixar de pensar nela como uma criança. Leva algum tempo para a mãe perceber que ela não é uma ditadora, que a filha não é sua propriedade. Eugenia Insigna desviou os olhos. — Nada de sermões, Siever. Você não tem filhos. É fácil ser crítico com os filhos dos outros. — Está me achando excessivamente crítico? Desculpe. Digamos que não estou tão emocionalmente ligado quanto você à memória de uma criança. Eu gosto da sua filha, mas para mim ela é uma jovem adolescente com um cérebro extraordinário. Ela é importante, Eugenia. Tenho a sensação de que é muito mais importante do que eu e você. Ela deve ser consultada… — É com a sua segurança que estou preocupada — protestou Insigna. — Eu também, mas justamente por isso ela deve ser consultada. Marlene é jovem e inexperiente, mas pode saber melhor do que nós o que deve ser feito. Vamos discutir o assunto entre nós, como se fôssemos três adultos. Prometa-me, Eugenia, que não tentará fazer uso da autoridade materna. — Como posso prometer isso? Mas, está bem, vamos conversar com ela. De modo que agora estavam juntos no escritório de Genarr, com.o escudo protetor ligado. Marlene olhou rapidamente de um para o outro e disse, de cara feia: — Não vou gostar disto. — Infelizmente, são más notícias. Estamos pensando seriamente em uma volta imediata para Rotor. Marlene fez cara de espanto. — E o seu trabalho, mamãe? Não pode abandoná-lo! Não, estou vendo que vai continuá-lo. Então não dá para entender. — Marlene — disse Insigna, devagar —, estamos pensando em mandá-la de volta para Rotor. Só você. Depois disso, houve alguns momentos de silêncio, enquanto Marlene examinava a expressão dos dois. — Estão falando sério — disse quase num sussurro. — Não é possível! Eu não vou voltar para Rotor. Eu não quero voltar para Rotor. Nunca mais. Eritro é meu mundo. Quero ficar aqui. — Marlene… — começou Insigna, com voz trêmula. Genarr a fez calar-se com um gesto, sacudindo a cabeça, e perguntou: — Por que está tão ansiosa para ficar aqui, Marlene? — Porque estou — respondeu Marlene, sem pestanejar. — Às vezes você não sente vontade de comer alguma coisa? Não pode explicar por quê, pode? Pois eu quero ficar em Eritro. Não sei por quê, mas quero. — Deixe sua mãe contar o que ela sabe. Insigna tomou a mão fria e inerte de Marlene nas suas. — Lembra-se, Marlene, antes de partirmos para cá, quando você estava me contando a conversa que teve com o Comissário Pitt… — Sim? — Você me contou que quando ele disse que podíamos ir para Eritro escondeu alguma coisa. Você não sabia o que era, mas tinha a impressão de que se tratava de algo desagradável… ou até perigoso. — Sim, eu me lembro. Insigna hesitou, e os olhos penetrantes de Marlene se arregalaram. Murmurou, como se estivesse falando consigo mesma e não tivesse idéia de que outros estavam ouvindo: — Olhou para a minha cabeça. A posição do braço… a postura do corpo… — O som desapareceu, embora os lábios continuassem a se mover. De repente, exclamou, indignada: — Você está achando que há algo errado com o meu cérebro? — Não! — protestou Insigna. — Muito pelo contrário, querida. Sabemos que o seu cérebro funciona muito bem, e queremos que ele continue assim. Aqui está a história… Marlene escutou a história da Praga de Eritro com ar descrente e finalmente disse: — Vejo que acredita no que está me contando, mamãe, mas pode ser que alguém tenha lhe pregado uma peça. — Quem lhe contou fui eu — disse Genarr —, e lhe asseguro que é verdade. Olhe para mim e diga-me se não estou dizendo a verdade. Dessa vez, Marlene acreditou. — Está bem, mas por que sou eu que estou em perigo? Por que estou correndo mais perigo que o senhor ou mamãe? — Como disse sua mãe, Marlene, a Praga ataca principalmente as pessoas criativas, inteligentes. Existem indícios de que as pessoas fora do comum são mais suscetíveis à Praga, e como você é a pessoa mais extraordinária que conheço, é possível que seja mais suscetível que os outros. O Comissário me disse para fazer todas as suas vontades, para deixá-la ir aonde quisesse, explorar o que quisesse, até mesmo sair do Domo… se fosse esse o seu desejo. Parece estar sendo muito bonzinho, mas será que não disse isso na esperança de que você fosse mais uma vitima da Praga? Marlene não demonstrou nenhuma emoção. — Não compreende, minha filha? O Comissário não quer matar você. Quer apenas neutralizar o seu cérebro. Você representa um perigo para ele. É capaz de descobrir com facilidade quais são suas intenções, o que ele não pode admitir. Pitt é um homem de segredos. — Se o Comissário Pitt está tentando me fazer mal, por que vocês querem me mandar de volta para ele? Genarr levantou as sobrancelhas. — Já explicamos. Você corre perigo aqui. — Estarei em perigo em Rotor, perto dele. Que poderia fazer em seguida se realmente quisesse me destruir? Se achar que serei destruída aqui ele se esquecerá de mim. Ele me deixará em paz, entendem? — Não se esqueça da Praga, Marlene. Da Praga. Estendeu os braços para abraçar a filha. Marlene recuou. — Não estou preocupada com a Praga. — Mas nós explicamos… — Não importa o que vocês explicaram. Não corro perigo aqui. Absolutamente. Conheço meu cérebro. Vivi com ele toda a minha vida. Sei que está seguro. — Seja razoável, Marlene — disse Genarr. — Por mais estável que seja seu cérebro, está sujeito a doenças. Você pode pegar meningite, desenvolver sintomas de epilepsia, um tumor cerebral… Como pode dizer que está a salvo de todos os riscos? — Não estou falando de doenças comuns. Estou falando da Praga. Sei que não vai me atingir. — Não pode ter certeza, querida. Nem mesmo sabemos o que é a Praga… — Seja o que for, não vai me atingir. — Como pode estar certa, Marlene? — perguntou Genarr. — Sei, simplesmente. Insigna perdeu a paciência. Pegou Marlene pelo braço. — Marlene, você tem que nos atender! — Não, mamãe. Você não compreende. Em Rotor, sentia-me atraída por Eritro. Agora que estou aqui, a atração é ainda maior. Quero ficar. Não corro nenhum perigo aqui. Não quero voltar para Rotor. É lá que está o perigo. Genarr levantou a mão antes que Insigna pudesse dizer alguma coisa. — Vou propor um acordo, Marlene. Sua mãe está aqui para fazer certas observações astronômicas. Elas levarão algum tempo. Prometa-me que, enquanto ela estiver trabalhando, você ficará no interior do Domo, tomará as precauções que eu considerar necessárias e se submeterá a testes periódicos. Se não observarmos nenhuma mudança no funcionamento do seu cérebro, poderá ficar aqui no Domo até sua mãe terminar as observações, ocasião em que tornaremos a discutir o assunto. Concorda? Marlene pensou um pouco e depois disse: — Está bem. Olhe, mamãe, nem pense em fingir que terminou sem o ter concluído. Eu saberei na hora. Também não pense em fazer um serviço rápido em lugar de um bom trabalho. Eu perceberei, também. Insigna franziu a testa. — Marlene, não vou tentar enganá-la. Quanto a fazer um trabalho malfeito, sabe que eu não faria isso… nem mesmo pelo seu bem. — Desculpe, mamãe. Sei que às vezes eu a irrito. Insigna suspirou fundo. — Não posso negar, mas, irritante ou não, Marlene, você é minha filha. Gosto muito de você e quero o seu bem. Acha que estou mentindo? — Não, mamãe, não está mentindo, mas, por favor, acredite quando digo que estou segura aqui em Eritro. Desde que cheguei que me sinto feliz. Nunca me senti feliz em Rotor. — Por que se sente feliz? — quis saber Genarr. — Não sei, tio Siever. Mas é tão bom a gente se sentir feliz, mesmo quando não sabe por quê… — Você parece cansada, Eugenia — disse Genarr. — Não fisicamente, Siever. Mas dois meses de cálculos esgotariam qualquer um. Não sei como os astrônomos antigos conseguiam desenvolver seus trabalhos com nada mais que computadores primitivos. A propósito: Kepler descobriu as leis do movimento dos planetas usando apenas logaritmos, e teve sorte, porque os logaritmos tinham acabado de ser inventados. — Desculpe a ignorância de um leigo, mas pensei que os astrônomos modernos simplesmente colocavam alguns comandos nos seus instrumentos, iam dormir e, depois de algumas horas, voltavam para examinar os resultados, que já estavam todos impressos e tabulados. — Gostaria que fosse assim, mas este trabalho é diferente. Sabe com que precisão tive de calcular as velocidades relativas de Nêmesis e do Sol, para determinar exatamente quando vão passar um pelo outro e a que distância? Bastaria um pequeno erro para que eu concluísse que Nêmesis iria passar pela Terra sem afetá-la, quando na verdade a destruiria… ou vice-versa. “O cálculo já seria difícil se Nêmesis e o Sol fossem os dois únicos corpos do Universo, mas existem várias estrelas próximas, todas em movimento. Pelo menos uma dúzia delas têm massa suficiente para afetar a trajetória de Nêmesis, do Sol ou de ambos. É um efeito pequeno, mas que poderia resultar, se ignorado, em erro da ordem de um milhão de quilômetros. Para levar em conta essas estrelas, é preciso conhecer não só a massa de cada estrela com grande precisão, mas também suas posições e trajetórias. “É um problema de quinze corpos, Siever, extremamente complexo. Nêmesis vai passar por dentro do Sistema Solar, e certamente exercerá um efeito perceptível sobre vários planetas. Muita coisa depende da posição de cada planeta em sua órbita durante a passagem de Nêmesis, da perturbação sofrida pela passagem de Nêmesis, e da influência dessa perturbação sobre os outros planetas. A propósito: tive que calcular também o efeito de Megas. — E a que conclusão chegou, Eugenia? — Acho que, depois da passagem, a órbita da Terra será ligeiramente mais excêntrica do que é hoje e o semi-eixo maior será ligeiramente mais curto. — O que isso quer dizer? — Que a Terra ficará quente demais para ser habitável. — O que vai acontecer com Megas e Eritro? — Praticamente nada. O Sistema Nemético é muito menor que o Sistema Solar e portanto muito mais estável. Nada aqui vai ser muito afetado. — Quando vai ocorrer a passagem? — Daqui a cinco mil e vinte e quatro anos, mais ou menos quinze, Nêniesis atingirá o ponto de maior aproximação. Os efeitos principais ocorrerão em um período de vinte ou trinta anos. — Vai haver alguma colisão? — A probabilidade é quase zero. Não vai ocorrer nenhuma colisão entre os astros maiores. Naturalmente, um asteróide do Sistema Solar pode chocar-se com Eritro, ou um asteróide do Sis tema Nemático pode chocar-se com a Terra. Entretanto, é impossível calcular a probabilidade de que isso aconteça até que as estrelas estejam muito mais próximas umas das outras. — Seja como for, a Terra terá que ser evacuada, não é? — Oh, sim! — Mas eles têm cinco mil anos para se preparar. — Cinco mil anos não é muito tempo para preparar a evacuação de oito bilhões de pessoas. Eles devem ser avisados. — Por quê? Não é provável que descubram por si mesmos? — Quem sabe quando? Mesmo que descubram logo, precisamos ensinar a eles a técnica da propulsão hiperespacial. Vão precisar dela. — Tenho certeza de que vão descobri-la, também, em pouco tempo. — E se não descobrirem? — Também tenho certeza de que, em menos de um século serão estabelecidas comunicações entre Rotor e a Terra. Afinal se podemos usar o hiperespaço como meio de transporte acabaremos descobrindo uma forma de utilizá-lo como meio de comunicação. Caso isso não ocorra, poderemos enviar uma das novas colônias para o Sistema Solar e ainda haverá tempo. — Está falando como Pitt. Genarr riu. — Ele não pode estar errado em tudo que faz, você sabe. — Ele não quer se comunicar com a Terra. — Pitt também não pode fazer tudo à sua maneira. Temos um Domo aqui em Eritro, embora ele se opusesse à idéia. Mesmo que faça valer seu ponto de vista, não será Comissário para sempre. Um dia ele vai morrer. Francamente, Eugenia, acho que não deve se preocupar demais com a Terra neste momento. Temos preocupações mais urgentes. Marlene sabe que você está quase terminando o trabalho? — Como pode deixar de saber? Parece que o estágio em que se encontram minhas pesquisas está registrado com detalhes na forma como ajeito a gola do vestido ou penteio o cabelo. — Sua percepção está aumentando cada vez mais, não está? — Está, sim. Você também notou? — Notei. E olhe que a conheço há pouco tempo. — Acho que isso se deve ao fato de estar ficando mais velha. A percepção parece estar aumentando no mesmo ritmo que os seios. Além disso, Marlene passou a maior parte da vida tentando esconder a sua habilidade, porque não sabia o que fazer com ela, e porque lhe trazia problemas. Agora perdeu o medo de usá-la…. — Pode ser também que o fato de se sentir feliz em Eritro aumente sua percepção. — A propósito, Siever, não quero incomodá-lo com minhas tolices. Sei que me preocupo demais a respeito de Marlene, a respeito da Terra, a respeito de tudo… mas você acha que Eritro pode estar afetando minha filha? De forma desfavorável, quero dizer? Acha que o fato de sua percepção estar aumentando pode ser o primeiro sinal de que está com a Praga? — Não posso responder a essa pergunta, Eugenia, mas se o aumento da percepção é efeito da Praga, a Praga não parece absolutamente estar afetando o equilíbrio mental da sua filha. E vou lhe dizer uma coisa: desde que cheguei aqui, nenhuma das pessoas atingidas pela Praga exibiu sintomas nem remotamente parecidos com o dom da sua filha. Insigna deixou escapar um suspiro de alívio. — Obrigada. Isso me deixa mais tranqüila. Obrigada também por ser tão atencioso com Marlene. Genarr sorriu. — É fácil. Gosto muito dela. — Faz isso parecer tão natural… Marlene não é uma menina muito simpática. Reconheço isso, mesmo sendo sua mãe. — Não concordo. Sempre apreciei as mulheres inteligentes, mesmo quando não são bonitas. O ideal, naturalmente, é combinar as duas coisas, como no seu caso, Eugenia… — Há vinte anos, talvez — disse Eugenia; suspirando novamente. — Meus olhos envelheceram com o seu corpo, Eugenia. Eles não detectam nenhuma mudança. Mas para mim não importa se Marlene não é bonita. É uma moça extremamente inteligente, mesmo se deixarmos de lado o dom extraordinário que possui. — É verdade. Isso me serve de consolo, quando seus caprichos começam a me incomodar. — Quanto a isso, Eugenia, acho que os caprichos de Marlene vão continuar ainda a incomodá-la por algum tempo. — Que quer dizer com isso? — perguntou Insigna, surpresa. — Ela me disse que está farta de ficar no Domo. Assim que você terminar o trabalho, quer sair para a superfície do planeta. Está irredutível! Insigna olhou para ele, horrorizada. DEZOITO SUPERLUMINAL Três anos na Terra tinham deixado Tessa Wendel envelhecida. Sua pele perdera o viço. Havia engordado um pouco. Manchas escuras começavam a aparecer abaixo dos olhos. Os seios estavam mais caídos, a cintura mais grossa. Crile Fisher sabia que Tessa estava beirando os cinqüenta, que tinha mais cinco anos do que ele. Entretanto, não aparentava mais idade do que tinha. Era ainda uma bela mulher madura (como ouvira alguém referir-se a ela), mas não podia mais se fazer passar por uma mulher de trinta, como na época em que a conhecera em Adelia. Tessa tinha consciência disso, também, e se queixara com ele na semana anterior, — Foi você, Crile — dissera, uma noite, quando estavam juntos na cama (uma ocasião em que, aparentemente, se preocupava mais com a própria aparência), — A culpa foi sua. Você me vendeu a imagem da Terra. “Um mundo de verdade”, disse para mim. “Uma variedade infinita.” “Sempre algo de novo.” — E não é verdade? — disse Fisher, sabendo o que viria em seguida, mas disposto a permitir que Tessa desse vazão aos seus sentimentos. — Não no que se refere à gravidade. Em todo esse imenso planeta, a força gravitacional é praticamente a mesma. No alto das montanhas, no fundo das minas, aqui, ali, em toda parte, um G… um G… um G. Vocês deviam morrer de tédio. — Não conhecemos nada melhor, Tessa. — Você conhece algo melhor. Você esteve nas colônias. Lá, pode escolher a gravidade que lhe atrair no momento. Pode fazer ginástica quase sem gravidade. Pode relaxar a tensão no seu esqueleto de vez em quando. Como podem viver sem isso? — Fazemos exercícios aqui na Terra, também. — Oh, por favor! Vocês tentam fazer ginástica com essa força, essa força incansável, puxando vocês para baixo. Passam o tempo todo lutando contra essa força, em vez de fazer os músculos trabalharem uns contra os outros. Não podem pular, não podem voar, não podem planar. E essa força, essa força puxando o tempo todo pele e os músculos, de modo que se acaba ficando flácido e enrugado. Olhe para mim! Olhe para mim! — Olho para você sempre que posso — disse Fisher, com ar solene. — Então não olhe para mim. Se olhar, vai me jogar fora. E se fizer isso, volto para Adelia. — Não volta, não. Que vai fazer lá, depois que matar a saudade da baixa gravidade? Sua pesquisa, seu laboratório, sua equipe estão todos aqui. — Posso começar tudo de novo. — Acha que Adelia vai apoiar sua pesquisa como nós? Claro que não. Tem de admitir que a Terra não regateou com você. Até agora, recebeu tudo que pediu. Eu não estava certo? — Estava certo? Você é um traidor! Não me contou que a Terra já tinha a propulsão hiperespacial. Também não me contou nada a respeito da Estrela Vizinha. Na verdade, deixou-me falar a respeito da inutilidade da Sonda Profunda e não me revelou que ela havia descoberto muito mais do que algumas paralaxes. Ficou lá sentado, rindo de mim, como o sádico desalmado que é! — Gostaria de lhe contar, Tessa, mas e se você decidisse não vir para a Terra? Não estava autorizado a lhe revelar o segredo. — E depois que cheguei à Terra? — Assim que você começou a trabalhar, nós lhe contamos. — Eles me contaram, e me deixaram com cara de boba. Podia ter me prevenido, me contado pelo menos alguma coisa, para que eu não passasse por uma idiota total. Eu devia tê-lo matado, mas que posso fazer? Fiquei viciada em você. Sabia disso quando me seduziu, de caso pensado, para me convencer a vir para a Terra. Era um jogo que ela insistia em jogar, e Fisher sabia muito bem o seu papel. — Seduzi você? Você insistiu. Disse que fazia questão! — Mentira. Você me possuiu à força. E vai fazer isso de novo. Posso ver nos seus olhos cheios de luxúria. Fazia meses que ela não brincava daquela forma. Fisher sabia que era sinal de que estava satisfeita com o seu trabalho. Depois que terminaram, perguntou: — Fez algum progresso? — Progresso? Acho que sim. Amanhã vou fazer uma demonstração para aquele terráqueo decrépito, Tanayama. Ele tem me cobrado resultados sem piedade. — Ele não tem piedade. — Ele é um tolo. Mesmo uma sociedade que não tem cientistas devia saber alguma coisa sobre a ciência, sobre a forma como funciona a pesquisa. Quando alguém lhe dá um milhão de créditos de manhã, não pode esperar resultados à noite. Deve aguardar pelo menos até a manhã seguinte. Sabe o que ele me disse da última vez, quando comentei que talvez tivesse alguma coisa para lhe mostrar? — Não, ele não me contou. Que foi? — Esperava que ele dissesse: “É difícil de acreditar que em apenas três anos você tenha encontrado a solução para um problema tão complexo. Se os seus resultados forem confirmados, nossa dívida para com você será enorme.” É isso que eu acho que ele devia dizer. — Hum. .Tanayama não diria isso nem em um milhão de anos. Que foi que ele disse? — Ele disse: “Quer dizer que afinal, depois de três anos, você tem alguma coisa. Já era tempo. Pensa que vou viver sempre? Acha que tenho financiado suas pesquisas, pago o seu ordenado e do seu exército de assistentes para que você produza alguma coisa depois que eu não estiver mais aqui para ver?” Foi isso que ele disse, e tive vontade de adiar a demonstração até ele morrer, mas acho que o trabalho vem em primeiro lugar. — Você tem realmente algum resultado concreto? — Apenas o segredo do vôo superluminal. O vôo superluminal de verdade, não esse engodo da propulsão hiperespacial. Uma coisa que nos abrirá as portas do Universo. O lugar onde trabalhava a equipe de Tessa Wendel, em sua faina para abalar o Universo, tinha sido preparado para ela antes mesmo de ser recrutada e mudar-se para a Terra. Ficava nas montanhas, totalmente inacessível à população da Terra, e nele havia sido construída uma verdadeira cidade de pesquisa. E agora Tanayama estava ali, sentado em uma cadeira motorizada. Apenas os olhos, por trás das pálpebras estreitas, pareciam vivos. Ele não era nem de longe a figura mais importante do governo da Terra, nem mesmo a mais alta personalidade presente, mas tinha sido, e ainda era, a força por trás do projeto, de modo que todos automaticamente se curvavam diante dele. Apenas Wendel parecia não se intimidar. A voz dele era um sussurro áspero. — Que vamos ver, doutora? Uma nave? Não havia nenhuma nave à vista, naturalmente. — Não, Sr. Diretor. Vamos levar mais alguns anos para construir uma nave. Ë apenas uma demonstração, mas vai ser interessante. O senhor verá a primeira demonstração pública de um vôo superluminal. — Como vai ser? — Pensei que o senhor havia sido informado a respeito. Tanayama sofreu um acesso de tosse e teve que parar para tomar fôlego. — Eles tentaram me explicar, mas quero ouvir de você. — Os olhos, duros e impiedosos, estavam fixados nela. — Você é a chefe A idéia foi sua. Explique. — Não possa explicar a teoria. Levaria muito tempo, Sr. Diretor, O senhor ficaria cansado. — Não estou interessado na teoria. O que vamos ver? — Vão ver dois recipientes cúbicos de vidro. Ambos foram evacuados. — Para quê? — O vôo superluminal só pode ser iniciado no vácuo, Sr. Diretor. Se não for assim, o objeto que está se movendo mais depressa que a luz arrastará a matéria com ele, aumentando o consumo de energia e diminuindo a controlabilidade. O vôo deve terminar no vácuo, também, ou os resultados poderão ser catastróficos, porque… — Esqueça o “porquê”. Se esse tal de vôo superluminal deve começar e terminar no vácuo, como vamos usá-lo? — E necessário, primeiro, transportar o veículo para o es paço por meios normais. Em seguida, ele é levado para o hiperespaço e permanece lá pelo tempo que for necessário. Finalmente, você volta ao espaço normal perto do destino e completa a viagem usando um método convencional de propulsão. — Parece um processo demorado. — Mesmo o vôo superluminal não pode ser feito instantaneamente, mas se pudermos viajar do Sistema Solar para uma estrela a quarenta anos-luz de distância em quarenta dias, em vez de quarenta anos, seria uma ingratidão reclamar de eventuais demoras na partida e na chegada. — Está bem. Você tem esses dois recipientes de vidro. O que são? — São projeções holográficas. Na verdade, estão a três mil quilômetros de distância um do outro, em duas fortalezas nas montanhas. Se a luz pudesse viajar de um para o outro através do vácuo, levaria um milésimo de segundo, ou um milissegundo, para fazer a viagem. Não vamos usar luz, naturalmente. Suspensa no meio do cubo da esquerda, sustentada no espaço por um forte campo magnético, está uma pequena esfera, que é na realidade um motor hiperatômico miniaturizado. Pode vê-lo, Sr. Diretor? — Estou vendo alguma coisa lá dentro. Isso é tudo? — Se observar com atenção, verá a esfera desaparecer. A contagem regressiva já foi iniciada. A contagem era como um sussurro nos ouvidos da platéia. Quando chegou a zero, a esfera desapareceu de um cubo e apareceu no outro. — Lembre-se, Sr. Diretor, de que os cubos estão na verdade a três mil quilômetros de distância um do outro. O registrador de tempo mostra que o intervalo entre a partida e a chegada foi de pouco mais de dez microssegundos, o que quer dizer que a viagem ocorreu a uma velocidade cem vezes maior que a da luz. Tanayama olhou para a cientista. — Como posso saber? Pode ser tudo uma encenação, preparada para iludir alguém que considera como um velho tolo. — Sr. Diretor — disse Wendel, em tom ofendido —, existem centenas de cientistas presentes, todos de boa reputação, alguns deles terráqueos. Podem mostrar ao senhor tudo que quiser ver, explicar-lhe como funcionam os instrumentos. Não encontrará nada aqui, a não ser um bom trabalho, feito por gente honesta. — Mesmo que seja verdade, que significa? Uma pequena esfera. Uma bola de pingue viajando alguns milhares de quilômetros. É só isso que tem para mostrar depois de três anos? — Com todo o respeito, Sr. Diretor, o que viu talvez seja mais do que tinha direito de esperar. O que viu pode ser do tamanho de uma bola de pingue-pongue e pode não ter viajado mais que três mil quilômetros, mas é tão real quanto se tivéssemos transportado uma espaçonave daqui a Arcturus a uma velocidade cem vezes maior que a da luz. O que viu foi a primeira demonstração pública de um vôo subliminal na história da humanidade. — Mas é a espaçonave que eu quero ver — Para isso, terá que esperar. — Não tenho tempo, não tenho tempo — murmurou Tanayama, em uma voz que não era mais que um sussurro. Um acesso de tosse o sacudiu de novo. — Até mesmo a sua vontade não pode mudar o Universo — comentou Wendel, tão baixo que apenas Tanayama pôde ouvir. Os três dias dedicados às autoridades na que era conhecida extra-oficialmente como Hipérpolis tinham finalmente passado, e estavam livres de todos os intrusos. — Mesmo assim — disse Tessa Wendel para Crile Fisher — vamos levar mais dois ou três dias para nos recuperarmos e voltarmos a trabalhar a pleno vapor. Que velho nojento! — acrescentou, em um tom que refletia uma profunda antipatia. Fisher não teve trabalho para adivinhar que estava se referindo a Tanayama. — Ele é um velho doente. Wendel fuzilou-o com os olhos. — Está tentando defendê-lo? — Apenas afirmando uma verdade, Tessa. Wendel levantou um dedo para ele, em sinal de admoestação. — Tenho certeza de que aquela múmia era irracional e arrogante mesmo quando não estava doente, ou mesmo quando não era velho. Há quanto tempo é Diretor do Escritório? — Há mais de trinta anos. Antes disso, foi Vice-Diretor por não sei quanto tempo e provavelmente a eminência parda por trás de uma sucessão de três ou quatro diretores títeres. E por mais velho e doente que fique, continuará sendo Diretor até morrer… e provavelmente por mais três dias, enquanto as pessoas esperam para ter certeza de que não vai ressuscitar. — Parece que você acha isso engraçado. — Não, mas a gente tem de rir quando vê um homem que, sem grandes poderes na mão, sem ao menos ser conhecido do público em geral, mantém todo mundo no governo amedrontado e à sua mercê por quase meio século simplesmente porque conhece os segredos desabonadores de todos os figurões e não hesitaria em fazer uso deles. — E eles o suportam? — Oh, sim! Não há ninguém no governo que esteja disposto a sacrificar sua carreira apenas na esperança de derrubar Tanayama. — Mesmo agora, que ele deve estar mais fraco? — Você está muito enganada. Ele pode ficar mais fraco depois de morrer, mas até que isso aconteça, sua força continuará a mesma. — O que faz as pessoas agirem assim? — disse Wendel, em tom reprovador. — Será que ele não tem vontade de se aposentar, para ter tempo de morrer em paz? — Não Tanayama. Jamais. Não diria que o conheço na intimidade, mas nos últimos quinze anos tive ocasião de cruzar com ele várias vezes, e em todas elas me machuquei. Conheci-o quando ainda tinha saúde, e sempre soube que ele nunca iria parar. Para responder à sua primeira pergunta, pessoas diferentes são movidas por motivações diferentes. No caso de Tanayama é o ódio. — Eu já desconfiava — disse Wendel. — Ninguém tão odioso pode deixar de odiar. Mas quem é que Tanayama odeia? — As colônias. — Ah, é mesmo? — Wendel estava evidentemente se lembrando de que era uma imigrante de Adelia. — Também nunca ouvi alguém das colônias falar bem da Terra. E sabe o que eu acho dos lugares onde a gravidade é uniforme. — Não estou falando em gostar, Tessa, nem em falar bem ou mal. Estou falando em odiar cegamente. Os terráqueos não gostam dos habitantes das colônias. Eles têm o que há de mais moderno. Vivem em um ambiente tranqüilo, silencioso, confortável. Têm comida à vontade, áreas de lazer, clima controlado. Os robôs fazem todo o trabalho pesado. É natural que as pessoas que levam uma vida dura sintam uma certa antipatia pelos que parecem estar em melhor situação. No caso de Tanayama, porém é um ódio cego, irracional. Se pudesse, ele destruiria todas as colônias, uma por uma. — Por que, Crile? — Em minha opinião, não é por causa de nenhuma das coisas que mencionei. O que ele não suporta é a homogeneidade cultural das colônias. Sabe o que estou querendo dizer? — Não. — Os moradores das colônias são o resultado de um processo de seleção. Eles selecionam pessoas parecidas com eles próprios. Cada colônia tem uma cultura bem distinta, e, até certo ponto, uma raça bem distinta. A Terra, por outro lado, sempre foi uma mistura de culturas, competindo umas com as outras, suspeitando umas das outras, enriquecendo-se mutuamente. Tanayama e muitos outros terráqueos (eu, por exemplo) considera essa mistura como uma coisa benéfica, e acha que a homogeneidade das colônias só servirão para enfraquecê-las e, a longo prazo, para torná-las inviáveis. — Está dizendo que ele odeia as colônias por possuírem alguma coisa que considera como uma desvantagem? Como Tanayama pode nos odiar por sermos melhores e por sermos piores que os terráqueos? Não faz sentido. — Não precisa fazer. Qual a pessoa sensata que é capaz de odiar? Talvez (estou dizendo talvez) Tanayama tenha medo de que as colônias sejam bem-sucedidas e venham provar que, no final das Contas, a homogeneidade cultural é uma coisa boa para uma sociedade. Ou talvez ele pense que as colônias estão tão ansiosas para destruir a Terra como ele está para destruir as colônias. A questão da Estrela Vizinha o deixou furioso. — O fato de que Rotor descobriu a Estrela Vizinha e não nos avisou? — Mais que isso. Eles não nos avisaram que a estrela estava se aproximando do Sistema Solar. — Talvez não soubessem. — Tanayama jamais acreditaria nisso. Acha que eles sabiam e deixaram de nos informar, na esperança de que fôssemos pegos de surpresa, de que a Terra, ou pelo menos a civilização terrestre, fosse destruída. — Há quem pense que a Estrela Vizinha vai passar suficientemente próximo da Terra para nos afetar? Eu não sabia. Ouvi dizer que, segundo a maioria dos astrônomos, ela vai passar tão longe do Sistema Solar que nada nos acontecerá. Você ouviu alguma opinião em contrário? Fisher deu de ombros. — Não, não ouvi, mas, para alguém cheio de ódio como Tanayama, é natural pensar que estamos em perigo. Nesse caso, precisamos do vôo superluminal para localizar um planeta parecido com a Terra em outra região do espaço e transferir para lá a população da Terra. Tem de admitir que faz sentido. — Claro que sim, mas não é preciso pensar na destruição da Terra, Crile. Existe uma tendência natural para a humanidade se expandir, mesmo que a Terra permaneça perfeitamente segura. O primeiro passo foi emigrar para as colônias; o passo seguinte são as estrelas, e, para isso, vamos precisar das viagens superluminais. — Está certo, mas Tanayama consideraria isso como um objetivo remoto. Estou certo de que, se depender dele, a colonização da Galáxia ficará para a próxima geração. O que ele quer é encontrar Rotor e puni-lo por haver abandonado o Sistema Solar, sem nenhum respeito pelo resto da comunidade humana. Ele quer estar vivo para ver isso, e essa é a razão pela qual vive pressionando você, Tessa. — Pode me pressionar o quanto quiser, que não vai ajudar em nada. Ele é um homem moribundo. — Não sei, não. A medicina moderna pode realizar maravilhas, e tenho certeza de que os médicos farão o que puderem por Tanayama.. — A medicina moderna também tem seus limites. Perguntei aos médicos. — E eles responderam? Pensei que a saúde de Tanayama fosse um segredo de Estado. — Não para mim, nas circunstâncias atuais, Crile. Fui falar com a equipe médica encarregada de cuidar do Velho e disse a eles que estava preparada para construir uma nave capaz de levar seres humanos para as estrelas, mas queria concluir o trabalho antes da morte de Tanayama. Perguntei a eles de quanto tempo dispunha. — O que responderam? — Que eu dispunha de um ano. Foi isso que eles disseram. Um ano, no máximo. Pediram que eu me apressasse. — Pode terminar o trabalho em um ano? — Em um ano? Claro que não, Crile, e ainda bem que não posso. Para mim é uma alegria saber que aquele sujeitinho venenoso não vai viver para assistir ao batismo da primeira nave superluminal. Que cara é essa, Crile? Acha muito cruel o que acabei de dizer? — Acho que está sendo no mínimo ingrata, Tessa. Por mais venenoso que seja, foi o Velho que tornou tudo isso possível. Sem ele, Hipérpolis não existiria. — É verdade, mas ele a criou para os seus próprios objetivos, e não os meus, nem os da Terra, nem os da humanidade em geral. Além disso, tenho certeza de que o Diretor nunca teve pena de ninguém que considerasse como inimigo nem aliviou, de um newton que fosse, a pressão do pé no pescoço desse inimigo. E provavelmente não espera a compaixão de ninguém. Acho que sentia desprezo por alguém que lhe oferecesse sua simpatia, por considerar essa pessoa fraca. Fisher parecia desapontado. — Quanto tempo vai levar, Tessa? — Como posso saber? Talvez a gente nem chegue ao fim. Mesmo que tudo corra bem, não vejo como poderemos terminar o projeto em menos de cinco anos. — Mas por quê? Nós já temos o vôo superluminal… Wendel empertigou-se. — Não, Crile. Não seja ingênuo. Tudo que temos é uma demonstração de laboratório. Podemos tomar um objeto leve, uma bola de pingue-pongue no qual um pequeno motor hiperatômico constitui noventa por cento da massa, e fazê-lo mover-se a uma velocidade superluminal. Uma nave, porém, com tripulantes a bordo, é uma coisa totalmente diferente. Antes de lançá-la, precisaremos ter certeza das coisas. Pensando bem, cinco anos é uma previsão muito otimista. Se não pudéssemos contar com computadores modernos para fazer as simulações, cinco anos seria um prazo impossível. Cinqüenta anos também. Crile sacudiu a cabeça sem dizer nada. Tessa Wendel olhou para ele, pensou um pouca e depois perguntou: — Qual é o problema? Você também está com pressa? — Sei que está fazendo o possível, Tessa, mas como eu gostaria de ter hoje mesmo uma nave capaz de viajar no hiperespaço! — Você, mais do que os outros? — Sim. — Por quê? — Gostaria de viajar para a Estrela Vizinha. Wendel olhou para ele, surpresa. — Por quê? Pretende fazer as pazes com a mulher que você abandonou? Fisher nunca havia discutido com Tessa Wendel os detalhes de sua ligação com Eugenia, nem pretendia fazê-lo. — Tenho uma filha em Rotor. Acho que pode compreender o que sinto, Tessa. Afinal, você tem um filho. O filho de Wendel tinha vinte e poucos anos, freqüentava a Universidade de Adelia e ocasionalmente escrevia para a mãe. A expressão no rosto de Wendel se abrandou. — Crile, não deve nutrir falsas esperanças. Concordo com você que se eles sabiam da existência da Estrela Vizinha, certamente foram para lá. Entretanto, mesmo com a propulsão hiperespacial, a viagem deve ter levado mais de dois anos. Não podemos saber se Rotor sobreviveu à viagem. Mesmo que isso tenha ocorrido, a probabilidade de encontrarem um planeta habitável em órbita em torno de uma estrela anã vermelha é praticamente nula. Provavelmente, tiveram que continuar a viagem em busca de outro sistema. Para onde terão ido? Como iremos localizá-los? — Eles deviam saber que não encontrariam nenhum planeta habitável no sistema da Estrela Vizinha. Quem sabe se não estavam planejando simplesmente colocar Rotor em órbita em torno da estrela? — Mesmo que sobrevivessem à viagem, e mesmo que colocassem Rotor em órbita, seria uma vida estéril, e não teriam possibilidade de continuá-la por muito tempo de uma forma compatível com a civilização. Crile, você precisa se preparar para o pior. E se conseguirmos organizar uma expedição para a Estrela Vizinha e não encontramos nada, ou, ainda pior, encontrarmos apenas o casco vazio de Rotor? — Nesse caso, seria o fim de tudo. Mas ainda acho que há uma possibilidade de eles terem sobrevivido. — E de que Você encontre sua filha? Meu querido, não acha que está sendo excessivamente otimista? Mesmo que Rotor tenha sobrevivido, mesmo que sua filha tenha sobrevivido, ela tinha apenas um ano quando você partiu e isso foi em 22. Se pudesse vê-la neste momento, ela teria dez anos. Se a nave superluminal ficar pronta daqui a cinco anos e você for à Estrela Vizinha, ela terá quinze. Não saberá quem você é. Aliás, você também não saberá quem ela é. — Pode ter dez, quinze ou cinqüenta anos. No momento em que eu a vir, Tessa, saberei quem é. DEZENOVE PERMANÊNCIA Marlene sorriu para Siever Genarr. Estava acostumada a invadir seu escritório sem pedir licença. — Estou interrompendo alguma coisa importante, tio Siever? — Não, querida, neste meu trabalho raramente faço alguma coisa importante. Pitt me mandou para cá apenas para livrar-se de mim, e aceitei apenas para ficar livre de Pitt. NÃo e uma coisa que eu confesse para qualquer um, mas com você sempre me sinto compelido a dizer a verdade, já que pode detectar uma mentira no ato. — Isso não assusta o senhor, tio Siever? Assustou o Comissário Pitt e teria assustado Aurinel… se soubesse o que sou capaz de fazer.. — Não me assusta, Marlene, porque desisti de lutar. Convenci-me de que, para você, minha alma é transparente. Na verdade, é uma sensação repousante. Mentir dá muito trabalho. Se as pessoas fossem realmente preguiçosas, diriam sempre a verdade. Marlene sorriu de novo. — É por isso que gosta de mim? Porque comigo pode ser preguiçoso? — Você não sabe? — Não. Sei que gosta de mim, mas não por quê. Sua expressão corporal revela que simpatiza comigo, mas o motivo está escondido dentro da sua mente e tudo que consigo ver são vagas impressões, uma vez ou outra. Não posso ler mentes, você sabe. — pensou um pouco. — Às vezes, gostaria de poder. — Não diga isso. As mentes são lugares sujos, abafados, desagradáveis. — Como sabe, tio Siever? — Experiência. Posso não ter o seu dom natural, mas convivo com as pessoas há muito mais tempo que você. Gosta do interior de sua mente, Marlene? Marlene parecia surpresa. — Não sei. Por que não gostaria? — Gosta de tudo que você pensa? De tudo que imagina? De todos os impulsos que sente? Seja franca. Não posso saber se está dizendo a verdade, mas seja franca. — Bem… às vezes tenho pensamentos bobos, ou maus. Às vezes fico zangada e penso em fazer coisas que na verdade jamais teria coragem de fazer. Mas isso não é muito freqüente. — Não é muito freqüente? Não se esqueça de que está acostumada com sua mente. Quase não repara nela. É como as roupas que usa. Não sente o contato do tecido com a pele, porque está habituada, O seu cabelo roça na nuca, mas você não nota. Se o cabelo de outra pessoa encostasse na sua nuca, você perceberia na hora. Os pensamentos de outra mente podem não ser piores que os seus, mas são os pensamentos de outra pessoa, e você não gostaria deles. Por exemplo: você poderia não gostar de que eu goste de você, se soubesse exatamente por que gosto de vocÊ. É muito melhor aceitar o fato de que gosto de você como uma coisa natural, e não esquadrinhar minha mente em busca de motivos. — Por quê? Quais são os motivos, tio Siever? — Na verdade, gosto de você porque já fui você. — Como assim? — Não quero dizer que fui uma mocinha de olhos lindos e grande poder de percepção. Mas que fui um adolescente nada atraente e achava que os outros não gostavam de mim por isso. Eu sabia que era inteligente e não podia compreender por que os outros não gostavam de mim por eu ser inteligente. Parecia uma injustiça ser desprezado por não possuir uma qualidade que não considerava importante, enquanto minhas qualidades, que considerava importantes, eram ignoradas. “Sentia-me triste e magoado, Marlene, e tomei a decisão de jamais tratar os outros como eles me tratavam, mas não tive muitas oportunidades para pôr essa resolução em prática Foi então que conheci você, e percebi que era um caso semelhante. Você não é tão feia quanto eu era, e é muito mais inteligente, mas não me incomodo de que seja melhor do que eu — ele sorriu. — É como oferecer a mim mesmo uma segunda oportunidade com algumas vantagens. Mas acho que não veio aqui para falar deste assunto. Posso não ter a mesma percepção que você, mas isso eu posso perceber. — É a minha mãe. — Oh? — Genarr franziu a testa e seu interesse aumentou imediatamente — Que há com ela? — Sua pesquisa aqui em Eritro está quase terminada, o senhor sabe. Quando voltar para Rotor, vai querer que eu a acompanhe. Será que devo? — Acho que sim. Não quer ir? — Não, não quero, tio Siever. Acho que é importante que eu fique. Por isso, queria que dissesse ao Comissário Pitt que precisamos passar mais tempo aqui. Pode inventar qualquer desculpa. Tenho certeza de que o Comissário concordará de bom grado, especialmente se o senhor lhe contar que, de acordo com as observações da mamãe, Nêmesis vai destruir a Terra. — Ela lhe disse isso, Marlene? — Não, não disse, mas não precisava dizer. Explique ao Comissário que, se mamãe voltar para Rotor, passará o dia inteiro insistindo com ele para que a Terra seja avisada. — Já lhe ocorreu que Pitt não gosta de fazer minhas vontades? Se desconfiar que estou interessado em mantê-las aqui, é capaz de chamá-las de volta só para me contrariar. — Tenho certeza — declarou Marlene, calmamente — de que o Comissário vai preferir assegurar sua tranqüilidade, mantendo-nos aqui, do que implicar com você, chamando-nos de volta. Além disso, o senhor quer que mamãe fique mais tempo porque o senhor gosta dela. — Gosto muito da sua mãe. Desde que éramos adolescentes. Mas sua mãe não gosta de mim. Você mesma me contou que ela ainda pensa muito no seu pai. — Mamãe está gostando cada vez mais do senhor, tio Siever. — Gostar não é amar, Marlene. Tenho certeza de que já sabe disso. Marlene Corou. — Estou falando de pessoas mais velhas. — Como eu — disse Genarr, rindo. — Sinto muito, Marlene. As pessoas mais velhas costumam pensar que os jovens não sabem nada sobre o amor, e para eles os mais velhos já se esqueceram de como é o amor; na verdade, ambos estão errados. E por que acha que é importante você ficar no Domo de Eritro, Marlene? Certamente não é porque gosta de mim. — Claro que gosto do senhor — disse Marlene, muito séria. — Gosto muito. Mas quero ficar porque gosto de Eritro. — Já lhe expliquei que é um mundo perigoso. — Não para mim. — Ainda tem certeza de que não será afetada pela Praga? — Claro que não serei. — Como pode saber? — Eu simplesmente sei. Sempre soube, mesmo quando estava em Rotor. Naquela época, não tinha razão para temer a Praga. — Não, não tinha. E depois que ficou sabendo da Praga? — Isso não mudou nada. Sinto-me segura aqui. Mais do que em Rotor. Genarr sacudiu a cabeça lentamente. — Devo admitir que não compreendo você — examinou o rosto solene da moça, os olhos escuros emoldurados por aquelas lindas pestanas — Entretanto, deixe-me tentar ler a sua linguagem corporal Marlene. Está decidida a permanecer em Eritro, custe o que custar. — Isso mesmo — disse Marlene, com firmeza. — E espero que o senhor me ajude. Eugenia Insigna estava furiosa. — Ele não pode fazer isso, Siever! — Claro que pode, Eugenia — disse Genarr, sem levantar a voz. — Ele é o Comissário. — Mas não é um ditador. Tenho meus direitos de cidadã, e um deles é a liberdade de movimento. — Se o Comissário declara um estado de emergência, coletivo ou aplicado a uma única pessoa, os direitos dos cidadãos ficam automaticamente suspensos. É mais ou menos o que diz a Constituição de 24. — Mas isso põe por terra todas as leis e tradições que tivemos, desde a fundação de Rotor! — Concordo plenamente. — E se eu fizer um escândalo, Pitt será forçado a… — Eugenia, por favor. Não tome nenhuma atitude precipitada. Por que você e Marlene simplesmente não ficam? O prazer será todo meu. — Que está dizendo? Isto equivale a sermos presas sem nenhuma acusação, sem nenhum julgamento, sem nenhuma sentença. Somos obrigadas a permanecer indefinidamente em Eritro por um decreto arbitrário de um… — Por favor, fique sem protestar. Será muito melhor. — Melhor por quê? — Porque Marlene, sua filha, faz questão de ficar. Insigna olhou para ele, surpresa. — Marlene? — Semana passada, ela me pediu para persuadir o Comissário a deixar vocês duas ficarem mais tempo em Eritro. Insigna fez menção de levantar-se da cadeira e disse, furiosa: — Você fez isso? Genarr sacudiu a cabeça com veemência. — Não. Agora me escute. Tudo que fiz foi informar a Pitt que você havia terminado seu trabalho, e eu não sabia se era intenção dele que você voltasse a Rotor com Marlene ou ficasse aqui. Foi uma declaração totalmente neutra, Eugenia. Mostrei-a a Marlene antes de enviá-la e ela achou que estava bem. Vou repetir o que me disse: “Se você lhe oferecer a escolha, certamente nos manterá aqui.” Parece que foi exatamente o que ele fez. Insigna afundou na cadeira. — Siever, está realmente se deixando aconselhar com uma de quinze anos? — Não penso em Marlene como uma menina de quinze anos. Diga-me uma coisa. Por que está tão ansiosa para voltar para Rotor? — Meu trabalho… — Não há trabalho para você em Rotor. Não há, porque Pitt não quer você. Mesmo que ele permita a sua volta, você encontrará outro astrônomo no seu lugar. Aqui, por outro lado, tem os equipamentos mais modernos à sua disposição. E o lugar ideal para usá-los. Afinal, não veio fazer o que não podia ser realizado em Rotor? — Meu trabalho não interessa! — exclamou Insigna, de forma incoerente. — Não compreende que quero voltar pela mesma razão que ele quer que eu fique? Ele quer se livrar de Marlene. Se, antes de vir, eu tivesse sabido da Praga de Eritro, jamais teria vindo. Não posso arriscar a saúde mental da minha filha. — A saúde mental da sua filha é a última coisa que eu arriscaria. Preferia arriscar minha própria vida. — Mas ela corre perigo se ficarmos aqui. — Marlene não pensa assim. — Marlene! Marlene! Até parece que ela é uma deusa. Que é que ela sabe? — Calma, Eugenia. Vamos conversar sobre isto racional- mente. Se achasse que Marlene estava correndo perigo, eu arranjaria um jeito de mandar vocês duas imediatamente para Rotor. Quero que me responda uma coisa. Você não notou em Marlene nenhum sinal de megalomania, notou? Insigna estava trêmula. Sua aflição não havia passado. — Não sei o que está querendo dizer. — Sua filha tem feito declarações exageradas, que beiram o ridículo? — Claro que não. É uma menina muito sensata… por que pergunta? Sabe que Marlene não é do tipo de fazer afirmações… — …sem base. Eu sei. Por exemplo: ela nunca fez alarde do seu poder de percepção. Tivemos que descobri-lo mais ou menos por acaso. — Sim, mas aonde está querendo chegar? Genarr prosseguiu calmamente. — Alguma vez Marlene disse a você que possuía estranhos poderes de intuição? Já declarou que tinha certeza de que alguma coisa iria acontecer, ou não, simplesmente porque tinha certeza? — Não, claro que não. Minha filha é muito lógica. Ela não faz afirmações sem provas. — No entanto, foi o que fez, pelo menos uma vez. Ela está certa de que a Praga não pode tocá-la. Disse para mim que experimentou essa convicção, esta certeza de que Eritro não pode causar-lhe mal, quando ainda estava em Rotor, mas que ficou mais forte depois que chegou ao Domo. E está decidida a permanecer aqui. Insigna arregalou os olhos e levou a mão à boca. Fez um som abafado e depois disse: — Nesse caso… — Sim? — Você não entende? É a Praga! A personalidade de Marlene está mudando. Sua mente está sendo afetada! Genarr pensou por um momento, e depois protestou: — Não. Não pode ser. Em todos os casos de Praga, não observamos nada parecido. Não é a Praga. — O cérebro da minha filha é diferente dos outros. Pode ser afetado de outra forma. — Não — disse Genarr, teimosamente. — Não posso acreditar. Não acredito. Se Marlene diz que é imune, ela deve ser imune, e sua imunidade nos ajudará a resolver o mistério da Praga. O rosto de Insigna empalideceu. — É por isso que você a quer aqui em Eritro, Siever? Para usá-la como cobaia? — Não. Não a quero aqui apenas para usá-la. Entretanto, ela quer ficar e pode nos ajudar a descobrir mais alguma coisa a respeito da Praga. — Só porque Marlene quer ficar em Eritro, você é obrigado a atendê-la? Só porque não quer voltar para Rotor, graças a um capricho que não sabe explicar e para o qual eu e você não vemos nenhuma razão ou lógica, você se sente forçado a fazer o que pede? Tem coragem de me dizer isso? — Na verdade, sinto-me tentado a fazê-lo — disse Genarr, com esforço. — É fácil para você sentir-se tentado. Ela não é sua filha. É minha filha. A única… — Eu sei. A única coisa que Crile lhe deixou. Não olhe para mim assim. Sei que jamais se conformou com a partida do seu marido. Compreendo como se sente. — Disse as últimas pala como se a qualquer momento fosse estender a mão e afagar a cabeça de Insigna. — Mesmo assim, Eugenia, se Marlene realmente está disposta a explorar Eritro, acho que nada a deterá. E se ela está absolutamente convencida de que a praga não vai afetá-la, talvez essa atitude mental a torne realmente imune. A confiança cega de Marlene pode ser seu melhor mecanismo de defesa. Insigna levantou a cabeça, os olhos faiscando. — Você está falando bobagens e não tem o direito de dar ouvidos a esta súbita onda de romantismo de uma simples criança. Ela é uma estranha para você. Você não a ama. — Ela não é estranha para mim, e eu a amo! O que é mais importante: eu a admiro. Se apenas a amasse, não confiaria nela o suficiente para deixá-la permanecer em Eritro. Pense nisso. Ficaram ali sentados, olhando um para o outro. VINTE PROVA Kattimoro Tanayama, com sua costumeira tenacidade, viveu o ano que os médicos lhe haviam concedido e já estava no meio de outro ano quando a longa batalha chegou ao fim. Quando chegou a hora, deixou o campo da batalha sem nenhuma palavra ou sinal, de modo que os instrumentos registraram a sua morte antes que qualquer pessoa percebesse que ela havia ocorrido. A repercussão foi pequena na Terra e nula nas colônias, porque o Velho sempre tinha feito seu trabalho longe dos olhos do publico. Apenas os que lidavam com ele conheciam seu poder, e aqueles que mais dependiam do seu apoio foram os que ficaram mais aliviados com a sua partida. A notícia logo chegou aos ouvidos de Tessa Wendel, através do canal especial que ligava o seu laboratório à Cidade Mundial. Por alguma razão, o fato de que esperava o desenlace há vários meses não atenuou o choque. Que aconteceria agora? Quem seria o sucessor de Tanayama e que mudanças ocorreriam? Estava pensando havia muito tempo nessas questões, mas só agora pareciam adquirir um significado real. Obviamente, apesar de tudo, Wendel (e talvez todos os envolvidos) não esperava realmente que o Velho morresse. Wendet.procurou consolo em Crile Fisher. Era suficientemente realista para compreender que não era o seu corpo agora claramente de meia-idade (em menos de dois meses, chegaria à incrível marca dos cinqüenta) que estava segurando Fisher. Ele tinha quarenta e três anos e também não era mais nenhuma criança, mas, por ser homem, as marcas da idade o afetavam menos. Fosse como fosse, continuava seguro, e Wendel ainda podia acreditar que era ela que o segurava, em sentido figurado, especialmente nas ocasiões em que o segurava, literalmente. — E agora, como vai ser? — perguntou a Fisher. — Não é nenhuma surpresa, Tessa. Já devia ter acontecido há mais tempo. — Verdade, mas só aconteceu agora. Foi a determinação do Velho que manteve o projeto funcionando. E agora? — Enquanto ele estava vivo, você estava ansiosa para que morresse. Agora está preocupada. Não tenha medo. O projeto vai continuar. Uma coisa deste tamanho tem vida própria, não pode parar de um momento para outro. — Já tentou calcular quanto está custando este projeto, Crile? O Escritório vai precisar de um novo diretor, e o Congresso Global certamente vai escolher alguém que eles possam controlar. Não vai haver um novo Tanayama para intimidar a todos… não no futuro próximo. Vão examinar o orçamento do projeto e, sem a mão de Tanayama para cobri-lo, verão que está se afogando em tinta vermelha. Vão querer acabar com ele. — Como poderiam? Já gastaram muito dinheiro. Vão parar agora, quando ainda não têm nenhum resultado para mostrar? Seria um vexame! — Podem pôr a culpa em Tanayama. “Ele era um louco”, dirão. “Um megalomaníaco, um obcecado”… o que até certo ponto é verdade, como nós bem sabemos… e agora eles, que não tiveram culpa de nada, podem fazer as coisas voltarem aos eixos e abandonar um projeto que na verdade a Terra não tinha recursos para financiar. Fisher sorriu. — Tessa, meu amor, como política você é uma excelente hi perespacialista. O Diretor do Escritório é, em teoria e na opinião do público, um funcionário nomeado, com poderes limitados, sob as ordens diretas do Presidente Geral e do Congresso Global. Esses dirigentes, que são eleitos pelo povo e supostamente detêm o poder, não podem admitir que Tanayama controlava a todos, que viviam encolhidos pelos cantos, com medo de respirar sem a permissão do Velho. Eles se revelariam como políticos fracos e covardes e se arriscariam a perder os seus cargos na próxima eleição. Não, eles vão ter que continuar com o projeto. Os cortes serão apenas para constar. — Como pode ter tanta certeza? — murmurou Wendel — Tenho uma grande experiência em observar políticos de carreira, Tessa. Além do mais, se pararmos agora, estaremos convidando todas as colônias a nos passarem a perna… a se mudarem para outro sistema e nos deixarem para trás, como fez Rotor. — Ah é? Como eles vão fazer isso? — Já que conhecem a propulsão hiperespacial, não acha inevitável que cheguem ao vôo superluminal? Wendel lançou um olhar sarcástico para Fisher. — Crile, meu amor, como hiperespacialista você é um grande espião. É isso que pensa do meu trabalho? Que é uma conseqüência inevitável da propulsão hiperespacial? Ainda não se deu conta do fato de que a propulsão hiperespacial é uma conseqüência direta do pensamento relativístico? Na propulsão hiperespacial, o princípio de que nada pode ser mover mais depressa que a luz ainda é respeitado. Passar para velocidades superluminais exige um grande salto, tanto na prática quanto na teoria. Não é uma coisa que aconteça naturalmente, como tentei explicar para vários membros do governo. Eles se queixaram da lentidão e dos custos, e eu tive que explicar as dificuldades. Certamente eles ainda se lembram dos meus argumentos. Não posso chegar lá agora e dizer que se pararmos outros vão passar à nossa frente. Fisher balançou a cabeça. — Claro que pode. E eles vão acreditar em você, porque é verdade. Podemos facilmente ser ultrapassados. — Não estava prestando atenção no que eu disse? — Estava, mas você se esqueceu de uma coisa. — De que foi que me esqueci, Crile? — O grande salto da propulsão hiperespacial para o vôo superluminal é um grande salto apenas quando se começa do começo, como você fez. As colônias, porém, não vão começar do começo. Acha sinceramente que eles nada sabem a respeito do nosso projeto, a respeito de Hipérpolis? Acha que eu e meus colegas somos os únicos espiões do Sistema Solar? As colônias também têm seus espiões, que trabalham tão duro quanto nós e com a mesma eficiência. Apenas para dar um exemplo: eles ficaram sabendo que você estava na Terra no dia em que chegou aqui. — E daí? — Só isso. Acha que eles não têm computadores para informar-lhes que você escreveu e publicou artigos sobre o assunto? Acha que eles não têm acesso a esses artigos? Acha que eles não estudaram a fundo os artigos e descobriram que você considera as velocidades superluminais teoricamente possíveis? Wendel mordeu o lábio e começou: — Bem… — Procure pensar. Quando você escreveu sua opinião a respeito da velocidade superluminal, estava simplesmente especulando. Ninguém a levava a sério. Mas você vem para a Terra e fica aqui. De repente, você desaparece e não volta para Adelia. Podem não saber todos os detalhes do que você está fazendo, porque o projeto foi mantido em segredo, graças em parte à paranóia de Tanayama. Mesmo assim, o simples fato de você ter desaparecido já é sugestivo, e, diante dos trabalhos que você publicou, não pode haver dúvida quanto à natureza do seu trabalho… “Uma coisa como Hipérpolis não pode ser mantida em segredo total. As incríveis somas de dinheiro que foram investidas deixaram um rastro visível. Assim, todas as colônias estão atrás de informações esparsas, que eles possam transformar em uma base de conhecimento. Cada informação ajuda-os a chegar mais perto da verdade. Diga isso para eles, Tessa, se falarem em cancelar o projeto. Nós podemos ser ultrapassados, sim, e isso ocorrerá se pararmos de correr. Essa idéia fará com que os novos dirigentes lutem pelo projeto com o mesmo entusiasmo que Tanayama e tem o grande mérito de ser verdadeira. Wendel ficou em silêncio por um tempo considerável, observada por Fisher. — Está certo, meu querido espião — disse, afinal. — Cometi um erro ao pensar em você como um amante, e não como um conselheiro. — As duas coisas não precisam ser mutuamente exclusivas, Wendel. — Por outro lado, querido, sei muito bem qual a sua motivação. — Que importa isso — argumentou Fisher —, mesmo que seja verdade, se no final estamos interessados no mesmo objetivo? Uma delegação do Congresso finalmente chegou a Hipérpolis, acompanhada por Igor Koropatski, o novo diretor do Serviço de Informações da Terra. Era um funcionário de carreira; havia muitos anos ocupava posições subalternas no Escritório, de modo que Tessa Wendel o conhecia de vista. Era um homem tranqüilo, de cabelos grisalhos, que estavam começando a rarear, nariz bulboso e queixo duplo, que parecia bem alimentado e bem-humorado. Era inegavelmente sagaz, mas lhe faltava a agressividade quase doentia de Tanayama. Isso era visível de longe. Os congressistas estavam com ele, naturalmente, como para mostrar que o sucessor do Velho estava sob o seu controle. Deviam estar torcendo para que as coisas continuassem assim. Tanayama tinha sido uma lição amarga. Ninguém propôs que o projeto fosse cancelado. Pelo contrário, a idéia era acelerar os trabalhos, na medida do possível. A cautelosa tentativa de Wendel de chamar a atenção para a possibilidade de as colônias ultrapassarem a Terra se as pesquisas fossem paralisadas foi aceita sem contestação, como se se tratasse de uma coisa óbvia. Koropatski, incumbido pelos congressistas de ser o porta-voz do grupo e assumir a responsabilidade pelo projeto, disse: — Dra. Wendel, não vou lhe pedir para fazer uma inspeção formal de Hipérpolis. Já estive aqui antes, e é mais importante que passe algum tempo reorganizando o Escritório. Não quero desmerecer meu predecessor, mas toda mudança de chefia requer uma certa reorganização, principalmente se o mandato anterior foi muito longo. Não sou, por temperamento, um homem formal. Vamos, portanto, conversar livremente, da forma menos formal possível. Vou fazer-lhe algumas perguntas e espero que responda em termos acessíveis a um homem com os meu modestos conhecimentos de ciência. Wendel fez que sim com a cabeça. — Farei o possível, Sr. Diretor. — Ótimo. Quando espera ter uma nave superluminal em funcionamento? — Infelizmente, Sr. Diretor, não posso responder a essa pergunta. Estamos à mercê de dificuldades e acidentes imprevistos. — Suponha que não haja dificuldades e acidentes imprevistos. — Nesse caso, já que a parte de pesquisa está terminada e resta apenas a parte de desenvolvimento, se tudo correr bem poderemos ter a nave em aproximadamente três anos. — Quer dizer que a nave estará terminada em 2236. — Na melhor das hipóteses. — Quantas pessoas poderá transportar? — Cinco a sete, provavelmente. — Qual o alcance máximo? — Não haverá alcance máximo, Sr. Diretor. Essa é a beleza das velocidades superluminares. Como estaremos viajando no hiperespaço, onde as leis comuns da física não se aplicam, nem mesmo a lei da conservação da energia, é tão fácil viajar mil anos-luz do que viajar um. O diretor parecia incrédulo. — Não sou físico, mas acho difícil aceitar uma situação em que não há limites. Existem coisas que vocês não podem fazer? — Existem, sim. Para entrar e sair do hiperespaço, a nave deve estar no vácuo e o campo gravitacional a que estiver sujeita no momento não pode exceder um certo limite. Com a prática, certamente encontraremos outras limitações, mas elas terão que ser determinadas nos vôos de teste. De acordo com os resultados desses vôos, o projeto poderá sofrer um atraso considerável. — Quando tiverem a nave funcionando, como será o primeiro vôo? — Parece prudente limitar o primeiro vôo ao Sistema Solar, visitando Plutão, por exemplo, mas isso talvez seja considerado por muitos como uma perda de tempo. Quando tivermos a tecnologia para visitar as estrelas, a tentação de visitar um estrela talvez seja irresistível. — Uma estrela como a Estrela Vizinha? — Seria uma das metas prováveis. O ex-Diretor Tanayama havia escolhido a Estrela Vizinha como objetivo prioritário, mas devo observar que existem outras opções muito mais interessantes. Sírio fica a uma distância apenas quatro vezes maior e nos daria a oportunidade de observar de perto uma anã branca. — Dra. Wendel, penso que a Estrela Vizinha deve ser a meta, embora não necessariamente pelas razões alegadas por Tanayama. Suponha que você viaje para alguma outra estrela, qualquer uma, e volte para o Sistema Solar. Como provaria que realmente esteve nas vizinhanças de outra estrela? Em outras palavras, como se defenderia da acusação de que o suposto vôo foi na realidade uma farsa? — Uma farsa? — repetiu Wendel, levantando-se, furiosa. — Isto é um insulto! — Sente-se, Dra. Wendel — disse Koropatski, cuja voz havia assumido de repente um tom autoritário. — A senhora não está sendo acusada de coisa alguma. Estou tentando prever uma situação e tomar as devidas precauções. A humanidade conquistou o espaço há quase três séculos. Foi um acontecimento marcante na nossa história, de modo que ainda guardamos alguns registros do que aconteceu na ocasião. Quando os primeiros satélites artificiais foram lançados, muitos insistiram em que todos os dados supostamente fornecidos pelos satélites eram falsos. A autenticidade das primeiras fotografias da face oculta da Lua também foi contestada. Até mesmo as primeiras fotografias da Terra vista do espaço foram negadas por aqueles que ainda acreditavam que a Terra era plana. Se a Terra declarar que possui o vôo superluminal, pode enfrentar dificuldades semelhantes. — Por que, Sr. Diretor? Por que alguém haveria de achar que estamos mentindo? — Minha cara Dra. Wendel, a senhora está sendo muito ingênua. Há mais de três séculos, Albert Einstein tem sido o semi-deus que inventou a cosmologia. Geração após geração acostumou a considerar a velocidade da luz como um limite absoluto. O homem não renunciará facilmente a este conceito. Até mesmo o princípio da causalidade — e é difícil pensar em algo mais básico do que a idéia de que as causas precedem os efeitos — terá de ser reformulado. Isso é uma coisa. “Outra, Dra. Wendel, é que os governos das colônias podem considerar conveniente, do ponto de vista político, convencer a população das colônias, e da Terra, também, de que estamos mentindo. Isso servirá para nos confundir, nos envolver em polêmicas, nos fazer perder tempo, para que eles possam nos alcançar. De modo que torno a lhe perguntar: existe uma maneira de provar que realizamos um vôo superluminal? — Sr. Diretor — disse Wendel, com voz gélida —, bastaria permitirmos que os cientistas das colônias inspecionassem a nave depois do nosso retorno. Explicaríamos com detalhes as técnicas que utilizamos… — Não, não, não! Por favor. Não adianta prosseguir. Isso só convenceria os especialistas como a senhora. — Está bem. Quando voltarmos, traremos fotografias do céu e as estrelas mais próximas estarão em posições um pouco diferentes. Pela mudança nas posições relativas, será possível calcular exatamente a que distância do Sol nos encontrávamos no momento em que as fotografias foram tiradas. — Também só serve para cientistas. Totalmente irrelevante para a pessoa comum. — Vamos ter fotografias da estrela que visitarmos, tiradas bem de perto. — Este tipo de coisa aparece em qualquer programa de holovisão sobre viagens interestelares. É peça obrigatória dos épicos de ficção científica. Vão pensar que estamos apresentando mais um episódio do “Capitão Galáxia”. — Nesse caso — disse Wendel, com impaciência —, não sei de nenhum jeito. Se as pessoas não quiserem acreditar, nada poderei fazer. O problema é seu. Sou apenas uma cientista. — Calma, calma, Dra. Wendel. Quando Colombo voltou de sua primeira viagem ao Novo Mundo, há sete séculos e meio, ninguém o acusou de fraude. Por quê? Porque levou com ele para a Europa alguns nativos da terra que havia visitado. — Muito bem, mas a probabilidade de encontrarmos mundos habitados é muito pequena. — Nem tanto. Dizem que Rotor descobriu a Estrela Vizinha com o auxílio da Sonda Profunda e deixou o Sistema Solar logo depois disso. Como eles nunca mais voltaram, é possível que ainda se encontrem nas vizinhanças da Estrela Vizinha. — Era o que pensava o Diretor Tanayama. Entretanto, a vigem de Rotor, com o auxílio da propulsão hiperespacial, levaria mais de dois anos. É possível que tenha ocorrido algum acidente e eles jamais tenham completado a viagem. Isso também explicaria o fato de não haverem voltado. — Por outro lado — insistiu Koropatski, pacientemente —, pode ser que eles tenham chegado ao destino. — Mesmo que tenham chegado, provavelmente se limitaram a colocar Rotor em órbita em torno da estrela, pois é pouco provável que haja qualquer planeta habitável girando em torno da Estrela Vizinha. Nesse caso, mesmo que o confinamento forçado não tenha acabado com eles durante a viagem, a essa altura a sociedade de Rotor já se desintegrou totalmente e a Colônia não passa de um túmulo no espaço. — Então a senhora concorda comigo que nosso objetivo deve ser a Estrela Vizinha, pois assim que chegarem lá, vocês vão procurar Rotor, vivo ou morto. Em qualquer dos dois casos vão trazer de volta alguma coisa tipicamente rotoriana. Qualquer pessoa que vir essa coisa acreditará que vocês realmente viajaram até as estrelas e voltaram. — Sorriu para Wendel. — Até eu acreditaria. De modo que essa será a sua missão, e para isso, fique tranqüila, a Terra continuará a fornecer todos os recursos de que necessitar. Quando terminaram o jantar, durante o qual não foram levantadas questões de ordem técnica, Koropatski disse para Wendel, no tom mais amistoso possível, mas com um leve toque de gelo na voz: — A propósito, não se esqueça de que tem apenas três anos para terminar o projeto. No máximo. — De modo que não precisou usar meu brilhante argumento — disse Crile Fisher, levemente desapontado. — Não. Estavam decididos a prosseguir, mesmo sem o perigo de ser ultrapassados. A única coisa que os preocupava, e é algo que aparentemente nunca incomodou Tanayama, era essa questão de terem que se defender de possíveis acusações de fraude. Acho que Tanayama queria apenas destruir Rotor. Depois de conseguir seu objetivo, o mundo podia gritar “Mentira!?” quanto quisesse. — Só que não gritaria. O Velho daria ordens aos tripulantes da nave para trazer de volta alguma coisa que lhe mostrasse que Rotor havia sido destruído. Essa prova serviria também para os outros. Que tipo de homem é o novo diretor? — Bem diferente de Tanayama. Parece cordato, quase humilde, mas tenho a impressão de que o Congresso Global vai achá-lo um osso tão duro de roer quanto Tanayama. Só precisa de um pouco de tempo para se acostumar com o cargo. — Pelo que você me contou a respeito da conversa, ele parece mais sensato que Tanayama. — É verdade, mas até agora fico furiosa quando penso naquela história de fraude. Imagine pensar que é possível forjar um vôo espacial! Acho que é resultado da falta de experiência dos terráqueos nessas questões. Vocês têm um mundo tão grande que raramente sentem necessidade de deixá-lo. Fisher sorriu. — Eu sou uma das raras exceções. Sou muito viajado. E você nasceu nas colônias. De modo que o que disse não se aplica a nenhum de nós dois. — Tem razão — reconheceu Wendel, olhando-o de soslaio. — Às vezes tenho a impressão de que você se esqueceu de que nasci nas colônias. — Essa impressão é falsa, acredite. Não fico repetindo para mim mesmo: “Tessa nasceu nas colônias! Tessa nasceu nas colônias!”, mas, mesmo assim, nunca me esqueço. — E os outros? — disse Wendel, fazendo um gesto vago, como que para abranger um volume indefinido de espaço. — Aqui está Hipérpolis, sujeita a regras estritas de segurança, e por quê? Para que o pessoal das colônias não descubra os nossos segredos. Estamos tentando desenvolver o vôo superluminal antes das colônias. E quem é que colocam na chefia do projeto? Alguém que nasceu nas colônias! — É a primeira vez que pensa nisso, nos cinco anos que participa do projeto? — Não, penso nisso de vez em quando. Quanto mais penso, menos compreendo. Por que eles confiam em mim? Fisher deu uma gargalhada. — Acontece que você é uma cientista. — E daí? — Os cientistas são considerados mercenários, pessoas incapazes de estabelecer laços permanentes com qualquer sociedade. Ofereça a um cientista um problema fascinante e todo dinheiro, equipamento e pessoal de que precisa para fazer suas pesquisas, e o cientista não quer saber quem o está apoiando. Seja franca: você não está interessada na Terra, nem em Adelia, nem mesmo pelas colônias como um todo, nem mesmo pela humanidade como um todo. Quer apenas ser a primeira a inventar o vôo superluminal. — O que está descrevendo é um estereótipo, e nem todos os cientistas se encaixam. Talvez eu não me encaixe. em — Você deve saber, também, que está sob constante observação. Alguns dos seus assistentes mais próximos provavelmente estão encarregados de vigiá-la o tempo todo e fornecer periodicamente relatórios ao governo. — Espero que não esteja se referindo a você mesmo. — Não me diga que nunca passou pela sua cabeça que estou perto de você apenas para cumprir meu papel de espião; — Para dizer a verdade, a idéia já me ocorreu — Pois não é o meu trabalho. Acho que estou ligado demais a você para que confiem em mim. Na verdade, estou certo de que também me encontro sob observação e que minhas atividades são constantemente avaliadas. Enquanto mantiver você feliz… — Você é uma pessoa insensível, Crile. Como Pode achar graça em uma coisa dessas? — Não estou fazendo graça. Estou tentando ser realista. Se você se cansar de mim, perderei minha função. Uma Tessa infeliz pode ser uma Tessa menos produtiva, de modo que vão me tirar do seu caminho e arranjar um substituto. Afinal de contas, seu contentamento vale muito mais para eles do que o meu. Está vendo até onde vai o meu realismo? De repente, Wendel estendeu a mão para afagar o rosto de Crile. — Não se preocupe. Acho que estou acostumada demais com o seu jeito para me cansar de você. Quando mais moça, era comum enjoar dos meus homens e descartá-los, mas agora… — Não vale a pena o desgaste, não é? — Se insiste em colocar as coisas nesses termos. Pode ser que eu finalmente esteja apaixonada… à minha maneira. — Eu entendo o que quer dizer. O amor a sangue-frio pode ser repousante. Mas desconfio que este não é o momento apropriado para provar isso. Primeiro, você vai ter de digerir a conversa que teve com Koropatski, com aquela história de fraude que fez você subir pelas paredes. — Um dia eu supero isso. Mas há outra coisa. Lembra de que eu lhe disse que os terráqueos não têm experiência nas questões de espaço? — Eu me lembro. — Pois aqui está um exemplo. Koropatski não faz a menor idéia da imensidão do espaço. Ele quer que a gente viaje para a Estrela Vizinha e encontre Rotor. Como vamos fazer isso? De vez em quando, observamos um novo asteróide e o perdemos antes mesmo de termos tempo de calcular sua órbita. Sabe quanto tempo leva para localizar um asteróide perdido, mesmo usando os instrumentos mais modernos? Anos, às vezes. O espaço é muito grande, mesmo nas vizinhanças de uma estrela, e Rotor é pequeno. — Sim, mas procuramos um asteróide entre cem mil. Rotor, por outro lado, será o único objeto da sua classe perto da Estrela Vizinha. — Quem foi que lhe disse? Mesmo que a Estrela Vizinha não disponha de um sistema planetário como o nosso, é extremamente improvável que não esteja cercado de corpos menores. — Seriam corpos inertes, como os nossos asteróides. Como Rotor é uma colônia em funcionamento, estará emitindo radiações de todos os tipos, que serão fáceis de detectar. — Isso se Rotor ainda estiver funcionando. E se não estiver? Nesse caso, não será possível distingui-lo de um asteróide comum, o que tornará a busca praticamente impossível. Fisher não pôde ocultar uma expressão de desânimo. Wendel colocou o braço no seu ombro. — Oh, querido, você conhece a situação. Precisa encará-la de frente. — Eu sei — disse Fisher, com voz embargada. — Mas elas podem estar vivas, não é verdade? — Pode ser — concordou Wendel, sem muito entusiasmo. — Se estiverem, melhor para nós. Como você disse, será fácil localizá-los através das emissões de radiação. Mais que isso… — Sim? — Koropatski nos pediu para trazer de volta alguma coisa que mostre que estivemos em Rotor. Ele acha que essa será a melhor maneira de provar que fizemos uma viagem de vários anos-luz em, no máximo, uns poucos meses. Só que… exatamente o que devemos trazer? Suponha que a gente encontre alguns pedaços de metal e concreto flutuando no espaço. Nem todos os pedaços serviriam Uma viga de metal, sem nada para identificá-la, poderia ser alguma coisa que levamos conosco. Mesmo que conseguíssemos encontrar uma peça característica de Rotor, um artefato produzido apenas naquela colônia, como iríamos provar que não tinha sido levada para a Terra quando Rotor ainda estava no Sistema Solar? “Entretanto, se Rotor ainda for uma colônia viva, em pleno funcionamento, talvez a gente possa convencer um rotoriano a voltar conosco. Não será difícil identificá-lo como rotoriano. Para isso há as impressões digitais, os padrões de fundo de olho, a análise do ADN. Pode ser até que haja pessoas em outras colônias, ou na própria Terra, que conheçam o rotoriano em questão. Essa é a idéia de Koropatski. Ele mencionou o caso de Colombo, que, ao voltar para a Europa de sua primeira viagem, levou índios com ele. “Naturalmente — prosseguiu Wendel, com um profundo suspiro —, há um limite para a carga, animada ou inanimada que podemos trazer. Um dia teremos naves tão grandes quanto as colônias, mas a primeira vai ser pequena e, até certo ponto, primitiva. Estaremos talvez em condições de trazer um rotoriano; mais que um, excederia a nossa capacidade, de modo que temos de escolher o rotoriano certo. — Marlene, minha filha — disse Fisher. — Talvez ela não queira vir. Terá que ser um voluntário. Certamente encontraremos um entre os milhares de habitantes, mas se sua filha não quiser vir… — Marlene vai querer, sim. É só eu ter uma oportunidade de falar com ela. Tenho absoluta certeza de que posso convencê-la. — A mãe pode não concordar. — Vou convencê-la, também — insistiu Fisher. — Sei que posso. Wendel suspirou de novo. — Não posso alimentar suas esperanças, Crile Não vê que não podemos trazer sua filha de volta, mesmo que ela esteja de acordo? — Não? Por que não? — Sua filha tinha apenas um ano de idade na época da Partida. Ela não se lembra do Sistema Solar. Ninguém no Sistema Solar poderia identificá-la. Não. Precisamos de uma pessoa de meia-idade, pelo menos, e que tenha visitado outras colônias, ou, melhor ainda, a Terra. — Fez uma pausa e depois acrescentou: — Sua mulher talvez fosse uma boa escolha. Não me disse uma vez que ela fez o doutorado na Terra? Seria fácil identificá-la pelos registros. Embora, para ser franca, eu prefira que seja outra pessoa. Fisher ficou calado. — Sinto muito, Crile. Gostaria que fosse de outra forma — disse Wendel, com ar tímido. — Quero apenas que Marlene esteja viva — retrucou Fisher, com voz trêmula. — Veremos o que pode ser feito. VINTE E UM SONDA CEREBRAL — Sinto muito — disse Siever Genarr, olhando para mãe e filha com uma expressão de culpa que dispensava palavras. — Disse a Marlene que eu não tinha praticamente nada para fazer e logo depois fui surpreendido por uma espécie de minicrise que envolveu nosso gerador de energia e me fez adiar essa nossa entrevista. A crise, felizmente, passou, e no final das contas não foi nada de sério, pelo menos em retrospecto. Estou perdoado? — Naturalmente, Siever — disse Eugenia Insigna. Parecia muito nervosa. — Não vou dizer que tenha sido fácil esperar três dias. Acho que cada hora que passamos aqui aumenta o perigo para Marlene. — Não tenho medo de Eritro, tio Siever — disse Marlene. — E não acho que Pitt possa fazer nada contra nós em Rotor — disse Insigna. — Ele sabe disso, ou não teria nos mandado para cá. — Vou tentar contentar a ambas — disse Genarr. — Mesmo que Pitt não possa fazer nada abertamente, há muita coisa que pode fazer por vias indiretas. É perigoso, Eugenia, permitir que o seu medo de Eritro a faça subestimar a pertinácia e a habilidade de Pitt. Para começar, se voltarem para Rotor, estarão desobedecendo frontalmente a suas ordens. Ele poderá mandar prendê-las, enviá-las para Novo Rotor ou simplesmente mandá-las de volta para cá. — Quanto a Eritro, não convém minimizar o risco de Marlene contrair a Praga, embora tudo indique que ela está em declínio, pelo menos em sua forma mais virulenta. Não é só você que não quer arriscar a saúde mental de Marlene, Eugenia. — Não estou correndo nenhum risco! — interveio Marlene. — Siever, acho que não devíamos estar discutindo este assunto na presença de Marlene. — Você está errada, Insigna. Quero discutir o assunto na presença de sua filha. Acho que ela sabe melhor do que eu ou você o que deve ser feito. Marlene tem uma mente privilegiada; devemos interferir com ela o mínimo possível. Insigna fez um ruído gutural de protesto, mas Genarr prosseguiu: — Quero que Marlene esteja presente porque estou interessado na sua opinião. — Você sabe o que ela pensa — disse Insigna. — Quer sair do Domo, e você está dizendo que devemos deixá-la fazer o que quer porque tem poderes mágicos. — Ninguém disse nada a respeito de poderes mágicos ou de fazer a vontade de Marlene. Acho que devemos fazer uma experiência, com todas as precauções cabíveis. — Que tipo de experiência? — Para começar, eu usaria uma sonda cerebral. — Voltou- se para Marlene. — Compreende, Marlene, que isso é necessário? Tem alguma objeção? Marlene franziu a testa. — Já fui examinada com uma sonda cerebral. Todo mundo já foi. Eles não deixam a gente entrar no colégio sem passar por uma sonda cerebral. Toda vez que se faz um exame médico completo… — Eu Sei — interrompeu Genarr, com um sorriso. — Não desperdicei totalmente os últimos três dias. Tenho aqui — pousou a mão em uma pilha de listagens de computador, que estava sobre a escrivaninha — os resultados de todos os exames a que você já foi submetida. — Mas não está sendo totalmente sincero, tio Siever — declarou Marlene, calmamente. — Ah, é? — disse Insigna, com um toque de triunfo na voz. — O que ele está escondendo, Marlene? — Está preocupado comigo. Não tem certeza de que eu esteja segura aqui em Eritro. — Como pode ser, Marlene? Estou convencido de que não corre nenhum perigo. — Acho que foi por isso que esperou três dias, tio Siever. Queria esconder sua insegurança atrás de uma máscara. Mas não deu certo. Posso ver como se sente. — Se está vendo alguma insegurança, Marlene, é porque gosto tanto de você que o menor risco me parece uma possibilidade muito desagradável. — Se para você o menor risco parece uma possibilidade desagradável, como imagina que eu, como mãe, me sinto? De modo que você não teve nenhum escrúpulo em mandar buscar os exames de Marlene, violando sua privacidade. — Eu tinha de saber. Acontece que os exames são insuficientes. — Insuficientes em que sentido? — Nos primeiros dias do Domo, quando a Praga estava no auge, uma das nossas preocupações foi desenvolver uma sonda cerebral mais precisa e um programa de computador mais eficiente para interpretar os dados. Acontece que a nova técnica até hoje ainda não foi adotada em Rotor. Pitt deve ter achado que o súbito aparecimento de um novo modelo de sonda cerebral em Rotor poderia levar a população a suspeitar da existência da Praga. Um temor ridículo, a meu ver, mas neste assunto, como em tantos outros, Pitt acabou fazendo as coisas a seu modo. Assim, Marlene, você nunca foi submetida a um exame adequado, e eu gostaria de examiná-la com o nosso aparelho. Marlene se encolheu. — Não. Um lampejo de esperança passou pelo rosto de Insigna. — Por que não, Marlene? — Porque, quando tio Siever disse isso… ele se sentiu de repente muito mais inseguro. — Não, não foi… — começou Genarr. Parou, levantou os braços e deixou-os pender, desanimado. — Que adianta? Marlene, querida, se de repente pareci preocupado, é porque precisamos de um exame cerebral muito detalhado, que sirva como padrão. Se depois de exposta a Eritro, você sofrer um dano, por menor que seja, poderemos descobrir que isso ocorreu comparando seu novo exame com o antigo. Ora, no momento em que falei em examiná-la no nosso aparelho, pensei na possibilidade de detectar um dano no seu cérebro… e isso me deixou preocupado. Vamos, Marlene, quanto de insegurança você está detectando no momento? Procure ser objetiva. — Não muito. O problema é que posso saber que o senhor está inseguro, mas não posso saber por quê. Talvez essa sua má- numa seja perigosa. — Como poderia ser? Foi usada tantas vezes… Marlene, você sabe que Eritro não fará mal a você. Também não sabe que a sonda cerebral não representa nenhum perigo? — Não, não sei. — Sabe que ela vai fazer-lhe mal? Depois de uma pausa, Marlene disse, com relutância: — Não. — Como pode estar certa quanto a Eritro, mas não quanto à sonda cerebral? — Não sei. Apenas sei que Eritro não vai me fazer mal, e não sinto o mesmo em relação à sonda cerebral. Um sorriso tomou conta do rosto de Genarr. Não era preciso nenhum dom especial para ver que ele estava profundamente aliviado. — Por que está satisfeito, tio Siever? — Porque se você estivesse fingindo que possui uma intuição fora do comum, seja por vontade de parecer importante, seja por puro romantismo, seja por outra forma qualquer de auto-ilusão, estaria certa a respeito de tudo. Não é isso que acontece. Você e seletiva. Algumas coisas sabe, outras não. Isso me faz acreditar ainda mais que está falando a verdade quando diz que Eritro não lhe causará mal algum. Tenho certeza de que o exame com a sonda não revelará nenhuma anomalia. Marlene voltou-se para a mãe. — Ele está certo, mamãe. Sente-se muito melhor, e eu também. É tão obvio! Não pode ver, também? — O que sei — disse Insigna — é que eu não me sinto melhor. — Oh, mamãe! — murmurou Marlene. Depois, disse para Genarr, em voz alta: —. Vou fazer o exame. — Não é nenhuma surpresa — murmurou Siever Genarr. Estava examinando os padrões complicados, quase florais, dos gráficos gerados pelo computador, que desfilavam lentamente na tela. Eugenia Insigna, a seu lado, observava com atenção, mas sem nada entender. — O que não é surpresa, Siever? — quis saber Insigna — Não posso lhe explicar muito bem porque não conheço os termos técnicos. Se de Ranay D’Aubisson, a maior autoridade no assunto que temos em Eritro, tentasse explicar, nem eu nem você entenderíamos. Seja como for, ela mostrou isso para mim… — Parece a casca de um caramujo. — A cor a faz sobressair. É uma medida de complexidade, e não uma representação de um objeto real, diz Ranay. Esta parte é atípica. Não costuma aparecer nos exames. — Isso quer dizer que ela já foi afetada? — perguntou Insigna, com voz trêmula. — Não, claro que não. Eu disse atípica, e não anormal. Você tem de admitir que Marlene é diferente. De certa forma, fico satisfeito por encontrar essa casca de caramujo. Se o cérebro de Marlene fosse um cérebro típico, não saberíamos de onde vem o seu extraordinário dom. Ficaríamos com a impressão de que estava nos enganando… — Mas como podemos saber que não é algo… algo… — Doentio? Como pode ser? Isso aparece em todos os exames que fez, desde a mais tenra infância. — Nunca ninguém me disse nada. — Claro que não. As sondas cerebrais que fizeram aqueles exames eram do tipo antigo, e os sinais característicos são praticamente invisíveis, a menos que a gente saiba exatamente onde procurar. Estou lhe dizendo, Eugenia, esta sonda cerebral avançada já devia estar sendo usada em Rotor. Foi uma tolice de Pitt proibir o seu uso. O exame é dispendioso, naturalmente. — Faço questão de pagar — murmurou Insigna. — Não seja tola. Este exame vai para a conta do Domo. Afinal, pode nos ajudar a descobrir o mistério da Praga. Pelo menos, é o que vou dizer se um dia me perguntarem alguma coisa a respeito. Aqui está. Um registro detalhado do cérebro de Marlene. Se ela for afetada, ainda que levemente, ficaremos sabendo. — Não faz idéia de como estou assustada. — É natural, Insigna. Acontece que sua filha acha que tu- vai acabar bem, e concordo com ela. Para mim, se Marlene acha que está segura aqui, podemos acreditar nela. — Como ela pode saber? Genarr apontou para a casca de caramujo. — Você não tem isso e eu também não, de modo que nenhum de nós dois pode explicar de onde vem a sua certeza. Mas ela tem isso e devemos deixá-la sair para a superfície. — Para que corrermos o risco? Explique-me, por favor: qual a necessidade de corrermos o risco? — Há duas razões. Primeiro, ela parece decidida, e Marlene sempre consegue o que deseja, mais cedo ou mais tarde. Por isso, é melhor atendê-la de uma vez. Segundo, é possível que a saída de Marlene nos permita descobrir alguma coisa sobre a Praga. O quê, não sei, mas qualquer informação a respeito da Praga será muito bem-vinda. — A mente da minha filha vale mais do que qualquer informação sobre a Praga. — Não chegaremos a esse ponto. Embora eu acredite em Marlene quando diz que não haverá nenhum risco, vou fazer o que puder para tornar sua excursão mais segura. Por exemplo: não vou deixá-la sair para a superfície logo da primeira vez. Posso sobrevoar Eritro com ela. Ela verá lagos e planícies, colinas, desfiladeiros. Poderemos ir até a beira do oceano. A.paisagem bonita, mas estéril. Não há nenhuma forma de vida visível… apenas os procariotes na água, que são invisíveis, naturalmente. Pode ser que ela se sinta intimidada pela desolação da paisagem e desista de visitar o exterior. Caso, porém, ela insista em pisar na superfície, farei com que vista um traje E. — Que é um traje E? — Um traje para Eritro. Lembra um traje espacial. É uma combinação impermeável de plástico e tecido, que é muito leve e não impede os movimentos. O capacete possui um filtro para raios infra-vermelhos. A pessoa carrega um suprimento de ar, de modo que não fica exposta ao ambiente de Eritro. Além disso, haverá sempre alguém com ela. — Quem? Não confiaria em ninguém, a não ser eu Genarr sorriu. — Não posso imaginar uma escolha menos apropriada Você não conhece nada a respeito de Eritro. Além disso, morre de medo de sair do Domo. Olhe, a única pessoa em quem podemos confiar não é você, sou eu. — Você? — exclamou Eugenia, olhando para ele de boca aberta. — Por que não? Ninguém aqui conhece Eritro melhor do que eu, e se Marlene é imune à Praga, eu também sou. Estou em Eritro há dez anos e nunca fui afetado. Além do mais, sei pilotar uma aeronave, o que significa que não vamos precisar de um piloto. E se eu for com Marlene, poderei observá-la de perto. Se fizer alguma coisa fora do comum, eu a trarei de volta para o Domo num piscar de olhos e a submeterei a novo exame. — A essa altura, naturalmente, será tarde demais. — Não. Não necessariamente. Pare de encarar a Praga como se fosse uma questão de tudo ou nada. Tem havido casos brandos, e mesmo casos muito brandos. Nesse caso, as pessoas afetadas podem levar uma vida praticamente normal. Nada vai acontecer com sua filha. Tenho certeza. Insigna ficou ali sentada, em silêncio, parecendo pequena e indefesa. Genarr colocou o braço no seu ombro. — Vamos, Eugenia, esqueça-se disso por uma semana. Prometo a você que Marlene não vai sair na próxima semana… e nem na semana seguinte, se eu conseguir fazê-la mudar de idéia mostrando-lhe Eritro do ar. Durante o vôo, ela estará tão segura quanto está aqui. Agora vou sugerir-lhe uma coisa… você é astrônoma, não é? Insigna olhou para ele e disse, desanimada: — Você sabe que eu sou. — Isso quer dizer que nunca admira as estrelas. Os astrônomos nunca fazem isso. Eles se limitam a olhar para seus instrumentos. É noite lá fora. Vamos para a sala de observação. A noite deve estar linda, e não há nada como olhar para as estrelas para a gente se sentir em paz. Confie em mim. Era verdade. Os astrônomos não olhavam para as estrelas. Não havia a menor necessidade. Forneciam instruções aos telescópios, câmaras e espectroscópios através de computadores, que também eram usados para processar os resultados. Assim, as medidas, as análises e as simulações gráficas eram executadas automaticamente. O astrônomo simplesmente fazia as perguntas e examinava as respostas. Para isso, não era preciso olhar para as estrelas. Por outro lado, pensou Insigna, como é que se aprecia um céu estrelado com olhos de poeta? Será que um astrônomo é capaz de fazer isso? A simples visão do céu noturno deixa-o inquieto. São medidas a serem executadas, perguntas a serem formuladas, mistérios a serem esclarecidos; quando se dá conta, está de volta ao laboratório, com todos os instrumentos funcionando sozinhos, enquanto ele se distrai lendo um romance ou vendo holovisão. Comentou a respeito com Siever Genarr, enquanto ele dava uma última olhada no escritório antes de sair, verificando se havia alguma coisa fora do lugar. (Ele tinha esse hábito desde a adolescência, lembrou-se Insigna. E na época a irritava, embora talvez devesse admirá-lo. Siever tinha muitas qualidades, pensou, enquanto Crile…) Livrou-se a custo das divagações. Genarr estava dizendo: — Na verdade, não uso a sala de observação com muita freqüência. Sempre aparece mais alguma coisa para fazer. E quando vou lá em cima, é sempre sozinho. Será bom ter companhia, para variar. Venha! — Conduziu Insigna para um pequeno elevador. Era a primeira vez que ela entrava em um elevador no Domo e, um momento, teve a impressão de que estava de volta em Rotor, exceto pelo fato de que não sentiu nenhuma mudança na força gravitacional nem se sentiu levemente empurrada na direção de uma das paredes pelo efeito Coriolis, como teria acontecido em Rotor. — Aqui estamos — disse Genarr, fazendo um gesto para que Insigna saltasse do elevador. Ela obedeceu, viu-se em uma sala vazia e, quase imediatamente, recuou. — Estamos expostos? — quis saber ela. — Expostos? — repetiu Genarr, intrigado. — Ah, quer saber se estamos expostos à atmosfera de Eritro? Não, não precisa ter medo. Entre nós e a atmosfera de Eritro há um hemisfério de vidro revestido de diamante, que nada poderia arranhar. Um meteorito o faria em pedaços, naturalmente, mas quase não há meteoritos nos céus de Eritro. Existe vidro como esse em Rotor, você sabe, mas não desta qualidade, nem deste tamanho — explicou Genarr, com orgulho na voz. — Vocês são bem-tratados aqui — disse Insigna, estendendo a mão para tocar a superfície do vidro e certificar-se da sua existência. — Temos que ser, senão ninguém viria para cá. Naturalmente, o vidro fica molhado quando chove, mas nessas ocasiões o céu está mesmo encoberto… e quando o tempo melhora, ele seca rapidamente. O resíduo que fica é limpo durante o dia, com detergente. Sente-se, Eugenia. Eugenia se sentou em uma poltrona macia e confortável, que se reclinava quase espontaneamente, de modo que se viu olhando para cima. Pôde ouvir outra cadeira suspirar baixinho sob o peso de Genarr. Logo em seguida, as luzes, que serviam apenas para mostrar a localização das poltronas e mesinhas na sala, apagaram-se totalmente. Na escuridão de um mundo inabitado, o céu, sem nuvens, negro como veludo, estava coalhado de jóias. Insigna abriu a boca. Sabia como era o céu na teoria. Já o havia visto nos mapas, em simulações, em fotografias… de todas as formas possíveis, exceto na realidade. Descobriu que sua atenção não se voltava para os objetos interessantes nem para os mistérios a serem resolvidos. Não olhava para objetos individuais, mas para as configurações que faziam. Na pré-história, pensou, tinha sido o estudo das configurações, e não o das estrelas isoladas, que tinha dado aos antigos as constelações e o começo da astronomia. Genarr tinha razão. A paz, como um manto fino e suave, desceu sobre ela. — Obrigada, Genarr. — Obrigado por quê? — Por se oferecer para ir com Marlene. Por arriscar a mente por minha filha.. — Não estou arriscando minha mente. Nada vai acontecer, nem a mim nem a ela. Além disso, sinto um certo… um certo instinto paternal em relação a Marlene. Afinal de contas, nós nos conhecemos há muito tempo, Eugenia, e sempre tive você em alta conta. — Eu sei — disse Insigna, sentindo-se culpada. O amor de Genarr não lhe passara despercebido… o rapaz não tinha como escondê-lo. Antes de conhecer Crile, enfrentara-o com resignação; depois, com uma irritação cada vez maior. — Sinto muito, Siever, se magoei você. — Não pense nisso — disse Genarr, baixinho. Houve um longo silêncio enquanto a sensação de paz aumentava e Insigna se via torcendo para que ninguém entrasse para quebrar o estranho encanto de serenidade que dela se apossara. — Tenho uma teoria para explicar por que as pessoas não costumam vir à sala de observação aqui em Eritro. Nem em Rotor. Já reparou que a sala de observação de Rotor quase não é usada, Insigna? — Marlene ia lá de vez em quando. Ela me disse que em geral ficava totalmente sozinha. No último ano, começou a me dizer que gostava de observar Eritro. Eu devia ter prestado mais atenção… — Marlene é uma moça fora do comum. Acho que o que incomoda a maioria das pessoas é aquilo ali. — O quê? — Aquilo — disse Genarr. Estava apontando para um ponto no céu, mas no escuro Insigna não podia ver seu braço. — Aquela estrela muito brilhante; a mais brilhante do céu. — Está falando do Sol… do nosso Sol… o Sol do Sistema Solar. — Isso mesmo. É um intruso. Com exceção dessa estrela, o céu daqui é muito parecido com o da Terra. Alfa Centauri está fora do lugar e Sírio está ligeiramente deslocada, mas mal dá para notar. Fora isso, o céu que você está vendo é o mesmo que os sumérios viam há cinco mil anos. Com exceção do Sol. — Acha que é o Sol que afasta as pessoas da sala de observação. — Talvez não seja consciente, mas a visão do Sol os deixa pouco à vontade. A tendência é achar que o Sol está muito, muito fora de alcance, parte de um Universo diferente. Entretanto, ali está ele no céu, brilhante, exigindo a nossa atenção, despertando sentimentos de culpa por havermos fugido dele. — Nesse caso, por que as crianças e adolescentes não costumam freqüentar a sala de observação? Para eles, o Sol e o Sistema Solar nada significam. — Nós, os mais velhos, damos um exemplo negativo. Depois que morrermos, quando não houver mais ninguém em Rotor para quem o Sistema Solar seja mais que um nome, o céu voltará a pertencer a Rotor e este lugar ficará superlotado… se ainda existir. — Acha que ele poderá não existir? — Não posso prever o futuro, Eugenia. — Até o momento, nossa colônia está prosperando. — é verdade, mas o que me preocupa é aquela estrela brilhante… aquele intruso. — Nosso velho Sol? Que pode fazer? Não pode nos atingir — Claro que pode. — Genarr estava olhando para a estrela brilhante no céu. — Um dia, as pessoas que deixamos na Terra e nas colônias vão descobrir Nêmesis. Talvez já tenham descoberto. E talvez já disponham da propulsão hiperespacial. Em minha opinião, desenvolveram a propulsão hiperespacial logo depois que partimos. Nosso exemplo deve ter representado um grande estímulo para as pesquisas. — Partimos há quatorze anos. Por que ainda não estão aqui? — Talvez não gostem da idéia de uma viagem de dois anos-luz. Sabem que Rotor tentou, mas não sabem se fomos bem-sucedidos. Podem achar que nossos destroços estão espalhados pelo espaço, em todo o trajeto entre o Sol e Nêmesis. — Nós tivemos coragem de tentar. — Claro que tivemos. Mas acha que Rotor faria a tentativa se não fosse por Pitt? Foi Pitt que convenceu o resto da população, e duvido que haja outro Pitt na Terra ou nas colônias. Sabe que não gosto de Pitt. Desaprovo seus métodos, sua falta de escrúpulos, o modo como é capaz de mandar uma menina como Marlene para um lugar que, no seu entender, pode representar para ela um perigo mortal. Entretanto, a julgar pelos resultados que conseguiu, Pitt pode entrar para a história como um grande homem. — Como um grande líder — disse Insigna. — Você é um grande homem, Siever. Há uma diferença. Ficaram de novo em silêncio. Depois, Genarr disse, em voz baixa: — Continuo esperando que eles venham atrás de nós. É o meu maior medo, e parece aumentar quando olho para o intruso. Faz quatorze anos que deixamos o Sistema Solar. Que será que eles têm feito nesses quatorze anos? Já pensou nisso, Eugenia? — Nunca — disse Eugenia, semi-adormecida. — Minhas preocupações são mais imediatas. VINTE E DOIS ASTERÓIDE 22 de agosto de 2235! A data tinha um significado especial para Crile Fisher, pois era o aniversário de Tessa Wendel. Mais precisamente: estava fazendo cinqüenta e três anos. Ela evitou mencionar o dia, ou o seu significado, talvez porque se orgulhasse tanto de sua aparência jovem em Adelia, ou porque se ressentisse do fato de Fisher ser cinco anos mais moço. Entretanto, a diferença de idades nada significava para Crile. Mesmo que Fisher não se sentisse atraído pela inteligência e vigor sexual de Tessa, ela era a chave para o segredo de Rotor e ele sabia disso. Agora havia finas rugas em volta dos seus olhos, e os músculos dos braços estavam um pouco flácidos, mas o dia de aniversário foi um dia de triunfo para Wendel. entrou no apartamento, que com o passar dos anos estava ficando cada vez mais bem mobiliado, e jogou-se na cadeira de braços, com um e sorriso de satisfação no rosto. — Foi tudo tranqüilo como o espaço sideral. Sucesso absoluto! — Gostaria de estar lá — disse Crile. — Eu também gostaria que você estivesse, Crile, mas sabe como é a segurança. A meta havia sido Hipermnestra, um asteróide sem nada de especial a não ser sua localização no momento, não muito próximo de outros asteróides, e, o que era mais importante, não muito próximo de Júpiter. Também não era reclamado por nenhuma colônia. Para culminar, havia as duas primeiras sílabas do nome, que, por mais triviais que fossem, pareciam designar um alvo apropriado para o primeiro vôo superluminal. — Então a nave chegou até lá sem problemas. — A menos de dez mil quilômetros do alvo. Poderíamos ter chegado ainda mais perto, mas não queríamos expô-la a um campo gravitacional maior que o necessário. E a trouxemos de volta, naturalmente, para o local previsto. No momento, está sendo comboiada por duas naves comuns. — As colônias devem ter assistido à experiência. — É provável, mas uma coisa é ver que a nave desapareceu instantaneamente e outra é saber para onde foi; se viajou quase à velocidade da luz ou muito mais depressa do que isso; e, acima de tudo, como conseguimos esse feito. De modo que não estamos preocupados com isso. — As colônias não tinham nenhuma nave nas proximidades de Hipermnestra, tinham? — Não poderiam conhecer a nossa meta, a não ser que tivesse ocorrido uma falha na segurança, o que, aparentemente, não aconteceu. No geral, Crile, o resultado foi extremamente satisfatório. — Um passo gigantesco. — Temos outros passos gigantescos pela frente. Foi a primeira nave, capaz de transportar um ser humano, a atingir velocidades superluminais. Entretanto, como você sabe, era tripulada se esse é o nome apropriado — apenas por um robô. — O robô funcionou de acordo com o esperado? — Perfeitamente, mas isso não é muito importante, exceto para demonstrar que podemos transferir uma grande massa para lá e para cá sem que haja danos… pelo menos danos grosseiros. Serão necessárias várias semanas de inspeção para termos certeza de que não houve danos microscópicos. Naturalmente, ainda temos de construir naves maiores, instalar os sistemas vitais e aumentar os dispositivos de segurança. Os robôs são bem mais resistentes que os seres humanos. — Estamos cumprindo o cronograma? — Até o momento. Até o momento. DEritro de um ano ou um ano e meio, se não houver nenhum imprevisto, estaremos em condições de surpreender os rotorianos, se é que eles ainda existem. Fisher fez uma careta, e Wendel disse, em tom contrito: — Sinto muito. Prometi a mim mesma que não diria mais coisas assim, mas às vezes simplesmente me escapam. — Não tem importância — disse Fisher. — Está decidido que vou estar a bordo na primeira viagem para Rotor? — É difícil prever com o que vai acontecer daqui a um ano ou mais. Pode haver alguma mudança nos planos — Está bem, mas qual é a situação no momento? — Parece que Tanayama deixou um pedido pessoal para que reservassem um lugar para você… uma atitude mais decente do que eu esperava. Koropatski me contou a respeito esta tarde, depois do vôo, quando achei que era um bom momento para tocar no assunto. — Ótimo! Era uma antiga promessa de Tanayama. Ainda bem que ele resolveu colocá-la no papel. — Você se importa de me dizer por que ele fez essa promessa? Tanayama nunca me pareceu o tipo de pessoa que faz alguma coisa de graça. — Tem razão. Ele me prometeu um lugar na nave com a condição de que eu conseguisse a sua colaboração no projeto. Deve lembrar-se de que fui bem-sucedido na tarefa. Wendel fez um muxoxo. — Duvido que o pedido de Tanayama tenha sido a razão principal. Koropatski me disse que não se sentia obrigado a cumprir as promessas do Velho, mas que você tinha vivido alguns anos em Rotor e seus conhecimentos poderiam ser úteis à missão. Pessoalmente acho que, depois de treze anos, esses conhecimentos talvez não sejam tão úteis assim, mas não disse nada, porque decidi que estava me sentindo muito feliz depois do teste, e decidi que, no momento, estava apaixonada por você. Fisher sorriu, — Sinto-me aliviado, Tessa. Espero que você também este no primeiro vôo. Você perguntou sobre isso, também? Wendel recuou um pouco a cabeça, como se fosse para focalizar melhor o rosto de Fisher. — Meu caso é muito mais complicado, meu amigo. Eles estavam perfeitamente dispostos a arriscar a sua vida, mas disseram que não podiam se dar ao luxo de arriscar a minha. “Se alguma coisa acontecer à senhora, quem vai continuar o projeto?” Eu disse para eles: “Qualquer um dos meus vinte assistentes, que sabem tanto quanto eu a respeito dos vôos superluminais, e são mais jovens e cheios de energia.” Estava mentindo, naturalmente, já que não há ninguém como eu, mas ficaram impressionados. — Talvez tenham razão, você sabe. Acha que deve correr o risco, Tessa? — Acho. Em primeiro lugar, gostaria de ser a comandante do primeiro vôo superluminal. Segundo, estou curiosa para ver outra estrela, e sinto uma certa inveja dos rotorianos, que chegaram lá primeiro, se é que… — Interrompeu a tempo o que estava dizendo e prosseguiu: — Terceiro, e mais importante, não agüento mais ficar na Terra. — Disse isso com uma expressão de nojo. Depois, quando estavam juntos na cama, comentou: — Quando chegarmos lá, vai ser maravilhoso! Fisher não respondeu. Estava pensando em uma criança de olhos grandes e estranhos, e também na irmã. Com a chegada do sono, as duas imagens pareceram se fundir. VINTE E TRÊS VIAGEM AÉREA Viagens a grandes distâncias através de uma atmosfera planetária era uma coisa que poucos habitantes nas colônias haviam tido oportunidade de experimentar. Nas colônias, as distancias eram tão pequenas que exigiam no máximo o uso de elevador e, vez por outra, de carros elétricos. Por outro lado, as viagens entre colônias eram realizadas em foguetes. Muitos moradores das colônias — pelo menos, das colônias que ainda estavam no Sistema Solar — tinham estado no espaço tantas vezes que viajar no espaço era para eles tão natural quanto caminhar. Poucos deles, porém, tinham visitado a Terra, o único lugar onde existiam as viagens aéreas, e haviam tido a oportunidade de voar de avião. Pessoas capazes de encarar o vácuo como se fosse um amigo e irmão sentiam um terror indescritível quando ouviam o ar assobiar em torno de um veículo que se deslocava rapidamente, sem nada visível para sustentá-lo. Em Eritro, porém, as viagens aéreas eram às vezes indispensáveis. Como a Terra, Eritro era um astro de grande porte, e, como a Terra, dispunha de uma atmosfera densa (e respirável). Havia livros em Rotor sobre aeronaves, e mesmo alguns imigrantes da Terra com experiência no assunto. Assim, o Domo dispunha de duas pequenas aeronaves, lentas, primitivas, difíceis de pilotar, mas em boas condições de funcionamento. Na verdade, o fato de os técnicos de Rotor não serem especialistas em aeronáutica havia sido útil sob um aspecto; as aeronaves do Domo eram muito mais computadorizadas que as naves equivalentes da Terra. Siever Genarr gostava de pensar nelas como robôs sofisticados que por acaso haviam sido construídos em forma de aeronave. O clima de Eritro era muito mais ameno que o da Terra, já que a baixa radiação de Nêmesis era insuficiente para provocar grandes tempestades. Por isso, era pouco provável que uma nave-robô tivesse de enfrentar uma emergência. Em conseqüência, praticamente qualquer um podia pilotar as aeronaves do Domo. Era só dizer ao avião o que queria que ele fizesse. Quando a mensagem era ambígua, ou parecia perigosa para o cérebro robótico do veículo, ele pedia novos esclarecimentos. Genarr viu Marlene subir na cabina do avião com uma certa preocupação, embora nem de longe com o medo de Eugenia In signa, que ficou bem longe da cena. (“Não chegue perto”, recomendara a Insigna, “especialmente se você vai ficar com essa cara de enterro. Não quero que sua filha entre em pânico.”) Parecia a Insigna que havia motivo para Marlene entrar em pânico. A filha era jovem demais para se lembrar de um mundo onde as aeronaves eram comuns. Havia embarcado calmamente em um foguete para viajar para Eritro, mas como reagiria a um vôo através do ar? Entretanto Marlene subiu na cabina e tomou seu lugar sem nenhum sinal de nervosismo. Era possível que não estivesse compreendendo bem a situação? — Marlene, querida, sabe o que vamos fazer, não sabe? — Sei, tio Siever. O senhor vai me mostrar Eritro. — Eritro visto do ar, você sabe. Vamos voar na atmosfera. — Eu sei. O senhor já me disse. — Não está preocupada? — Não, tio Siever, mas o senhor está. — Apenas por sua causa, querida. — Não há nenhum motivo. — Olhou para ele, calmamente. — Posso compreender que minha mãe se sinta apreensiva, mas o senhor está ainda mais preocupado que ela. Pode não demonstrar isso em palavras, mas se pudesse ver a sua expressão, ficaria com vergonha. Acha que se algo de mau acontecer, terá sido culpa sua, e a idéia o deixa apavorado. Mas não vai acontecer nada. — Tem certeza, Marlene? — Absoluta. Não corro perigo nenhum em Eritro. — Você disse isso a respeito da Praga, mas agora estamos falando de outra coisa. — Não importa do que estamos falando. Nada pode me fazer mal em Eritro. Genarr sacudiu a cabeça, incrédulo, e imediatamente se arrependeu, pois ela era capaz de ler suas emoções com tanta facilidade como se estivessem aparecendo em letras maiúsculas na tela do computador. Mas qual era a diferença? Mesmo que tentasse reprimi-las, mesmo que agisse como se fosse uma estátua de bronze, Marlene ainda seria capaz de adivinhar o que estava pensando. — Primeiro vou verificar todo o equipamento. Depois, vamos decolar. Haverá um efeito de aceleração, você será lançada para trás, e logo estaremos nos movendo no ar, sem nada abaixo de nós. Tudo bem? — Não estou com medo nenhum — disse Marlene. A aeronave voava em linha reta sobre um terreno levemente ondulado. Genarr sabia que Eritro estava geologicamente vivo e sabia também que os estudos geológicos indicavam que havia sido montanhoso em alguns períodos de sua história. Ainda havia montanhas aqui e ali no hemisfério cismegano, o hemisfério do qual o planeta Megas, em torno do qual girava Eritro, era visível no céu. Ali, porém, no hemisfério transmegano, a monotonia das planícies dos dois continentes era quebrada apenas por colinas arredondadas. Pra Marlene, que nunca havia visto uma montanha em sua vida, até mesmo as colinas eram uma novidade. Havia regatos em Rotor, naturalmente, e da altura em que estavam observando Eritro, aqueles rios não pareciam diferentes. Genarr pensou: “Marlene ficará surpresa quando vir os rios de perto.” Marlene olhou para Nêmesis, que havia passado da posição a pino e estava mais para oeste. — Nêmesis parece parada no céu, tio Siever. — Mesmo assim, está se movendo — disse Genarr. — Ou melhor, Eritro está girando em torno de Nêmesis. Acontece que dá uma volta por dia, enquanto que Rotor dá uma volta a cada dois minutos. Assim, o movimento aparente de Nêmesis, aqui em Eritro, é setecentas vezes mais lento do que em Rotor. Pode parecer que está parada no céu, mas na realidade está se movendo muito devagar. — Depois de olhar rapidamente para Nêmesis, acrescentou: — Você nunca viu o Sol da Terra, o Sol do Sistema Solar; ou, se viu, não deve se lembrar, pois na época era um bebê. O Sol era muito menor, visto de Rotor, quando Rotor estava no Sistema Solar. — Menor? — repetiu Marlene, surpresa. — De acordo com o computador, Nêmesis é bem menor que o Sol. — E verdade. Acontece que Rotor está muito mais perto de Nêmesis do que estava do Sol, o que faz com que o tamanho aparente de Nêmesis seja maior. — Estamos a quatro milhões de quilômetros de Nêmesis, não estamos? — Mas estávamos a cento e cinqüenta milhões de quilômetros do Sol. Se estivéssemos à mesma distância de Nêmesis, receberíamos menos de um por cento da luz e calor que recebemos agora. Se estivéssemos tão perto do Sol quanto estamos de Nêmesis, teríamos sido vaporizados. O Sol é muito maior, mais volumoso e mais quente do que Nêmesis. Marlene não estava olhando para Genarr, mas aparentemente seu tom de voz era suficiente. — Da maneira como fala, tio Siever, tenho a impressão de preferia estar de volta ao Sistema Solar. — Nasci lá, e às vezes sinto saudade. — Mas o Sol é tão quente e brilhante… deve ser perigoso olhar para ele! — Não olhávamos para ele. Também não é aconselhável ficar olhando por muito tempo para Nêmesis. Desvie os olhos, querida — alertou ele. Entretanto, Genarr deu outra olhada rápida na direção de Nêmesis. Estava a oeste, vermelha e avantajada, com um diâmetro aparente de quatro graus, ou oito vezes o diâmetro aparente do Sol, quando visto da antiga localização de Rotor. Era um círculo de luz vermelha, não muito forte, mas Genarr sabia que, em raras ocasiões, havia erupções de gás e, por alguns minutos, um ponto branco e muito brilhante aparecia na superfície. Manchas estelares, em vermelho-escuro, eram mais freqüentes mas menos notáveis. Murmurou uma ordem para o avião, que mudou de rumo o suficiente para deixar Nêmesis fora do raio de visão dos ocupantes. Marlene dedicou a Nêmesis um último olhar e depois voltou sua atenção para a paisagem de Eritro, que desfilava lá embaixo. — A gente acaba se acostumando com a cor rosada que todas as coisas possuem em Eritro. Depois de algum tempo, não parecem tão rosadas, tio Siever. Genarr havia notado a mesma coisa. Seus olhos estavam começando a observar diferenças de tonalidade que faziam o mundo parecer menos monocromático. Os rios e pequenos lagos eram menos vermelhos que o terreno sólido, e o céu era quase negro; a atmosfera de Eritro espalhava muito pouco da luz vermelha de Nêmesis. A coisa mais desalentadora em Eritro, porém, era a falta de vida. Rotor, que não passava de um pequeno planeta artificial, tinha plantas verdes, cereais dourados, frutas multicoloridas, animais e todas as cores e sons da civilização. Ali, havia apenas silêncio e monotonia. Marlene franziu a testa. — Existe vida em Eritro, tio Siever. Genarr não sabia se era uma afirmação, um pergunta ou uma resposta aos seus pensamentos, manifestados através da linguagem corporal. Estava tentando tranqüilizá-lo ou precisando ser tranqüilizada? — Claro que existe, Marlene. Em abundância. Está em toda parte. Não só na água, mas também em terra. Encontramos procariotes em películas de água que envolvem partículas do solo. Depois de algum tempo, o oceano apareceu no horizonte à frente da aeronave, a princípio apenas como uma linha escura, depois como uma faixa cada vez mais larga, à medida que o aparelho se aproximava. Genarr olhou de soslaio para Marlene, observando sua reação. A moça havia lido a respeito dos oceanos da Terra, é claro, e devia ter visto imagens na holovisão, mas nada poderia prepará-la para a experiência ao vivo. Genarr, que estivera na Terra uma vez (uma vez!) como turista, tinha visto a orla de um oceano. Nunca porém, sobrevoara um, até perder a terra de vista, de modo que não estava seguro das próprias reações. O oceano cresceu abaixo deles, e a terra firme foi encolhendo até desaparecer. Genarr olhou para baixo e sentiu um frio no estômago. Lembrou-se de uma frase de um romance antigo: “o mar cor de vinho”. O oceano lembrava realmente uma vastidão de vinho tinto, como uma espuma rosada aqui e ali. Não havia pontos de referência naquele vasto corpo de água, nem lugar para pousar. Entretanto, ele sabia que quando quisesse voltar, teria apenas que pedir ao avião para levá-los de volta. O computador da aeronave mantinha um registro permanente da posição e velocidade da nave e sabia exatamente em que direção se encontrava a terra firme… e até mesmo o Domo. Passaram por baixo de uma nuvem espessa, e o oceano de repente ficou negro. Uma palavra de Genarr e o avião subiu acima das nuvens. Nêmesis tornou a brilhar, mas o oceano ficou invisível. Em seu lugar, tudo que viam era um mar de nuvens cor-de-rosa, com protuberâncias ocasionais, que faziam com que tufos de neblina desfilassem diante das janelas do aparelho. Depois, as nuvens pareceram se abrir, permitindo que enxergassem de novo o oceano cor de vinho. Marlene observava a cena com a boca entreaberta e a respiração acelerada. — Isso tudo é água, não é, tio Siever? — disse, em um sussurro. — Milhares de quilômetros em todas as direções, Marlene… e dez quilômetros de profundidade, em certos lugares. — Se alguém caísse aí, certamente se afogaria. — Não precisa se preocupar. Nossa aeronave não vai cair no oceano — Sei que não vai — disse Marlene, com segurança. Havia outra coisa, pensou Genarr, que Marlene precisava ver. Marlene interrompeu-lhe os pensamentos. — Está ficando nervoso novamente, tio Siever. Genarr se surpreendeu com a forma como se havia acostumado a aceitar as intervenções de Marlene. — Você nunca viu Megas, e eu estava pensando se devia mostrá-lo para você. Como sabe, um dos lados de Eritro está sempre voltado para Megas e o Domo foi construído do outro lado de modo que não podemos ver Megas de lá. Se continuarmos a voar nesta direção, porém, entraremos no hemisfério cismegano e Megas aparecerá acima do horizonte. — Gostaria de ver isso, tio Siever. — Vou fazer-lhe a vontade, mas esteja preparada. Ele é grande. Realmente grande. Quase duas vezes maior que Nêmesis. Parece que está a ponto de cair na cabeça da gente. Algumas pessoas entram em pânico. Lembre-se de que ele não vai cair. Lembre-se disso. A aeronave subiu um pouco e aumentou a velocidade. O oceano desfilava lá embaixo, sempre igual, a monotonia quebrada apenas pelas nuvens. — Se você olhar à frente, um pouco para a direita, verá Megas começando a aparecer no horizonte. Vamos voar na direção dele. A princípio, parecia uma pequena faixa luminosa no horizonte, mas cresceu rapidamente e começou a assumir uma forma arredondada. Então, um arco vermelho vivo surgiu acima do horizonte. Era mais escuro que Nêmesis, que ainda podia ser vista à direita e atrás do avião. Pouco depois, ficou evidente que o que estava sendo revelado não era um círculo completo, mas sim pouco mais que um semicírculo. — É isso que chamam de “fases”, não é? — observou Marlene, com interesse. — Isso mesmo. Vemos apenas a parte iluminada por Nêmesis. A medida que Eritro gira em torno de Megas, Nêmesis, parece aproximar-se de Megas, e passamos a ver uma parte cada vez menor do planeta. Quando Megas está quase alinhado com Nêmesis, vemos apenas uma estreita faixa de luz. Às vezes, Nêmesis se esconde atrás de Megas. Nesse caso, todas as estrelas do céu se tornam visíveis de repente, mesmo as mais apagadas, ao contrário do que acontece quando Nêmesis está no ceu, e só podemos ver as mais brilhantes. Durante o eclipse, um círculo escuro no céu, sem nenhuma estrela, revela a posição de Megas. Quando Nêmesis reaparece do outro lado, a faixa estreita e de luz também torna a aparecer. — Que maravilha! — exclamou Marlene. — É como um teatro no céu. E olhe para Megas, com todas aquelas faixas coloridas! As faixas, umas castanhas, outras alaranjadas, atravessavam a parte iluminada do planeta. — São perturbações atmosféricas — explicou Genarr —, com ventos violentíssimos. Se observar com atenção, verá grandes manchas se formarem e se desfazerem. — Parece mesmo um programa de holovisão — disse Marlene, com entusiasmo. — Por que as pessoas não passam o tempo todo olhando para Megas? — Alguns astrônomos fazem isso. Eles observam Megas através de instrumentos automáticos instalados neste hemisfério. Eu mesmo já tive oportunidade de vê-lo no Observatório. Tínhamos um planeta parecido com este no Sistema Solar. O nome dele era Júpiter, e era maior do que Megas. Àquela altura, o planeta já se encontrava totalmente acima do horizonte e lembrava um balão parcialmente inflado. — É lindo. Se o Domo ficasse deste lado de Eritro, todo mundo poderia admirá-lo. — Não é bem assim, Marlene. A maioria não gosta de Megas. Já lhe disse que algumas pessoas têm a impressão de que Megas está caindo e ficam assustadas. — Só uns poucos tolos poderiam ter essa idéia ridícula. — Só uns poucos inicialmente, mas as idéias ridículas podem ser contagiosas. Os temores se espalham, e algumas pessoas que não sentiriam medo sozinhas, o sentem porque o vizinho está com medo. Já não observou esse tipo de coisa? — Acho que sim — concordou Marlene, com um toque de irritação na voz. — Se um rapaz acha que uma garota é bonita, todos acham. Começam a competir… — não concluiu a frase, como se estivesse envergonhada. — O medo do contágio é uma das razões pelas quais construímos o Domo no outro hemisfério. Outra é que com Megas permanentemente no céu, as observações astronômicas seriam bem mais difíceis neste hemisfério. Mas acho que está na hora de voltarmos Conhece sua mãe. Já deve estar histérica. — Fale com ela pelo rádio. Diga que está tudo bem. — Não é necessário. O avião está em contato permanente com a nossa base. Ela sabe que está tudo bem… fisicamente. Mas não é isso que a preocupa — disse, apontando para a cabeça com um gesto sugestivo. Marlene afundou no assento com uma expressão de desânimo estampada no rosto. — Que amolação! Sei que todos vão dizer: “É porque ela gosta de você”, mas não deixa de ser muito enjoado. Por que mamãe não acredita quando digo que está tudo bem? — Porque ela gosta de você — disse Genarr, depois de ordenar ao avião que voltasse para o Domo —, da mesma forma que você gosta de Eritro. O rosto de Marlene imediatamente se iluminou. — Gosto mesmo. E Genarr imaginou como Eugenia Insigna reagiria a isso. Ela reagiu da pior forma possível. — Gosta de Eritro? Como pode gostar de um mundo morto? Será que você a submeteu a uma lavagem cerebral? Qual o interesse que você tem em que ela goste de Eritro? — Seja razoável, Eugenia. Acha mesmo possível convencer Marlene de alguma coisa? Já conseguiu fazer isso? — Então o que aconteceu? — Na verdade, tentei expô-la a situações que a deixassem amedrontada, ou pelo menos pouco à vontade. Para falar a verdade, procurei “convencê-la” a não gostar de Eritro. Sei por experiência própria que os rotorianos, acostumados ao seu mundo pequeno e aconchegante, detestam a vastidão vazia de Eritro; odeiam o vermelho da paisagem; não gostam do oceano, das nuvens, de Nêmesis; e, mais que tudo, implicam com Megas. Todas essas coisas os deixam deprimidos ou assustados. Pois mostrei tudo isso a Marlene. Sobrevoei com ela o oceano, cheguei a mostrar-lhe Megas, totalmente acima do horizonte. — Que aconteceu? — Ela adorou. Disse que já estava acostumada com a luz vermelha. O oceano não a assustou nem um pouco, e achou Megas muito interessante. — Não posso acreditar. — Acredite. É a mais pura verdade. Insigna pensou um pouco e depois disse, com relutância: — Talvez seja sinal de que já foi afetada pela… pela… — Pela Praga? Submeti-a a novo exame assim que chegamos. Ainda não tenho todos os resultados, mas uma inspeção superficial não revelou nenhuma mudança. Mesmo nos casos mais brandos da Praga, ocorre uma alteração visível nos padrões cerebrais. Marlene simplesmente não está com a Praga. Entretanto, uma coisa interessante acaba de me ocorrer. Sabemos que Marlene tem um grande poder de percepção, que é capaz de notar todo o tipo de pequenas coisas. As emoções fluem dos outros para ela. Mas você já observou algum indício de que ocorra o contrário? De que as emoções fluam de Marlene para os outros? — Não sei aonde você está querendo chegar. — Ela é capaz de perceber quando estou inseguro e um pouco nervoso, mesmo que eu tente disfarçar. Também sabe quando estou calmo e tranqüilo. Será que também é capaz de me deixar nervoso… ou de me tranqüilizar? Em outras palavras: além de conhecer as minhas emoções, será Marlene também capaz de modificá-las? Insigna olhou para ele. — Acho que o que está dizendo é loucura! — exclamou. — Talvez. Mas já notou este tipo de influência? Pense bem. — Não preciso pensar. Nunca observei nada desse tipo. — Não — murmurou Genarr —, suponho que não. Marlene certamente adoraria que você se preocupasse menos com ela, mas certamente não conseguiu que isso acontecesse. Entretanto… não é verdade que os poderes de percepção de sua filha aumentaram depois que ela chegou a Eritro? — É verdade. — Entretanto, é mais do que isso. Agora ela adquiriu poderes de intuição. Ela sabe que é imune à Praga. Tem certeza de que nada em Eritro poderá causar-lhe mal. Olhou para o oceano e me garantiu que não havia a menor possibilidade de a aeronave cair e nós nos afogarmos. Marlene tinha esse tipo de atitude em Rotor? Ela não se sentia insegura em certas ocasiões, como qualquer adolescente? — Claro que sim. — Mas aqui ela é diferente. Tem certeza de tudo. Por quê? — Não sei. — Será algum efeito de Eritro? Não, não estou falando da Praga. Haverá algum outro efeito? Algo totalmente diferente? Vou lhe dizer por que pergunto. Porque eu mesmo estou sentindo alguma coisa. — O quê? — Um certo otimismo a respeito de Eritro. Não me importo mais com o fato de não existirem formas de vida superiores. Não que antigamente achasse insuportável a vida aqui, mas jamais gostei do planeta. Nesta viagem com Marlene, porém, estive mais perto de apreciá-lo do que em meus dez anos de residência. Era possível, pensei, que o entusiasmo de Marlene fosse contagioso, ou que de alguma forma ela estivesse transferindo para mim suas emoções. Ou que alguma coisa em Eritro estivesse afetando nós dois ao mesmo tempo. — Sabe, Siever, acho que você também devia ser examinado com a sonda cerebral — disse Insigna, em tom sarcástico Genarr levantou as sobrancelhas. — Acha que não fui? Tenho feito exames periódicos desde que cheguei. Não houve nenhuma mudança, a não ser as associadas ao processo de envelhecimento. — Mas você verificou sua configuração cerebral depois de voltar da viagem de avião? — É claro. Foi a primeira coisa que fiz. A análise completa ainda não está pronta, mas a análise preliminar não revela nenhuma mudança. — Nesse caso, que vai fazer em seguida? — A coisa mais lógica. Eu e Marlene vamos sair do Domo e caminhar na superfície de Eritro. — Não! — Tomaremos todas as precauções. Para mim, não vai ser a primeira vez. — Para você, pode ser — disse Insigna, teimosamente. — Para ela, não. Genarr suspirou. Girou na cadeira e se voltou para a falsa janela na parede do escritório, como se estivesse tentando atravessá-la com o olhar e observar a paisagem vermelha lá fora. Depois olhou de volta para Insigna. — Lá fora está um mundo novo, que não pertence a ninguém exceto nós mesmos. Podemos tomá-lo e desenvolvê-lo, aproveitando todas as lições que aprendemos na forma errada como administramos nosso antigo mundo. Podemos construir um mundo bom desta vez, limpo, decente. Podemos nos acostumar com a luz vermelha de Nêmesis. Podemos fertilizá-lo com nossas plantas e animais. — E a Praga? — Podemos eliminar a Praga e fazer de Eritro um paraíso. — Se eliminarmos o calor e a gravidade, e alterarmos a composição química também poderemos fazer de Megas um paraíso. — É verdade, Eugenia, mas tem de admitir que a Praga não pode ser comparada com o calor, a gravidade e a composição química. — A Praga também pode tornar um mundo inabitável. — Eugenia, acho que já lhe disse que Marlene é a pessoa mais importante que temos aqui no, Domo. — Para mim, certamente que e. — Ela é importante para você simplesmente porque trata-se de sua filha. Para o resto de nós, é importante pelo que pode fazer. — O que ela pode fazer? Interpretar nossa linguagem corporal? — Marlene está convencida de que é imune à Praga. Se for realmente, isso pode nos mostrar… — Se for. É uma fantasia infantil, e você sabe disso. Não se deixe iludir com falsas esperanças. — Há um mundo lá fora, e quero colonizá-lo. — Você não é muito diferente de Pitt. Para conseguir o seu mundo, está disposto a arriscar minha filha? — Na história da humanidade, muito mais foi arriscado por muito menos. — Pior para a história da humanidade. De qualquer forma, cabe a mim decidir. Ela é minha filha. — Eu amo você, Eugenia, mas perdi você uma vez — disse Genarr, em uma voz que parecia conter uma tristeza infinita. — Tive este sonho de talvez tentar reparar essa perda. Mas agora acho que vou perdê-la de novo. Porque vou lhe dizer neste momento que não cabe a você decidir. Que não cabe.nem a mim decidir. Quem deve decidir é Marlene. O que ela resolver, será feito. E porque acredito que talvez ela tenha o poder de conquistar um novo mundo para a humanidade, vou ajudá-la a fazer o que quer, apesar de você. Aceite isso, por favor, Eugenia. VINTE E QUATRO DETECTOR Crile Fisher examinou a Superluminal com ar impassível. Era a primeira vez que via a nave, e um rápido olhar para Tessa Wendel mostrou-lhe que ela estava sorrindo; isso só podia ser interpretado como o orgulho do dono. Estava no interior de uma grande caverna, por trás de uma tríplice barreira de segurança. Havia seres humanos presentes, mas a maior parte da mão-de-obra era constituída por robôs computadorizados (não-humanóides). Fisher já havia visto muitas espaçonaves, de todos os tipos e modelos, mas nada parecido com a Superluminal… nenhuma nave com um aspecto tão repulsivo. Se a tivesse visto sem saber o que era, talvez nem reconhecesse que se tratava de uma espaçonave. Que poderia dizer, então? Não queria desagradar Wendel, que estava pacientemente à espera da sua opinião. — Ela tem uma certa graça… como se fosse uma vespa. — disse afinal, contrafeito. A frase “uma certa graça” fez Wendel sorrir, e Fisher percebeu que havia sido feliz na escolha das palavras. Em seguida, porém ela perguntou: — Que quer dizer com “como se fosse uma vespa”, Crile? — Estou me referindo a um inseto — explicou Crile. — Sei que vocês não têm muitos insetos em Adelia. — Temos a nossa cota. Podem não ser tão numerosos como na Terra, mas… — Provavelmente vocês não têm vespas. Insetos que picam, com uma forma parecida com aquela — apontou para a Superluminal. — Elas também têm uma saliência na frente, outra saliência atrás, e uma parte fina no meio. — Verdade? — Wendel olhou para a Superluminal com um novo interesse. — Pode me arranjar uma holografia de uma vespa? Talvez eu compreenda melhor a estrutura da nave examinando o inseto… ou vice-versa. — Como escolheram a forma, se ela não foi inspirada na vespa, Wendel? — Tínhamos de escolher uma geometria que maximizasse a probabilidade de a nave inteira se mover como uma unidade. O hipercampo tende a se expandir cilindricamente até o infinito, e o segredo é permitir que ele se expanda, pelo menos até certo ponto. Por outro lado, não podemos liberá-lo inteiramente. É preciso contê-lo nas extremidades do cilindro. Para isso é que servem as protuberâncias. O campo fica no interior do casco e é mantido e contido por um campo eletromagnético, de modo que… você não está interessado nos detalhes, está? - — Acho que não — disse Fisher, com um discreto sorriso. — Já Ouvi o suficiente. Mas já que finalmente me permitiram ver este… — Não fique ofendido — disse Wendel, colocando o braço em torno da sua cintura. — Conhece as normas de segurança. Houve ocasiões em que até eu era considerada uma intrusa. Muita gente achava que eu não passava de uma estrangeira metida, e lamentavam o fato de ter sido eu a inventora do gerador de hipercampo, o que os impedia de me afastar do projeto. Agora, porem, as coisas estão mais tranqüilas, a ponto de me permitirem trazê-lo aqui para ver a nave. Afinal de contas, você vai viajar na Superluminal e eu queria que você a admirasse. — Depois de um momento de hesitação, acrescentou: — Também queria que você me admirasse. — Sabe que eu a admiro, Tessa, sem nenhuma necessidade de exibições como esta. — Colocou o braço no ombro de Wendel. — Estou continuando a envelhecer, Crile. O processo simplesmente não pára. Estou também tão satisfeita com você que chego a ficar preocupada. Estamos juntos há mais de sete anos quase oito, e nesse tempo todo não senti vontade de conhecer outros homens. — Isso é alguma tragédia? Talvez seja apenas o fato de que estava muito ocupada com o projeto. Agora que a nave está pronta, provavelmente você vai se sentir livre para ir de novo à luta. — Não. Não tenho mais motivação. Simplesmente não tenho. E você? Sei que às vezes me esqueço de você. — Não tem importância. Quando você me troca pelo seu trabalho, isso me agrada. Quero ver esta nave funcionando tanto quanto você, querida, e um pesadelo que tenho é que, quando finalmente partir, você e eu estaremos velhos demais para viajar. — Desta vez deu um sorriso triste. — Quando se preocupa com a idade, Tessa, você se esquece de que também não sou nenhum rapaz. Em menos de dois anos estarei com cinqüenta anos. Mas tenho uma pergunta que estava criando coragem para fazer, com medo de ficar desapontado. — Pergunte. — Você conseguiu permissão para que eu visse a nave, para que eu fosse admitido neste santuário. Acho que Koropatski não teria concordado se o projeto não estivesse praticamente terminado. Ele é tão obcecado com a segurança quanto Tanayama. — Sim, no que diz respeito ao hipercampo, a nave está pronta. — Já voou alguma vez? — Ainda não. Restam alguns detalhes, mas nada que envolva o hipercampo propriamente dito. — Terão de fazer vôos de teste, suponho. — Com uma tripulação a bordo, naturalmente. É a maneira de testar a nave para valer. — Quem vai participar da primeira viagem — Voluntários, entre o pessoal que participou do projeto. — E você? — Sou a única que não tem opção. Eu preciso ir. Não confio em mais ninguém para tomar decisões em caso de emergência. — Posso ir também? — Não, Crile, você, não. O rosto de Fisher deixou transparecer a irritação que estava sentindo. — Mas combinamos que… — O que combinamos não inclui os vôos de teste. — Quantos vôos de teste vocês pretendem fazer, afinal? — É difícil dizer. Depende dos problemas que aparecerem. Se tudo correr bem, talvez dois ou três vôos sejam suficientes. Uma questão de alguns meses. — Quando será o primeiro vôo de teste? — Isso eu não sei, Crile. Ainda estamos trabalhando na nave. — Você disse que estava praticamente pronta. — A parte de hipercampo, sim. Mas estamos ainda instalando os detectores neurônicos. — Que são detectores neurônicos? Você nunca se referiu a eles antes. Wendel não respondeu. Olhou em torno e depois disse: — Estamos atraindo a atenção, Crile, e desconfio que algumas pessoas aqui não aprovam a sua presença. Vamos para casa. Fisher ficou onde estava. — Então se recusa a discutir o assunto comigo? Mesmo que seja vital para mim? — Vamos discutir o assunto… mas em casa. Crile Fisher estava cada vez mais impaciente. Recusou-se a se sentar e ficou olhando para Tessa Wendel, que deu de ombros e se instalou no sofá branco modulado. — Por que está zangado, Crile? Os lábios de Fisher estavam tremendo. Ele os comprimiu um contra o outro e levou algum tempo para responder, como se estivesse lutando para acalmar-se através de um rígido controle muscular. — Se recrutarem a primeira tripulação e meu nome não es- tiver incluído, isto se tornará um precedente. Acabarei não participando do vôo para valer. Quero estar a bordo toda vez que essa nave decolar, até o dia em que chegarmos à Estrela Vizinha… e a Rotor. Compreendeu? — Como chegou a essa conclusão? Você não ficará de fora, quando a hora chegar. Acontece que a nave ainda não está pronta! — Você disse que a nave estava pronta. Que são esses tais detectores neurônicos que apareceram à última hora? É um artifício para contemporizar, para evitar que eu reclame até perceber que vocês foram embora e me deixaram aqui? — Crile, você deve estar louco. O detector neurônico foi idéia minha. — Idéia sua? Mas… Wendel silenciou-o com um gesto. — É uma coisa em que andei trabalhando recentemente. Não sou especialista no assunto, mas contei com o apoio de vários neurofísicos. Qual a minha motivação? Exatamente o fato de que quero você a bordo quando decolarmos em direção à Estrela Vizinha. Não compreende? Fisher sacudiu a cabeça. — Pense, Crile. Você entenderia, se não estivesse cego de ódio por algum motivo que não posso explicar. Um “detector neurônico” é um aparelho capaz de detectar à distância a atividade de um sistema nervoso complexo. Em outras palavras, um instrumento capaz de detectar a presença de inteligência. Fisher olhou para ela. — Está se referindo a alguma coisa que os médicos usam nos hospitais. — Exatamente. É um instrumento de rotina, usado pelos psiquiatras e psicólogos para diagnosticar doenças mentais… mas a uma distância de apenas alguns metros. Eu precisava de um instrumento semelhante, mas que funcionasse a distâncias astronômicas. Não se trata de um equipamento novo, mas de um equipamento antigo com o alcance grandemente aumentado. Crile, se Marlene está viva, deve estar vivendo na colônia, em Rotor. E Rotor estará lá, girando em torno da estrela. Eu lhe disse que não será fácil localizá-lo. Se não o encontrarmos logo, como poderemos estar certos de que não está lá… e não que simplesmente deixamos de vê-lo, como poderíamos deixar de ver uma ilha no oceano ou um asteróide no espaço? Devemos continuar procurando durante meses, ou anos, para ter certeza de que Rotor realmente não está lá? — E o detector neurônico… — Encontrará Rotor para nós. — Mas não será tão difícil para o detector neurônico quanto para.. — Não, não será. O Universo está cheio de ondas de luz, de rádio e outras formas de radiação, de modo que teríamos de distinguir uma fonte de outros milhares ou mesmo milhões de fontes. Isso pode ser feito, mas é difícil e leva muito tempo. Entretanto, as radiações eletromagnéticas emitidas por um sistema nervoso possuem características bem específicas. Provavelmente, só existe uma fonte nas proximidades da Estrela Vizinha com essas características… se houver mais de uma, é porque Rotor fundou outras colônias. Aí está. Estou tão interessada em encontrar sua filha quanto você. E porque eu faria isso se não tivesse de levá-lo conosco? Fisher estava atônito. — Você forçou todo o projeto a aceitar isso? — Sou a chefe do projeto, Crile. E não é só. O que vou lhe dizer agora é estritamente confidencial; é por isso que não podia lhe contar lá fora. — Oh? E o que é? — Crile, passo mais tempo pensando em você do que pensa. Não faz idéia de como desejo poupá-lo de uma decepção. E se não encontrarmos nada na Estrela Vizinha? E Se chegarmos à conclusão de que não existem formas de vida inteligentes nas proximidades? Devemos voltar para casa com a notícia de que não existem sinais de Rotor? Calma, Crile, deixe-me terminar. Não estou dizendo que o fato de não encontrarmos sinais de vida inteligente nas proximidades da Estrela Vizinha signifique necessariamente que Rotor e sua população não tenham sobrevivido. — O que pode significar, então? — Pode ser que não tenham encontrado um ambiente adequado perto da Estrela Vizinha e tenham resolvido viajar para outro sistema. Poderiam parar apenas o tempo suficiente para minerar alguns asteróides e obter os materiais necessários para alimentar e reparar os motores de microfusão; depois, iriam para outro Sistema. — Se fizeram isso, como poderemos saber para onde foram? — Eles partiram há quase quatorze anos. Usando a propulsão hiperespacial, podem viajar apenas à velocidade da luz. Se no momento estão em órbita em torno de outra estrela, essa estrela pode estar no máximo a uns doze anos-luz da Estrela Vizinha. Não existem muitas estrelas nessa região do espaço. Viajando a velocidades superluminais, poderemos visitar todas essas estrelas. Usando um detector neurônico, poderemos verificar rapidamente se Rotor se encontra nas proximidades de uma delas. — Eles podem ainda estar viajando pelo espaço. Nesse caso, como iremos localizá-los? — Nesse caso, será impossível localizá-los, mas pelo menos aumentamos em muito a chance de encontrá-los se investigar uma dúzia de estrelas em seis meses com o nosso detector neurônico, em vez de passarmos o mesmo tempo investigando uma única estrela em uma busca infrutífera. E se fracassarmos — temos que considerar a hipótese de um fracasso —, pelo menos voltaremos com dados a respeito de uma dúzia de estrelas diferentes, uma anã branca, uma estrela azul, uma estrela binária e assim por diante. Provavelmente não vamos fazer mais que uma viagem como essa em toda a nossa vida, de modo que é melhor aproveitá-la ao máximo, não é, Crile? — Acho que tem razão, Tessa. Vasculhar uma dúzia de estrelas e não encontrar nada pode não ser agradável, mas pior ainda seria procurar nas vizinhanças de uma única estrela e voltar para casa pensando que Rotor poderia estar girando em torno de outra estrela próxima. — Exatamente. — Não me esquecerei disso — disse Crile, em tom compungido. — Outra coisa — disse Wendel. — O detector neurônico também é capaz de detectar inteligências alienígenas. Já pensou? Fisher olhou para ela, surpreso. — Isso não é provável, é? — Nem um pouco, mas, se acontecer, vai ser um marco na história da humanidade. Nada no Universo pode ser tão interessante, ou perigoso, quanto outra forma de vida inteligente. — Qual a probabilidade de o aparelho detectar uma inteligência alienígena? Afinal, foi calibrado para a inteligência humana. Para mim, talvez seja difícil até reconhecer que um ser alienígena está vivo, quanto mais que é inteligente. — Em minha opinião, é bem mais fácil reconhecer a inteligência do que a vida. Seja qual for a sua forma, a inteligência tem necessariamente que envolver uma estrutura muito complexa… pelo menos tão complexa quanto o cérebro humano: Além disso, tem de envolver interações eletromagnéticas. A atraçao gravitacional é muito fraca; as interações nucleares forte e fraca têm um alcance muito limitado. Quanto a este novo hipercampo com o qual estamos trabalhando no projeto da nave superluminal, não existe na natureza; tem que ser criado artificialmente. “ O detector neurônico é capaz de detectar o campo eletromagnético complexo associado à inteligência, qualquer que seja a forma assumida por essa inteligência. E estaremos prontos para fugir ou tentar entrar em contato com eles. Quanto a formas de vida alienígenas não-inteligentes, não é provável que sejam perigosas para uma civilização avançada como a nossa… embora qualquer forma de vida alienígena, até mesmo um vírus, tenha um certo interesse. — E por que devemos manter tudo isto em segredo? — Porque estou desconfiada, não, tenho certeza que o Congresso Global vai nos querer de volta o mais depressa possível para que eles comecem a construir novos e melhores modelos de naves superluminais, baseados no nosso protótipo. Eu, por outro lado, se tudo correr bem, certamente gostaria de sair para conhecer o Universo, e eles que esperem. Não digo que vá fazer isso, mas gostaria de manter a opção em aberto. Se eles soubessem o que estou planejando, acho que tentariam substituir-me no comando da nave. Fisher deu um sorriso inexpressivo. — O que há, Crile? Suponhamos que a gente não encontre nenhum sinal de Rotor e seus habitantes. Vai preferir voltar para a Terra de mãos abanando? Com o Universo à sua disposição? — Não. Estou só pensando no tempo que vai levar para instalar os detectores e outros aparelhinhos de que você ainda vai se lembrar. Daqui a pouco mais de dois anos, vou fazer cinqüenta anos. Os funcionários do Escritório são remanejados compulsoriamente quando fazem cinqüenta anos. Assumem funções burocráticas na Terra e deixam de viajar a serviço. — E daí? — Daqui a pouco mais de dois anos, não vão mais me deixar participar do vôo para a Estrela Vizinha. Vão dizer que estou muito velho. — Bobagem! Estarei a bordo, e tenho mais de cinqüenta anos. — Você é um caso especial. A nave é sua. — Você também vai ser um caso especial, porque pretendo insistir para que vá. Além disso, não será tão fácil encontrar uma tripulação para a Superluminal. Decidimos usar apenas voluntários. Não podemos nos arriscar a colocar a nave nas mãos de recrutas assustados. — Por que não haveria voluntários em número suficiente? — Porque eles são terráqueos, meu amigo, e para todos os terráqueos o espaço é aterrorizante. O hiperespaço, então, nem se fala. Se formos nós dois, vamos precisar apenas de três voluntários, mas mesmo assim não será fácil. Já sondei muita gente, e até agora só tenho dois candidatos: Chao-Li e Henry Jarlow. Ainda estou procurando o terceiro. Mesmo que apareçam outros voluntários, o que não é provável, não vou deixar que você seja substituído. Posso argumentar que precisamos de você para lidar com os rotorianos. Se isso não for suficiente, prometo a você que a nave partirá antes de completar cinqüenta anos. Fisher sorriu, aliviado, e disse: — Tessa, eu amo você. Você sabe que eu a amo. — Não sei, não, especialmente quando fala com esse tom de voz, como se a confissão tivesse apanhado você mesmo de surpresa. É muito estranho, Crile, mas nos quase oito anos em que nos conhecemos, e vivemos juntos, e fazemos amor, é a primeira vez que você diz isso. — É mesmo? — Pode acreditar. Sabe o que mais é estranho? Eu nunca disse que amava você, mas eu amo. Não começou assim. Que acha que aconteceu? — Talvez a gente tenha se apaixonado um pelo outro tão aos poucos que não deu para perceber. Isso deve acontecer às vezes, não acha? Sorriram um para o outro, timidamente, como se não soubessem o que fazer a respeito. VINTE E CINCO SUPERFÍCIE Eugenia Insigna estava apreensiva. Mais que isso. — Estou lhe dizendo, Siever, não tenho uma boa noite de sono desde que você levou Marlene para passear naquela aeronave. — A voz degenerou naquilo que, em uma mulher de personalidade menos firme, poderia ser descrito como um gemido. — Conhecer Eritro do alto não foi suficiente? Por que não a impede? — Por que eu não a impeço? — repetiu Siever Genarr devagar, como se estivesse saboreando a pergunta. — Por que eu não a impeço? Eugenia, não estamos mais em condições de dizer a Marlene o que fazer! — Isso é ridículo, Siever. É quase covardia de sua parte. Ouvindo você falar, até parece que Marlene é todo-poderosa. — E não é? Você é mãe dela. Proíba-a de sair do Domo. Insigna fez uma careta. — Ela já tem quinze anos. Não quero ser uma mãe tirânica. — Pelo contrário, você ficaria muito satisfeita se ela obedecesse às suas ordens. Mas se tentar proibi-la, ela vai olhar você com aqueles olhos enormes e dizer alguma coisa como: Mamãe, você se sente culpada por me haver privado do meu pai, e acha que o Universo está conspirando para me afastar de você como punição.” Insigna franziu a testa. — Siever, isso é a coisa mais absurda que já ouvi! Jamais me senti culpada pelo que aconteceu! — Sei que não. Estava só dando um exemplo. Marlene, porém, vai saber, pela posição do polegar da sua mão esquerda, pelo movimento do seu ombro, ou qualquer coisa assim, exatamente o que a está incomodando, vai contar para você, e você vai ficar sem graça, porque é verdade. E vai acabar fazendo a vontade dela só para não ver expostas outras facetas da sua personalidade. — Não me diga que foi isso que aconteceu com você.: — Não muito, porque sua filha gosta de mim e porque tenho sido muito diplomático com ela. Mas se ficar zangada comigo, tremo só de pensar no que pode fazer. Olhe, consegui adiar a saída. Dê-me algum crédito por isso. Ela queria sair do Domo imediatamente após a viagem de avião. Convenci-a a esperar até o final do mês. — Como conseguiu isso? — Com muita conversa. Estamos em dezembro. Disse para ela que daqui a três semanas começará o Ano-Novo, de acordo com o calendário da Terra. Que melhor maneira de comemorar o início de 2237, perguntei, do que com o início da exploração e colonização de Eritro? Você sabe que ela considera sua exposição ao planeta como o começo de uma nova era? Isso torna as coisas piores. — Por quê? — Porque Marlene não considera a expedição como um capricho pessoal, mas como algo de vital importância para Rotor e talvez para toda a humanidade. Não há nada como satisfazer a um prazer pessoal e dizer que se está contribuindo para o bem geral. Isso desculpa tudo. Já fiz isso algumas vezes. Você também. Todo mundo já procedeu assim. Pitt é mestre nisso. Ele, provavelmente está convencido de que respira apenas para contribuir com dióxido de carbono para a vegetação de Rotor. — Então você a fez esperar justamente explorando sua megalomania. — Isso mesmo. Temos portanto mais uma semana para demovê-la. Devo dizer, porém, que não a enganei nem por um momento. Ela concordou em esperar, mas disse: “O senhor está pensando que, se me fizer adiar a saída, ganhará pontos com minha mãe, não é, tio Siever? Nada na sua expressão indica que senhor atribua uma importância especial à passagem do ano. — Isso foi muito indelicado de dizer, Siever. — Marlene estava sendo simplesmente sincera, Eugenia. E estava dizendo a verdade. Insigna desviou os olhos. — Ganhar pontos comigo? Que posso dizer… — Por que deveria dizer alguma coisa? — interrompeu Genarr. — Sabe que gostei de você quando éramos jovens, e que a idade não mudou meus sentimentos. Mas isso é problema meu. Você sempre foi honesta comigo. Nunca me deu esperanças. Se sou suficientemente tolo para não aceitar um não como resposta, que culpa você tem? — Não gosto de ver você infeliz, seja por que motivo for. — Isso é um grande consolo para mim — disse Genarr, ironicamente. — É melhor do que nada. Insigna voltou deliberadamente a falar de Marlene. — Siever, se Marlene percebeu qual era o seu motivo, por que concordou em adiar a saída? — Você não vai gostar disso, mas é melhor eu contar a verdade. Marlene disse o seguinte: “Vou esperar até o Ano-Novo, tio Siever, porque talvez isso agrade a mamãe, e quero ajudar o senhor”. — Ela disse isso? — Por favor, não fique zangada com Marlene. Provavelmente ficou fascinada pelos meus encantos a minha classe e acha que está lhe fazendo um favor. — Ela é uma casamenteira — disse Insigna, meio sem graça. — Se você demonstrasse algum interesse por mim, poderíamos manipular Marlene para fazer várias coisas, contanto que ela achasse que isso contribuiria para aumentar seu interesse. O problema é que seu interesse teria de ser genuíno, do contrário não convenceria sua filha. E se você tivesse um interesse genuíno por mim, ela não sentiria necessidade de fazer sacrifícios para me ajudar. Está me entendendo? — O que estou entendendo é que, se não fosse por causa da percepção de Marlene, você usaria táticas absolutamente maquiavélicas para se aproximar de mim. — Está absolutamente certa, Eugenia. — Por que não tomamos uma atitude drástica? Como trancá-la no seu quarto e depois mandá-la para Rotor no primeiro foguete? — De mãos e pés amarrados, suponho. Além de achar que isso não daria certo, deixei-me contagiar pelo sonho de Marlene. Estou começando a pensar na colonização de Eritro… um mundo vazio, esperando para ser ocupado. — E uma porção de bactérias alienígenas, esperando para contaminarem nossa comida e nossa água — disse Insigna, com uma careta. — E daí? Na verdade, todo dia nós respiramos, bebemos e comemos essas bactérias. É impossível isolar totalmente o Domo, você sabe. Aliás, em Rotor também temos muitos tipos de bactérias. — Sim, mas são bactérias originárias da Terra. Aqui, estamos falando de formas de vida alienígenas. — Melhor ainda. Não estão adaptadas a nós. Não há sinais de que possam nos infectar. Para nós, são como partículas inofensivas de poeira. — E a Praga? — Aí é que está o grande problema, mesmo em uma questão tão simples como a de deixar ou não Marlene sair do Domo. É claro que vamos tomar precauções. — Que tipo de precauções? — Por exemplo: sua filha estará usando um traje protetor. Além disso, irei com ela. Pretendo servir de canário. — Que quer dizer com isso? — Na Terra, há alguns séculos, os mineiros levavam canários, pequenos pássaros amarelos, para as minas. Quando o ar estava contaminado, os canários morriam antes que os homens fossem afetados, e os homens, sabendo que havia um problemas deixavam a mina. Em outras palavras, se eu começar a agir de modo estranho, seremos imediatamente recolhidos. — E se a Praga afetar Marlene antes de afetar você? — Não é provável. Marlene se considera imune. Disse isso tantas vezes que estou começando a acreditar. Eugenia Insigna nunca tinha visto o Ano-Novo se aproximar com tanta preocupação. Nunca tivera motivo. Na verdade, o Ano-Novo como todo o calendário era uma relíquia de um passado remoto. Na Terra, o ano havia começado com as estações do ano e com festas ligadas às estações, como o dia da colheita, o dia da semeadura e outros. Crile lhe explicara o calendário, em tom grave e solene, co- mo fazia com tudo que lhe lembrava a Terra. Ela havia escutado com uma mistura de interesse e apreensão; interesse, porque queria sentir-se ligada a ele; apreensão, porque temia que o amor que Crile sentia pela Terra o afastasse dela, temor esse que acabara por se concretizar. Era estranho que, depois de tanto tempo, ainda sentisse um aperto no coração… mas estaria ficando mais fraco? Tinha a impressão de que não podia mais se lembrar do rosto de Crile, que se lembrava apenas de haver recordado. Seria apenas a memória de uma memória que se interpunha entre ela e Siever Genarr? Entretanto, o calendário de Rotor se baseava na memória de uma memória. Rotor nunca tivera estações. Tinha um ano, naturalmente, já que ele (e todas as colônias do sistema Terra-Lua, o que deixava de fora apenas as poucas colônias que giravam em torno de Marte ou estavam sendo construídas no cinturão de asteróides) acompanhava a Terra em seu caminho em torno do Sol. Sem estações, o ano não significava muita coisa. Mesmo assim, era mantido, juntamente com os meses e semanas. O dia de Rotor era fixado artificialmente em vinte e quatro horas; durante metade desse tempo, a luz do sol era admitida no interior do satélite; durante a outra metade, era bloqueada. Na verdade, o dia poderia ter qualquer duração, mas a escolhida tinha sido a do dia da Terra, e cada dia era dividido em vinte e quatro horas de sessenta minutos cada uma, com cada minuto dividido em sessenta segundos. (Pelo menos, os dias e noites tinham uma duração uniforme de doze horas.) Tinha havido algumas campanhas nas colônias para adotar o sistema de simplesmente numerar os dias e agrupá-los em dezenas e múltiplos de dez; em decadias, hectodias, quilodias, e, no outro sentido dividi-los em decidias, centidias e milidias; entre tanto, isso não seria prático. Cada colônia não podia adotar um sistema diferente, pois o resultado seria o caos no comércio e nas comunicações. Também não era possível nenhum sistema unificado a não ser o da Terra, onde ainda morava noventa e nove por cento da população humana, e à qual ainda estava ligado a um por cento restante pelos laços da tradição. A memória fazia Rotor e as outras colônias obedecerem a um calendário que não tinha mais sentido para eles. Agora, porém, Rotor tinha deixado o Sistema Solar e um era mundo isolado. Não existiam mais dias, noites ou anos como os da Terra. Não era nem mesmo a luz de uma estrela que distinguia o dia da noite, pois Rotor era iluminado, durante doze horas consecutivas, por luzes artificiais, que em seguida passavam doze horas apagadas. A precisão cronométrica não era quebrada nem mesmo por um enfraquecimento gradual das luzes que pudesse simular o crepúsculo, ou por um acendimento gradual que simulasse a aurora. Não parecia haver necessidade disso. E dentro deste ciclo, válido para toda a colônia, os lares individuais mantinham a iluminação de acordo com a vontade dos ocupantes. Mesmo assim, os dias eram contados pelo tempo da colônia, que era o tempo da Terra. Mesmo ali, no Domo de Eritro, onde havia um dia e uma noite naturais, que eram usados às vezes de forma informal, era ainda o dia de Rotor, ou seja, o da Terra (a memória de uma memória) que era usado nos cálculos oficiais. No momento, muitos achavam que se devia deixar o dia como a única medida básica de tempo. Insigna tinha certeza de que Pitt era a favor de que se adotasse para o tempo um sistema decimal, mas hesitava em formalizar a proposta, temendo uma grande oposição dos conservadores. Talvez a resistência estivesse diminuindo. A divisão do tempo em semanas e meses parecia cada vez menos importante. Os feriados tradicionais eram ignorados com freqüência cada vez maior. Insigna, nos trabalhos de astronomia, usava apenas os dias como unidade de tempo. Um dia, o velho calendário seria extinto e, no futuro distante, novos métodos de marcar o tempo se riam adotados… um Calendário Galáctico Padrão, talvez. No momento, porém, Insigna estava contando os dias que faltavam para um Ano-Novo que começava arbitrariamente. Na Terra, pelo menos, o Ano-Novo começava perto de um solstício, de inverno no hemisfério norte, de verão no hemisfério sul. Tinha uma relação com os movimentos da Terra que apenas os astrônomos de Rotor recordavam com precisão. Agora, porém, embora a própria Insigna fosse astrônoma o Ano-Novo tinha a ver apenas com a expedição de Marlene na superfície de Eritro… uma ocasião escolhida por Siever Genarr apenas porque envolvia uma espera não muito grande, e aceita por Insigna apenas porque não queria desafiar a filha abertamente. Insigna interrompeu seus devaneios para descobrir que a filha a observava com ar solene. (Havia entrado no quarto sem fazer barulho, pensou, ou estava tão imersa nos próprios pensamentos que não percebera a presença da filha?) — Olá, Marlene — disse, quase sussurrando. — Você está triste, mamãe — afirmou Marlene, muito séria. — Você não precisa ser muito observadora para perceber isso, Marlene. Ainda está decidida a pisar no solo de Eritro. — Mais do que nunca. — Por que, Marlene, por quê? Pode explicar de uma forma que eu compreenda? — Não, porque você não quer compreender. Ele está me chamando. — Quem está chamando você? — Eritro. Ele me quer lá fora. — O rosto normalmente sisudo de Marlene pareceu iluminar-se com uma felicidade furtiva. — Quando você fala assim, Marlene, me dá a impressão de que já está com a… com a… — Com a Praga? Não estou, não. Tio Siever acaba de me examinar com a sonda cerebral. Eu disse a ele que não era necessário, mas ele insistiu. O padrão continua exatamente o mesmo. — Não se pode confiar cegamente nas sondas cerebrais — afirmou Insigna, franzindo a testa. — Nem no instinto das mães. Mamãe, por favor — continuou, em tom mais brando —, sei que você quer que eu adie mais uma vez minha saída, mas não posso esperar mais. Tio Siever me prometeu e terá de cumprir a promessa. Mesmo que esteja chovendo, eu vou sair. Nesta época do ano, não há extremos de temperatura nem tempestades muito violentas. Pensando bem, o clima é ameno durante todo o ano. Este mundo é maravilhoso. — Mas é um mundo morto… estéril, a não ser pelos micróbios — disse Insigna, com ar de desdém. — Mas um dia vamos fazê-lo viver — disse Marlene, com o olhar perdido. — Tenho certeza disso. — O traje é bastante simples — disse Siever Genarr. — Não precisa resistir a grandes pressões. Não é um traje de mergulho, nem um traje espacial. Possui um capacete, um suprimento de ar comprimido e uma pequena unidade que mantém a temperatura confortável no seu interior. E é totalmente selado, naturalmente. — Será que é do meu tamanho? — perguntou Marlene olhando desconfiada para o pseudotecido. — Não vai ficar muito elegante — respondeu Genarr, piscando o olho. — Foi projetado para ser funcional, e não bonito. — Não estou interessada em ficar elegante, tio Siever — disse Marlene, em um tom ligeiramente irritado —, mas não quero sair tropeçando por aí. — O traje é necessário para protegê-la — interveio Insigna. — Mas não precisa me tolher os movimentos, não é, mamãe? Um traje que sirva em mim vai me proteger da mesma forma. — Este aqui é o melhor que pudemos conseguir — disse Genarr. — Afinal de contas, só temos trajes para adultos. — Voltou- se para Insigna: — Não usamos muito esses trajes atualmente. Houve uma época em que costumávamos explorar as vizinhanças, mas agora, que já conhecemos razoavelmente bem o terreno em volta do Domo, raramente saímos, e quando o fazemos, usamos carros fechados. — Eu preferiria que vocês usassem um carro fechado. — Não! — protestou Marlene, a quem a sugestão obviamente não havia agradado. — Já saí em um veículo. Desta vez, quero andar. Quero… sentir o solo sob os meus pés. — Está maluca! — exclamou Insigna, irritada. — Quer parar de insinuar… — começou Marlene. — Onde está sua percepção? Não estava me referindo à Praga. Estava querendo dizer só maluca, no sentido comum da palavra. Isto é… na verdade, Marlene, você é que está me deixando maluca! — Depois, voltando-se para Genarr: — Siever, se esses são trajes antigos, como sabe que não têm nenhum vazamento? — Eles foram testados, Eugenia. Garanto a você que estaão funcionando perfeitamente. Era evidente que Insigna estava tentando arranjar pretextos para adiar a expedição. — Suponha que um de vocês precise… Fez um gesto vago. — Urinar? isso que está querendo dizer? Isso pode ser feito, embora não seja muito confortável. Mas não será necessário. Esvaziamos nossas bexigas e não vamos passar lá fora mais que algumas horas. E não nos afastaremos muito, de modo que, em caso de emergência, não será difícil voltar ao Domo. Agora está na hora de partirmos, Eugenia. O tempo está ótimo lá fora, e devemos aproveitar. Marlene, deixe-me ajudá-la a vestir o traje. — Não fale num tom tão alegre — protestou Insigna, de mau humor. — Por que não? Para dizer a verdade, a idéia de dar um passeio lá fora me agrada bastante. Depois de algum tempo, o Domo começa a parecer uma prisão. Talvez se saíssemos mais, nossos empregados agüentariam passar temporadas maiores em Eritro. Pronto, Marlene, agora é só colocar o capacete. Marlene hesitou. — Só um momento, tio Siever. — Aproximou-se de Insigna, com os braços estendidos. A mãe lançou-lhe um olhar choroso. — Mamãe, fique calma, por favor! Gosto de você. Não faria isso, não deixaria você tão aflita, apenas por um capricho. Só estou fazendo isso porque acho que é necessário,e porque sei que não há nenhum perigo. Aposto que gostaria de ir comigo só para não me perder de vista, mas não deve. — Por que não devo, Marlene? Como poderei me perdoar se acontecer alguma coisa com você e eu não estiver por perto para ajudá-la? — Não vai acontecer nada comigo. Mesmo que acontecesse, o que você poderia fazer? Além disso, o medo que você sente de Eritro é tão grande que sua mente deve estar vulnerável a todos os tipos de influências negativas. E se a Praga atingisse você? Como acha que eu me sentiria? — Ela tem razão, Eugenia — disse Genarr. — Vou estar lá fora com ela. A melhor coisa que pode fazer é ficar aqui e se acalmar. Todos os trajes E são equipados com rádios. Marlene e eu poderemos nos comunicar com o Domo e um com o outro. Prometo a você que se notar qualquer anormalidade em Marlene, tratarei de trazê-la imediatamente de volta. E se sentir qualquer coisa anormal, voltarei imediatamente, trazendo Marlene comigo. Insigna sacudiu a cabeça e não pareceu convencida enquanto observava Marlene e Genarr colocarem seus capacetes. Estavam perto da comporta principal do Domo, e Insigna ficou olhando enquanto ela era ativada. Ela sabia muito bem como funcionava… era um mecanismo familiar para todos os colonos. Havia o controle delicado da pressão do ar para assegurar que o ar circulasse do Domo para fora, e nunca de Eritro para dentro. Havia testes computadorizados para garantir a ausência de vazamentos. Afinal, a porta interna se abriu. Genarr entrou na comporta e fez um gesto para que Marlene o seguisse. Marlene entrou também, e a porta se fechou. Insigna sentiu um aperto no coração. Observando os controles, soube exatamente quando a porta externa se abriu e quando tornou a se fechar. A holotela se acendeu, e ela viu duas pessoas vestidas com trajes E, caminhando no solo de Eritro. Um dos técnicos passou a Insigna um pequeno fone de ouvido, que ela colocou no ouvido direito. Um microfone igualmente pequeno foi pendurado no seu pescoço. Uma voz no seu ouvido disse: “Rádio ligado” e logo depois ouviu a voz familiar de Marlene. — Mamãe, está me ouvindo? — Sim, querida. — Sua voz soava seca e anormal no seu próprio ouvido. — Estamos aqui fora e é maravilhoso. Não podia estar me sentindo melhor. — Sim, querida — repetiu Insigna, sentindo-se muito sozinha e imaginando se tornaria a ver a filha com seu juízo perfeito. Siever Genarr estava se sentindo quase eufórico quando pisou na superfície de Eritro. A parede inclinada do Domo, atrás dele, ocultava parte da paisagem, mas ele lhe deu as costas, pois uma visão tão pouco eritroniana tiraria o sabor do passeio. Sabor? Era uma palavra mal escolhida, pois no momento estava vivendo sob a proteção do capacete, respirando o ar do Domo, ou pelo menos o ar que tinha sido purificado e condicionado dentro do Domo. Não podia sentir o cheiro do planeta nem provar o seu gosto. Mesmo assim, sentia-se estranhamente feliz. Suas botas faziam o solo estalar levemente. Embora a superfície de Eritro fosse rochosa, era coberta de cascalho, e, entre os pedaços de cascalho, havia o que só podia ser chamado de solo. Havia, naturalmente, água e ar suficientes para desgastar as rochas primordiais, e talvez os procariotes, presentes em grande número em todo o planeta, também houvessem contribuído para a erosão. O solo era macio. Tinha chovido no dia anterior, a chuva fina e constante de Eritro… pelo menos, daquela região de Eritro. Em conseqüência, o solo ainda estava ligeiramente úmido, e Genarr imaginou as partículas de solo, os pequenos grãos de areia e de barro, cada um com uma fina película de água, que tinha sido reposta pela chuva. Naquela película viviam milhares de células procarióticas, absorvendo a radiação de Nêmesis, transformando proteínas simples em complexas, enquanto outros procariotes, indiferentes à energia solar, faziam uso dos restos dos procariotes que morriam aos trilhões a cada instante. Marlene estava a seu lado, o olhar voltado para cima, e Genarr admoestou-a delicadamente: — Não olhe fixo para Nêmesis, Marlene. A voz de Marlene soou bastante natural no seu ouvido. Não parecia tensa nem apreensiva. Pelo contrário, parecia irradiar uma grande alegria. — Estou olhando para as nuvens, tio Siever. Genarr olhou para o céu escuro onde, com algum esforço, era possível observar um leve brilho amarelo-esverdeado. Nele se recortavam as nuvens tênues que recebiam a luz de Nêmesis e a refletiam em um esplendor alaranjado. Havia uma calma arrepiante em Eritro. Não havia nada para fazer ruído. Nenhuma forma de vida cantava, rugia, rosnava, bramia, gorjeava, estridulava ou coaxava. Não havia folhas para farfalhar ou insetos para zumbir. Nas raras tempestades, podia haver o ronco do trovão, ou o vento podia assobiar nos rochedos… se fosse suficientemente forte. Em um dia calmo, porém, como aquele, o silêncio era completo. Genarr falou para certificar-se de que o silêncio era total e não havia ficado surdo de repente. (Pensando melhor, não podia estar surdo, pois ouvia a própria respiração.) — Está tudo bem, Marlene? — Sinto-me ótima. Há um regato logo ali. — Marlene apressou o passo até que estava quase correndo, apesar do traje. — Cuidado, Marlene! — advertiu Genarr. — Você pode tropeçar! — Estou tomando cuidado. Naturalmente, a voz da moça não diminuía com a distância, pois era transportada por ondas de rádio. De repente, Genarr ouviu a voz de Insigna. — Por que Marlene está correndo, Siever? — Logo em seguida, Insigna acrescentou: — Por que está correndo, Marlene? Marlene não respondeu. — Ela só quer ver de perto um riacho, Eugenia — retrucou Genarr. — Ela está bem? — Claro que sim. A paisagem aqui é linda. Depois de algum tempo, não parece tão desolada… se parece com uma pintura abstrata. — Esqueça a arte, Siever. Não deixe que minha filha se afaste muito. — Não se preocupe. Estou em contato constante com ela. Agora mesmo, ela está ouvindo toda a nossa conversa, e se não respondeu, é porque tem coisas mais importantes para fazer. Calma, Eugenia. Marlene está se divertindo. Não atrapalhe. — Genarr estava sinceramente convencido de que Marlene estava se divertindo. Ele próprio estava se divertindo, também. Marlene estava acompanhando a margem do regato, no sentido contrário ao do movimento da água. Genarr não estava com pressa de segui-la. Melhor deixá-la à vontade, pensou. O Domo tinha sido construído numa colina; a região em volta era cortada por vários regatos, que desaguavam em um rio relativamente caudaloso, a trinta quilômetros de distância, que, por sua vez, corria para o mar. Os regatos eram úteis, naturalmente. Constituíam o suprimento do Domo, depois que os procariotes eram removidos (“mortos” seria a expressão mais correta). Tinha havido alguns biólogos, no princípio, que objetavam à morte dos procariotes, mas isso era ridículo. Os organismos unicelulares eram tão numerosos no planeta, e podiam reproduzir-se com tanta rapidez, que a eliminação de alguns para assegurar a qualidade da água utilizada no interior do Domo não podia representar nenhum prejuízo significativo para a espécie. Depois que a Praga começou, todos passaram a sentir uma vaga mas profunda hostilidade em relação a Eritro, e ninguém mais defendeu os procariotes. Naturalmente, agora que a Praga não parecia mais uma ameaça, os sentimentos humanitários (Genarr achava que biotários” seria uma palavra melhor) poderiam surgir de novo. Genarr simpatizava com esses sentimentos, mas onde o Domo iria arranjar outro suprimento de água? Perdido nos seus pensamentos, não estava mais olhando para Marlene e os gritos o assustaram. Marlene! Marlene! Siever, o que ela está fazendo? Genarr levantou a cabeça e ia responder, mecanicamente, que tudo estava bem, quando avistou Marlene. Por um momento, não compreendeu o que estava fazendo. Limitou-se a olhar para ela, iluminada pela luz rósea de Nêmesis. Então, compreendeu. Marlene estava removendo o capacete. Depois, começou a despir o resto do traje E. Tinha que detê-la! Genarr tentou falar com ela, mas estava tão surpreso que perdeu a voz. Tentou correr em sua direção, mas as pernas pareciam feitas de chumbo. Era como se estivesse em um pesadelo no qual coisas horríveis estavam acontecendo e nada podia fazer para impedi-las. Ou talvez sua mente, pressionada pelos acontecimentos, estivesse se separando do corpo. Será que a Praga me pegou? disse Genarr para si mesmo, assustado. Nesse caso, o que acontecerá com Marlene, que está se expondo deliberadamente à luz de Nêmesis e ao ar de Eritro? VINTE E SEIS PLANETA Crile Fisher tinha visto Igor Koropatski apenas duas vezes nos três anos que se haviam passado desde que assumira o posto anteriormente ocupado por Tanayama e se tornara o chefe real — se bem que não o chefe oficial — do projeto. Mesmo assim, reconheceu-o sem dificuldade quando o visor da porta mostrou sua imagem. Koropatski ainda era um homem imponente e jovial. Estava bem-vestido, com uma gravata larga e folgada, de acordo com a moda. Quanto a Fisher, tinha tirado a manhã de folga e não estava muito apresentável, mas ninguém se recusava a receber Koropatski, mesmo quando ele aparecia sem avisar. Fisher apertou o botão que colocava na tela do lado de fora a imagem de “Espere”, o desenho estilizado de um homem (ou mulher, pois o sexo era deliberadamente ambíguo) com a mão levantada delicadamente em um gesto que era compreendido universalmente como “Espere um minuto” sem que o ocupante ti- versa necessidade de dizer isso com palavras, o que seria considerado falta de educação. Fisher teve alguns momentos para pentear o cabelo e ajeitar a roupa. Poderia ter feito a barba, mas achou que Koropatski poderia ficar ofendido se levasse mais tempo para abrir a porta. A porta se abriu, e Koropatski entrou. Sorriu cordialmente. — Bom dia, Fisher. Sei que estou chegando numa hora imprópria.. — Pelo contrario, Sr. Diretor — disse Fisher, esforçando- se para parecer sincero —, mas se quer falar com a Dra. Wendel, ela está no laboratório. Koropatski fez um muxoxo. — Era o que eu temia. Nesse caso, não tenho escolha senão falar com você. Posso me sentar? — Claro, Sr. Diretor — disse Fisher, envergonhado por não ter convidado Koropatski para sentar-se antes que ele pedisse permissão. — Posso lhe oferecer alguma coisa? — Não, obrigado — disse Koropatski, dando um tapinha na barriga. — Eu me peso toda manhã e isso é suficiente para acabar com meu apetite… quase. Fisher, nunca tive a oportunidade de conversar com você de homem para homem. Acho que chegou a hora de fazê-lo. — Como quiser, Sr. Diretor — murmurou Fisher, começando a se sentir pouco à vontade. Que história era aquela? — Nosso planeta lhe deve muita coisa. — Bondade sua, Sr. Diretor. — Morou em Rotor antes que ele deixasse o Sistema Solar. — Isso foi há quatorze anos, Sr. Diretor. — Sei disso. Casou-se com uma rotoriana e teve uma filha. — É verdade, Sr. Diretor. — Mas voltou para a Terra pouco antes da partida de Rotor. — Sim, Sr. Diretor. — Foi uma coisa que ouviu em Rotor, e que repetiu para nós, mais outra idéia sua, que levou à descoberta da Estrela Vizinha. — Sim, Sr. Diretor. — E foi você que trouxe a Dra. Tessa Wendel de Adelia para a Terra. — Sim, Sr. Diretor. — E se encarregou de mantê-la feliz e satisfeita durante mais de oito anos, não é? — Deu um risinho. Fisher teve a impressão de que se Koropatski estivesse perto, teria cutucado as suas costelas com o cotovelo. — Nós nos damos bem, Sr. Diretor — disse Fisher, cauteloso.. — Mas vocês não se casaram. — Já sou casado, Sr. Diretor. — Mas está separado há quatorze anos. Seria fácil conseguir o divórcio. — Tenho uma filha. — Que continuaria a ser sua filha, mesmo que se casasse de novo. — Seria uma formalidade inútil. — Talvez. Pode ser até que seja melhor como está. Você sabe que a nave superluminal está pronta para a primeira viagem. Pretendemos lançá-la no começo de 2237. — Foi o que a Dra. Wendel me disse, Sr. Diretor. — Os detectores neurônicos estão instalados e funcionando. — Ela me contou isso, também, Sr. Diretor. Koropatski colocou as mãos no colo e anuiu com a cabeça. Depois, olhou rapidamente para Fisher e perguntou: — Sabe como funcionam? — Não, senhor. Não conheço nada a respeito do funcionamento da nave. Koropatski tornou a anuir com a cabeça. — Nem eu. Temos que aceitar a palavra da Dra. Wendel e seus assistentes. Entretanto, falta ainda uma coisa. — Oh? — (Fisher ficou apreensivo. Mais atrasos?) — O que está faltando, Sr. Diretor? — Comunicações. Em minha opinião, se existe um motor capaz de fazer um veículo se mover muito mais depressa que a luz, devia haver também um aparelho capaz de produzir onde (ou outra forma de sinalização) que se movessem com.uma velocidade maior que a da luz. Para mim, devia ser mais fácil enviar uma mensagem superluminal do que construir uma nave superluminal. — Eu não saberia dizer, Sr. Diretor. — No entanto, a Dra. Wendel me assegurou que, no momento, não existe nenhuma forma eficiente de comunicação superluminal. Um dia vai haver, mas pode levar algum tempo, e ela não quer esperar. — Eu também não quero, Sr. Diretor. — Sim, estamos todos ansiosos para ver o resultado de nossos esforços. Acontece que, sem um sistema de comunicações, perderemos o contato com a nave assim que ela partir. — Fez uma pausa.. Fisher manteve um silencio discreto. (Que significava tudo aquilo? Aonde o velho urso estaria querendo chegar?) Koropatski olhou para Fisher. — Sabe que a Estrela Vizinha está vindo na nossa direção? — Sei, Sr. Diretor. Também ouvi falar que vai passar a uma distância tão grande do Sistema Solar que não seremos afetados. — É isso que quero que todos pensem. A verdade, Fisher, é que a Estrela Vizinha vai passar tão perto que a órbita da Terra será alterada de forma significativa. Fisher olhou para o diretor, chocado. — O planeta vai ser destruído? — Não, o efeito não será tão drástico. Entretanto, o clima mudará tanto que a Terra se tornará inabitável. — Isso é certo? — perguntou Fisher, incrédulo. — Os cientistas nunca têm certeza de nada. Entretanto, a probabilidade de que isso aconteça é tão grande que é melhor nos prevenirmos. Temos cinco mil anos para agir, e estamos desenvolvendo o vôo superluminal… supondo que a nave funcione. — Se a Dra. Wendel diz que ela vai funcionar, Sr. Diretor, tenho certeza de que não haverá problemas. — Espero que tenha razão. Entretanto, mesmo com cinco mi anos e com o vôo superluminal, a situação não é boa. Teríamos que construir cento e trinta mil colônias como Rotor para evacuar os oito bilhões de habitantes da Terra, mais as plantas e animais suficientes para colonizar novos mundos. São vinte e seis arcas de Noé por ano, se começarmos já. Isso supondo que a população não aumente nos próximos cinco mil anos. — Talvez seja possível conseguirmos uma média de vinte e seis por ano — disse Fisher, cautelosamente. — Afinal, com a experiência, certamente nossa produção tenderá a ficar mais rápida e eficiente; além disso, estamos praticando o controle da natalidade há muitas décadas. — Muito bem. Agora me diga uma coisa: se transportarmos toda a população da Terra para cento e trinta mil colônias, fazendo uso dos recursos da Terra, mais os da Lua, de Marte e dos asteróides, e abandonarmos o Sistema Solar antes da chegada a Estrela Vizinha, para onde irão todas essas colônias? — Não sei, Sr. Diretor. — Teremos que encontrar planetas semelhantes à Teria para alojar toda essa imensa população. Devemos pensar nisso também, e devemos pensar agora, e não daqui a cinco mil — Se não encontrarmos planetas apropriados, ainda temos o recurso de colocar as colônias em órbita em torno de estrelas apropriadas — sugeriu Fisher, fazendo com o dedo movimento circular. — Meu amigo, isso não vai resolver o problema. — Com todo o respeito, Sr. Diretor, isso resolveu o problema aqui no Sistema Solar. — Não resolveu, não. Apesar de termos criado várias colônias, a Terra ainda abriga noventa e nove por cento da raça humana. A Terra ainda é o principal, e as colônias apenas uma espécie de penugem que nos cerca. A penugem poderia existir sozinha? Não temos nenhuma prova de que isso seja possível. Pessoalmente, acho que não. — Talvez tenha razão, Sr. Diretor. — Talvez? Não há dúvida alguma! — disse Koropatski, em tom exaltado. — Os colonos aparentemente nos desprezam, mas a verdade é que não param de pensar em nós. Somos a história deles. Somos o seu modelo. Somos a reserva à qual são forçados a recorrer periodicamente para se revigorarem. Se fossem entregues à própria sorte, certamente definhariam. — Pode ter razão, Sr. Diretor, mas isso nunca foi tentado. Não conheço nenhum caso em que as colônias tenham tentado existir sem um planeta… — Pois eu conheço vários casos análogos. No passado, os habitantes da Terra colonizaram ilhas e se isolaram dos continentes. Os irlandeses colonizaram a Islândia; os nórdicos colonizaram a Groenlândia; os amotinados do Bounty colonizar a Ilha de Pitcairn; os polinésios colonizaram a Ilha da Páscoa. Resultado? As colônias definharam, em alguns casos desaparecerem totalmente. A estagnação foi a regra. Nenhuma civilização jamais se desenvolveu na Terra a não ser nos continentes ou em ilhas próximas dos continentes. A humanidade precisa de espaço, variedade, um horizonte, uma fronteira. Está entendendo? — Sim, Sr. Diretor — disse Fisher. (De que adiantava discutir?) — De modo que devemos encontrar um planeta — declarou Koropatski, didaticamente, com o indicador direito espetado na palma da mão esquerda —, nem que seja apenas para começar. O que nos leva a Rotor. Fisher levantou as sobrancelhas, surpreso. — A Rotor, Sr. Diretor? — Isso mesmo. Nos quatorze anos que se passaram desde que partiram O que aconteceu a eles? — A Dra. Wendel acha que talvez não tenham sobrevivido. (Fisher sentiu um aperto no coração ao dizer isso. Sempre sentia um aperto no coração quando pensava a respeito.) — Sei que ela acha. Conversei com ela, e aceitei o que disse sem discussão. Mas gostaria de ouvir a sua opinião. — Não tenho opinião, Sr. Diretor. Apenas estou torcendo para que tenham sobrevivido. Tenho uma filha em Rotor. — Talvez você ainda tenha. Pense! O que poderia destruí-los? Um defeito grave. Rotor não é uma nave, mas uma colônia que funcionou durante cinqüenta anos sem nenhum defeito digno de nota. Viajou pelo espaço vazio daqui até a Estrela Vizinha, e que pode haver de mais inofensivo que o espaço vazio? — Rotor pode ter se chocado com um miniburaco negro, ou com um asteróide errante… — A probabilidade de um choque desses é muito pequena. Pelo menos, foi o que os astrônomos me informaram. Rotor poderia ter sido destruído por alguma coisa na estrutura do hiperespaço? Estamos fazendo experiências no hiperespaço há vários anos e até hoje não encontramos nada perigoso. De modo que podemos supor que Rotor conseguiu chegar à Estrela Vizinha, se é que foram para lá, e todos parecem concordar que não faz sentido supor que tenham ido para outro lugar. — Gosto de pensar que chegaram lá e ainda estão vivos. — Nesse caso, porém, surge a questão: se Rotor ainda se encontra nas proximidades da Estrela Vizinha, que está fazendo lá? — Existindo. (O tom era intermediário entre o de uma declaração e uma pergunta.) — Como? Girando em torno da Estrela Vizinha? Uma co- lônia isolada, eternamente em órbita em torno de uma anã vermelha? Não é provável. Eles definhariam em pouco tempo. — Então acha que estão mortos, Sr. Diretor? — Não. Se a colônia entrasse em decadência, eles desistiriam e voltariam para o Sistema Solar. Entretanto, ate hoje não tivemos tivemos notícias deles. Sabe o que penso? Penso que encontram um planeta habitável perto da Estrela Vizinha. — Mas não pode haver planetas habitáveis girando em torno de uma anã vermelha, Sr. Diretor. Se o raio da órbita for muito grande, o planeta não receberá energia suficiente; se for muito pequeno, o efeito de maré será intolerável. — Fez uma pausa e depois murmurou, contrafeito: — Pelo menos, foi o que a Dra Wendel me disse. — Sim, os astrônomos me explicaram a mesma coisa. Entretanto — prosseguiu Koropatski, sacudindo a cabeça — a experiência me ensinou que a natureza freqüentemente prega peças nos cientistas. Seja como for, compreende por que estamos deixando você participar desta viagem? — Compreendo, Sr. Diretor. Seu predecessor prometeu que eu iria como pagamento pelos serviços prestados. — Tenho uma razão melhor. Meu predecessor, que era um grande homem, um homem admirável, era também um homem doente nos seus últimos dias. Os inimigos acreditavam que havia ficado paranóico. Achava que Rotor sabia do perigo que a Terra estava correndo e tinha fugido sem nos avisar porque queria que a Terra fosse destruída. Deviam ser punidos por isso. Entretanto, meu predecessor se foi e estou aqui. Não sou velho, nem doente, nem paranóico. Se Rotor ainda estiver funcionando perto da Estrela Vizinha, não pretendo hostilizar seus habitantes. — Fico satisfeito de ouvir isso, mas não é uma coisa que deveria discutir com a Dra. Wendel, Sr. Diretor? Afinal, ela vai ser a comandante da nave. — A Dra. Wendel nasceu numa colônia. Você é um leal súdito da Terra. — A Dra. Wendel trabalhou lealmente para nós durante muitos anos, no projeto da nave superluminal. — Não vou discutir que ela tem sido leal ao projeto. Mas será que é leal à Terra? Podemos confiar em que represente adequadamente as intenções da Terra com relação a Rotor? — Posso saber, Sr. Diretor, quais são as intenções da Terra com relação a Rotor? Pelo que entendi, o senhor não pretende punir a colônia por não ter nos avisado a respeito da Estrela Vizinha. — Isso mesmo. O que pretendemos agora é estabelecer uma cooperação, com base na fraternidade, nos sentimentos mais puros e elevados. Depois de estabelecido o primeiro contato, vocês deverão voltar para o Sistema Solar com o máximo possível de informações a respeito de Rotor e seu planeta. — Tenho certeza de que, se repetir para a Dra. Wendel o que acabou de me dizer, ela terá todo o prazer em atendê-lo. Koropatski riu. — Pode ser, mas temos de levar em conta certos fatos. A Dra. Wendel não é mais nenhuma criança. Na verdade, já passou dos cinqüenta. — E daí? — (Fisher não pôde deixar de se sentir ofendido.) — Ela deve saber que quando voltar, com a experiência de um vôo superluminal bem-sucedido, será mais valiosa para nós que nunca; vamos precisar dela para projetar as naves superluminais de segunda geração e também para treinar os pilotos dessas naves. Deve saber que não a deixaremos penetrar no hiperespaço por uma segunda vez, pois será simplesmente valiosa demais para corrermos o risco. Assim, antes de voltar, pode se sentir tentada a continuar a viagem de exploração. Talvez não esteja disposta a renunciar à emoção de examinar de perto outras estrelas, de investigar outras regiões da Galáxia. Não queremos que corra esse risco; já bastam os riscos da viagem de ida e volta às proximidades da Estrela Vizinha. Além disso, o tempo para nós é precioso. Está compreendendo? Fisher engoliu em seco. — O senhor não tem nenhum motivo para… — Tenho todos os motivos. A Dra. Wendel sempre esteve em uma posição delicada aqui na Terra. De todas as pessoas envolvidas no projeto, é de longe a mais importante. Por isso, foi objeto de uma análise psicológica bastante detalhada. Foi examinada a fundo, com e sem o seu conhecimento, e estamos certos de que, se tiver a oportunidade, tentará explorar outras estrelas além da Estrela Vizinha. E não teremos meios de nos comunicar-nos com ela. Não saberemos onde está, o que está fazendo. Não saberemos nem mesmo se está viva. — Por que está me dizendo tudo isso, Sr. Diretor? — Porque sabemos que você tem uma grande influência sobre ela. A doutora ouvirá os seus conselhos… se tiver firmeza. — Talvez estejam superestimando minha influência, Sr. Diretor. — Estou certo que não. Você também foi muito estudado, e sabemos exatamente quais são os laços que o unem à doutora… laços mais fortes, talvez, do que você mesmo pensa. Sabemos, também, que é um súdito leal da Terra. Poderia ter partido com Rotor, mas voltou para a Terra, mesmo sabendo que isso implicaria perder sua esposa e filha, mesmo sabendo que meu predecessor, o Diretor Tanayama, consideraria sua missão um fracasso, por não haver conseguido obter informações a respeito da propulsão hiperespacial, e talvez não lhe desse uma segunda oportunidade. Tenho certeza de que posso contar com você para garantir que a Dra. Wendel voltará para a Terra assim que a missão estiver cumprida, trazendo as informações de que necessitamos. — Vou fazer o possível, Sr. Diretor. — Está dizendo isso sem convicção. Compreenda, por favor, a importância do que estou lhe pedindo. Nós temos de saber o que estão fazendo, qual a força que possuem, como é o planeta que colonizaram. Quando soubermos tudo isso, saberemos o que nós devemos fazer, qual a força que nós devemos possuir, para que tipo de vida nós devemos estar preparados. Porque, Fisher, precisamos de um planeta, e precisamos com urgência. E nossa única escolha é tomar o planeta de Rotor. — Se ele existir — disse Fisher, com voz rouca. — É melhor que exista. Disso depende a sobrevivência da Terra, Fisher. VINTE E SETE VIDA Siever Genarr abriu os olhos devagar e piscou para a luz, sem compreender perfeitamente o que estava vendo. Pouco a pouco, a imagem entrou em foco, e Genarr reconheceu Ranay D’Aubisson, Neurofísica-Chefe do Domo. — Marlene? — chamou Genarr, em voz baixa. — Ela parece bem. É com você que estou preocupada — disse D’Aubisson, muito séria. Genarr sentiu um arrepio de medo e tentou disfarçá-lo com um pouco de humor negro. — Devo estar pior do que pensava, se o Anjo da Praga está aqui comigo. — Como D’Aubisson continuou calada, Genarr insistiu: — Estou? A neurofísica pareceu voltar à vida. Curvou-se sobre Genarr, alta e angulosa, as rugas finas em volta dos olhos azuis e penetrantes tornando-se mais visíveis quando apertou os olhos para olhar para ele. — Como se sente? — Cansado. Muito cansado. Fora isso, tudo bem? — Genarr terminou a frase em tom interrogativo, como que para reforçar a pergunta que não tinha sido respondida. — Está dormindo há cinco horas — disse D’Aubisson, ainda sem responder. Genarr fez um muxoxo. — Mesmo assim, estou cansado. E preciso ir ao banheiro — acrescentou, tentando sentar-se. D’Aubisson fez um sinal, e um enfermeiro se aproximou.Colocou a mão respeitosamente por baixo do cotovelo de Genarr, que se encolheu, indignado. — Deixe que ele o ajude, por favor — disse D’Aubisson. — Ainda não temos um diagnóstico. Quando Genarr voltou para a cama, dez minutos depois, perguntou, em tom queixoso: — Não têm um diagnóstico? Já usaram a sonda cerebral? — Claro que sim. Foi a primeira coisa que fizemos. — E então? A neurofísica deu de ombros. — Não encontramos nada de significativo, mas o senhor estava dormindo. Vamos fazer outro exame, agora que está acordado. E deve ser observado de outras formas. — Por quê? A sonda cerebral não é suficiente? Ela levantou as sobrancelhas. — O senhor acha que é? — Agora chega de brincadeiras. Aonde quer chegar? Não sou nenhuma criança! D’Aubisson suspirou. — Os casos da Praga que tivemos mostraram alguns sinais interessantes no exame da sonda cerebral, mas não pudemos comparar os resultados com os obtidos antes do aparecimento da doença, porque nenhum dos pacientes tinha sido submetido previamente a um exame detalhado. Depois que passamos a examinar rotineiramente todos os trabalhadores que chegavam ao Domo, não apareceram novos casos da Praga. O senhor sabia disso? — Não tente me apanhar em armadilhas! — exclamou Genarr, irritado. — Claro que eu sabia disso! Acha que perdi a memória? Pelo que está dizendo, chego à conclusão (ainda sou capaz de chegar a conclusões, sabia?) de que você comparou o mapa antigo do meu cérebro com o de um exame recente e não encontrou nenhuma diferença importante. É isso? — O senhor não tem nenhum problema sério, mas uma situação subclínica não está fora de cogitações. — Mesmo quando vocês não encontraram nada? — Poderíamos não notar uma diferença sutil, pois não sabemos exatamente onde procurar. Afinal de contas, o senhor desmaiou, e não é normalmente dado a desmaios, Comandante. — Faça outro exame agora que estou acordado. Se for alguma coisa tão sutil que ninguém consegue observar, poderei conviver com ela. Mas fale-me de Marlene. Tem certeza de que ela está bem? — Eu disse que ela parece estar bem, Comandante. Ao contrário do senhor, não mostrou nenhuma alteração de comportamento. Não desmaiou. — Ela voltou para o Domo? — Sim, foi ela que trouxe o senhor, pouco antes que perdesse os sentidos. Não se lembra? Genarr corou e murmurou alguma coisa. — Diga-nos exatamente do que se lembra, Comandante. Conte-nos tudo. Qualquer coisa pode ser importante. O desconforto de Genarr aumentou quando ele tentou se lembrar. Tudo parecia ter acontecido havia muito tempo, e as memórias eram vagas, como se estivesse tentando recordar um sonho. — Marlene estava tirando o traje E… não estava? — Estava. Ela entrou aqui sem ele e tivemos que mandar alguém lá fora para buscá-lo. — Pois eu tentei impedi-la, naturalmente, assim que percebi o que estava fazendo. A Dr Insigna chamou pelo rádio, e isso me alertou. Marlene estava a uma certa distância, na margem do regato. Tentei chamá-la, mas estava tão chocado que perdi a voz. Tentei aproximar-me, tentei… tentei… — Correr na direção dela — completou D’Aubisson. — Sim, mas… mas… — Mas descobriu que não podia correr. Estava quase paralisado. Não foi isso? Genarr anuiu com a cabeça. — Foi. Isso mesmo. Tentei correr, mas… você já teve um desses pesadelos em que alguém o persegue e você simplesmente não consegue correr? — Sim. Todos nós temos esse tipo de pesadelo. Em geral, começa quando nossos braços ou pernas se embaraçam nas cobertas. — Senti-me como num desses sonhos. Consegui recupera a voz, afinal, e gritei para ela, mas Marlene já havia tirado o capacete e não podia me ouvir. — Sentiu-se tonto? — Não. Apenas confuso e impotente. Como se não adiantasse tentar correr. Foi então que Marlene me viu e saiu correndo na minha direção. Deve ter percebido que eu não estava passando bem. — Ela não teve nenhuma dificuldade para correr. Estou certa? — Não notei nenhuma dificuldade. Ela se aproximou de mim. Em seguida… vou ser honesto com você, Ranay. Não me lembro de mais nada depois disso. — Entraram juntos no Domo — disse D’Aubisson, calmamente. — Ela estava ajudando o senhor, amparando-o. Depois de entrarem no Domo, o senhor perdeu os sentidos e agora… está aqui. — E você acha que peguei a Praga. — Acho que o senhor sofreu alguma coisa, mas o exame do seu cérebro não revelou nada de anormal, de modo que estou confusa. E isso aí. — Foi o choque de ver Marlene em perigo. Por que estaria tirando o traje E se não estivesse… — interrompeu o que estava dizendo. — Se não estivesse sob os efeitos da Praga. É isso que ia dizer? — A idéia me ocorreu. — Mas ela parece ótima. Quer dormir mais um pouco? — Não. Perdi o sono. Faça outro exame e cuide para que dê negativo, porque estou me sentindo muito melhor agora que discutimos abertamente o que me aconteceu. Depois, vou cuidar da minha vida. — Mesmo que o exame não revele nada de anormal, Comandante, terá de permanecer na cama pelo menos vinte e quatro horas. Vai ficar em observação, o senhor entende. Genarr deu um gemido teatral. — Não pode fazer isso! Não posso ficar aqui deitado, olhando para o teto, durante vinte e quatro horas! — Não será preciso. Podemos trazer um monitor para cá, de modo que o senhor poderá ler um livro ou assistir holovisão. Poderá até receber uma visita ou duas. — Suponho que as visitas também vão estar me observando… —É possível que sejam interrogadas a respeito. Agora, vamos ao exame. — Deu as costas a Genarr, depois voltou-se de novo para ele com um sorriso nos lábios. — E bem possível que o senhor esteja certo, Comandante. Suas reações me parecem perfeitamente normais. Mas precisamos ter certeza, não é mesmo? Genarr murmurou alguma coisa, e quando D’Aubisson deu- lhe as costas de novo e saiu do quarto, fez uma careta para ela. Aquela, pensou, também era uma reação normal. Quando Genarr abriu os olhos de novo, foi para ver Eugenia Insigna olhando para ele, com ar penalizado. Fez uma cara de surpresa e tentou sentar-se. — Eugenia! Insigna sorriu para ele, mas o ar de tristeza continuou. — Disseram que eu podia vê-lo, Siever. Disseram que estava bem. Genarr sentiu um imenso alívio. Ele sabia que estava bem, mas era bom ver sua opinião confirmada. — Claro que estou! — exclamou, em tom confiante. — Exame do cérebro normal, quando estava dormindo Exame do cérebro normal, depois que acordei. Exame do cérebro normal, o tempo todo. E Marlene, como está? — O exame dela deu normal, também. — Como está vendo, fui o canário de Marlene, como prometido. Fui afetado antes dela. — De repente, mudou de tom. Não estava na hora de brincadeiras. — Eugenia, como posso me desculpar? Não tomei conta direito de Marlene, e o choque de vê-la tirar o traje me deixou paralisado. Prometi a você que cuidaria dela e fracassei miseravelmente Honestamente, não tenho desculpa. Insigna estava sacudindo a cabeça. — Não, Siever. Não foi sua culpa. Ainda bem que ela trouxe você de volta. — Não foi minha culpa. — Genarr estava surpreso. Claro que tinha sido sua culpa. — Não foi, não. Há uma coisa muito pior do que Marlene tirar o traje e você não conseguir impedi-la. Muito pior. Tenho certeza. Genarr sentiu um frio na espinha. Que poderia ser? — Que está tentando me dizer? — Jogou as pernas para fora da cama e de repente se deu conta de que estava usando uma camisola. Enrolou-se no lençol. — Por favor, sente-se e conte-me o que é? Tem algo a ver com Marlene? Está me escondendo alguma coisa? Insigna se sentou e olhou gravemente para Genarr. — Dizem que ela está bem. O exame não revelou nada de anormal. Os que conhecem a Praga dizem que não mostra nenhum sintoma. — Então por que está aí sentada como se fosse o fim do mundo? — Acho que é, Siever. O fim deste mundo. — Como assim? — Não posso explicar. Você vai ter que conversar com Marlene. Ela está decidida, Siever. Não se arrepende do que fez. Diz que não pode explorar Eritro… sentir Eritro é a expressão que usa… se estiver usando um traje hermeticamente fechado. Por isso, não pretende usá-lo da próxima vez. — Nesse caso, não haverá próxima vez. — Oh, mas Marlene insiste. Vai sair quando quiser. E sozinha. Considera-se culpada por ter permitido que saísse com ela. Diz que foi sorte ter alcançado você a tempo. Na verdade, tinha lágrimas nos olhos quando falou no que poderia ter acontecido com você. — Isso não a faz sentir-se insegura? — Não. Essa é a parte mais estranha. Marlene parece ter certeza de que você estava correndo perigo, de que qualquer pessoa em seu lugar estaria correndo perigo. Mas ela, não. Ela parece tão confiante, Siever, que eu poderia… — Sacudiu a cabeça e depois murmurou: — Simplesmente não sei o que fazer. — Marlene é uma moça confiante por natureza, Eugenia. Você sabe disso melhor do que eu. — Desta vez, é diferente. É como se soubesse que não podemos impedi-la. — Vou conversar com ela. Se vier com essa história de “Vocês não podem me impedir”, sabe o que vou fazer? Colocá-la no próximo vôo para Rotor. Estava querendo fazer-lhe a Vontade, mas depois do que aconteceu comigo, terei de tomar medidas drásticas. — Você não vai conseguir. — Por que não? Por causa de Pitt? — Simplesmente não vai conseguir. Genarr olhou para ela, surpreso, e depois deu um riso forçado. — Ora, vamos, não sou um boneco nas mãos de Marlene. Posso me sentir como um tio bonzinho, mas não tão bonzinho a ponto de permitir que se exponha ao perigo. Tudo tem um limite, e você vai ver que sei estabelecê-lo. — Fez uma pausa, e depois disse, em tom desanimado: — Parece que trocamos de lado, você e eu. Antes, era você que insistia em impedi-la e eu que dizia que era melhor fazer-lhe a vontade. Agora é o contrário. — É porque o incidente lá fora assustou você, e o que aconteceu depois assustou a mim. — Que foi que aconteceu depois, Eugenia? — Depois que ela voltou para o Domo, eu tentei estabelecer o limite. Disse para ela: “Mocinha, não fale de novo comigo nesse tom, ou, além de não poder sair do Domo, não poderá também sair deste quarto. Será trancada, amarrada se necessário, e voltará para Rotor no primeiro foguete.” Como pode ver, eu estava tão nervosa que cheguei a ameaçá-la. — E o que foi que ela fez? Tenho certeza de que não chorou. Na certa, rilhou os dentes e desafiou você. Certo? — Errado. Quando eu estava no meio da frase, comecei a tremer e não pude continuar. Senti uma náusea violenta. — Está dizendo que Marlene tem algum estranho poder hipnótico que nos impede de contrariá-la? Isso é impossível. Já tinha visto sua filha fazer alguma coisa parecida? — Não, claro que não. Nem estou vendo agora. Ela não teve nada a ver com isso. No momento em que comecei a passar mal, ficou assustada. Tentou me acudir. Se fosse a responsável, não agiria assim. Quando vocês dois estavam fora do Domo e Marlene começou a tirar o traje E, não estava nem olhando para você. Estava de costas para você. Eu estava observando e sei disso. De repente, você se deu conta de que estava paralisado, de que não podia fazer nada para impedi-la. E quando Marlene percebeu sua aflição, correu para ajudá-lo. Mais uma vez, a reação de Marlene desmente que tenha sido ela a responsável. — Então o que é que… — Ainda não terminei. Depois que a ameacei, ou melhor depois que tentei ameaçá-la e não consegui, não tive mais coragem de dizer nada que não fosse estritamente superficial, mas pode apostar que fiquei de olho nela. Uma certa hora, vi que estava conversando com um dos seus guardas… eles estão por toda parte. — Teoricamente, o Domo é um posto militar. Os guardas servem apenas para manter a ordem, ajudar em certas tarefas — Sim, eu sei — interrompeu Insigna, com ar de desprezo. — É a forma de Janus Pitt manter vocês todos sob observação e sob controle, mas não importa. Marlene e o guarda conversaram durante bastante tempo. Tive a impressão de que estavam discutindo. Depois que Marlene se afastou, fui falar com o guarda e perguntei-lhe sobre o que haviam conversado. Ele se mostrou relutante, mas consegui arrancar-lhe a verdade. Marlene queria uma espécie de passe que lhe permitisse entrar e sair do Domo à vontade. “Que foi que você respondeu?’, perguntei-lhe. “Que teria de ser assinado pelo Comandante, mas que eu faria o possível para ajudá-la’, disse ele. “Fiquei indignada. ‘Por que prometeu ajudá-la?’, perguntei. “Eu tinha que fazer alguma coisa, madame’, respondeu ele. ‘Cada vez que eu tentava dizer a ela que não podia fazer nada, parecia que eu ia desmaiar.’ — Está tentando me dizer que isto é uma coisa que Marlene faz inconscientemente, que qualquer um que tenta contrariá-la se sente mal, sem que Marlene se dê conta de que é ela a responsável? — Não, não é isso que estou querendo dizer. Não acho que minha filha esteja fazendo coisa alguma. Se isso fosse uma habilidade inconsciente de Marlene, já teria se manifestado em Rotor, o que não aconteceu. E não é toda vez que alguém a contraria. Ontem à noite, no jantar, Marlene quis repetir a sobremesa e eu disse: “Não, Marlene!” antes de me lembrar de que estava evitando contrariá-la. Ela não gostou nem um pouco, mas obedeceu, e não senti absolutamente nada. Acho que Marlene só não pode ser contrariada nas coisas ligadas a Eritro. — Qual a razão para isso, Eugenia? Parece que você tem alguma explicação em mente. Se eu fosse Marlene, leria seus pensamentos e saberia qual é a explicação, mas como não sou, vai ter que me contar. — Acho que Marlene não tem culpa nenhuma. O responsável é… é o próprio planeta. — o planeta? — Sim, Eritro! O planeta! Ele está controlando Marlene. Por que outra razão minha filha teria tanta certeza de que é imu ne à praga e de que não está correndo nenhum perigo aqui? Está controlando o resto de nós, também. Você começou a passar mal quando tentou contrariá-la. Eu, também. O guarda, também. Muitas pessoas passaram mal nos primeiros tempos do Domo, porque o planeta achou que estava sendo invadido e produziu a praga. Depois, quando achou que vocês não tinham mais intenção de sair do Domo, acalmou-se e a Praga desapareceu. Está vendo como tudo se encaixa? — Acha, então, que o planeta quer que Marlene saia do Domo? — É óbvio. — Para quê? — Não sei. Não disse que tinha todas as respostas. Estou apenas lhe contando as conclusões a que cheguei até agora. — Eugenia, você sabe muito bem que o planeta não pode fazer nada. Ele é uma massa inerte de rochas e metais. Está se deixando levar pelo misticismo. — Não estou, não. Siever, não se atreva a insinuar que não passo de uma mulher supersticiosa. Sou uma cientista competente e não há nada de místico na minha teoria. Quando falei no planeta, não estava me referindo às rochas e metais. Em minha opinião, existe uma forma de vida inteligente planeta. — Só se for invisível. Não encontramos nenhum sinal de vida multicelular, quanto mais inteligente. — O que nós sabemos realmente a respeito desde mundo? Ele já foi todo explorado? Genarr sacudiu a cabeça. — Eugenia, isso não passa de especulação. — É mesmo, Siever? Pense no assunto e me diga se consegue encontrar outra explicação. Estou lhe dizendo que a forma e vida que habita este planeta, seja qual for, não nos quer aqui. Quer apenas Marlene… por razões que não consigo imaginar — concluiu, com voz trêmula. VINTE E OITO DECOLAGEM Oficialmente, tinha um nome pomposo, mas era chamada apenas de Estação Quatro pelos poucos terráqueos que tinham ocasião de mencioná-la. O nome deixava claro que tinha havido outras três estações — nenhuma das quais estava em uso; na verdade, tinham sido canibalizadas. Havia também uma Estação Cinco que nunca havia sido concluída. Talvez a maioria da população da Terra nem tivesse conhecimento da existência da Estação Quatro, que girava lentamente em torno da Terra em uma órbita muito mais distante que a da Lua. As primeiras estações espaciais tinham sido as plataformas de lançamento usadas pela Terra para construir as primeiras colônias. Mais tarde, quando as próprias colônias tomaram a si a tarefa de construir outras colônias, a Estação Quatro passou a ser usada para os vôos da Terra para Marte. Entretanto apenas um vôo desse tipo foi suficiente para mostrar aos terráqueos que eles não estavam tão bem preparados para longas viagens espaciais quanto os habitantes das colônias, cujos mundos, afinal, não passavam de grandes espaçonaves. Daí por diante a Terra, com um suspiro de alivio, deixou os vôos a Marte por conta das colônias. Assim, a Estação Quatro tinha ficado praticamente abandonada; a Terra a mantinha apenas para mostrar que ainda possuía uma base fora da sua atmosfera, como um símbolo de que os habitantes das colônias não tinham o monopólio do espaço. Agora, porém, a Estação Quatro seria usada novamente. Uma imensa nave de carga estava se dirigindo para lá, levando com ela o boato de que a Terra faria outra tentativa — a primeira do século XXIII — para colocar um grupo de terráqueos em Marte. Alguns diziam que a intenção era apenas explorar a superfície do planeta; outros garantiam que a Terra pretendia fundar uma colônia em Marte, para concorrer com as poucas colônias que orbitavam o planeta; outros, enfim, achavam que os terráqueos usariam Marte como trampolim para construir uma base em um asteróide ainda não reclamado por nenhuma das colônias. Na verdade, o que a nave transportava no seu bojo era a Superluminal e a tripulação que a levaria para as estrelas. Embora tivesse passado oito anos sem sair da Terra, Tessa Wendel encarou com tranqüilidade a experiência de viajar no espaço, como era natural para alguém nascido nas colônias. Afinal, as espaçonaves se pareciam mais com colônias do que com a Terra. Pela mesma razão, Crile Fisher, embora já tivesse viajado muitas vezes no espaço, estava menos à vontade que Wendel. Daquela vez, alguma coisa além do espaço contribuía para a tensão a bordo da nave de carga. — Não agüento mais a espera, Tessa — comentou Fisher. — Levamos anos para chegar a este ponto, a Superluminal está totalmente pronta, e mesmo assim ainda temos que esperar. Wendel olhou para ele, pensativa. Não pretendia envolver-se tanto com Fisher. Gostaria de contar com momentos de sossego, para descansar o cérebro fatigado com os detalhes do projeto. Isso era que gostaria; a realidade era outra. Na verdade, encontrava-se irremediavelmente ligada a Fisher, tanto que os problemas dele tinham se tornado seus, também. Os anos de espera de Fisher certamente redundariam em nada, e Wendel se preocupava com o desespero que provavelmente se seguiria à decepção inevitável. Tentara jogar água fria nos seus sonhos, procurara fazê-lo ver que o esperado reencontro com a filha era uma possibilidade remota, mas sem sucesso. Durante o último ano, Fisher tinha ficado ainda mais otimista, por razões que Wendel desconhecia. Tessa estava satisfeita (e aliviada) por não ser a esposa que ocupava os pensamentos de Crile, e sim a filha. Para falar a verdade, não entendia bem como ele podia se sentir tão ligado a uma filha que conhecera apenas na infância, mas ele não oferecera nenhuma explicação, e ela não insistira no assunto. Que diferença fazia? Tinha certeza de que a filha de Crile não estava viva, de que nenhum dos habitantes de Rotor estava vivo. Se Rotor estivesse em órbita em torno da Estrela Vizinha, não passaria de um imenso túmulo abandonado no espaço, vagando para sempre… e quase impossível de ser localizado. Quando Crile Fisher se desse conta da dura realidade, precisaria de todo o seu apoio. — Só faltam dois meses, no máximo — disse Tessa, em tom jovial. — Para quem esperou tantos anos, dois meses não é nada. — É essa espera de anos que torna os dois meses insuportáveis — murmurou Fisher. — Conforme-se, Crile. O que não tem remédio, remediado está. O Congresso Global simplesmente não deixará que a gente viaje mais cedo. As colônias estão todas de olho em nós, e não podemos ter certeza de que engoliram aquela história de que nosso destino final é Marte. Na verdade, seria estranho se o fizessem, considerando o fato de que há muito tempo que a Terra não toma nenhuma iniciativa no espaço. Se não fizermos nada durante dois meses, vão achar que estamos com problemas — uma coisa que estará bem de acordo com o conceito que fazem de nós — e deixarão de prestar atenção. Fisher sacudiu a cabeça, irritado. — Quem se importa com eles? Vão levar no mínimo alguns anos para descobrir o segredo do vôo superluminal. A essa altura, a Terra já terá uma frota de naves superluminais e estará empenhada em conquistar a Galáxia! — Não tenha tanta certeza. É mais fácil copiar do que criar. E o governo da Terra, considerando o fraco desempenho comparativo do programa espacial do planeta depois que as colônias atingiram a maturidade, está obviamente ansioso para estabelecer uma prioridade incontestável, por razões psicológicas. — Ela deu de ombros. — Além disso, precisamos de tempo para executar alguns testes na Superluminal em condições de baixa gravidade. — Vocês nunca se cansam desses testes? — Não seja impaciente. Esta técnica é tão nova, tão diferente de tudo que já existia, que o número de testes que podemos fazer é praticamente ilimitado. Ainda não sabemos exatamente, por exemplo, como a entrada e saída do hiperespaço são afetadas por um campo gravitacional. Falando sério, Crile, não pode nos censurar por sermos cautelosos. Afinal de contas, há menos de dez anos, o vôo superluminal era considerado uma impossibilidade teórica. — Também se pode pecar por excesso de cautela. — É claro. Um dia, vou achar que já fizemos tudo que era razoável para assegurar o sucesso da missão, e considerar os testes como encerrados. Prometo a você, Crile, que não vou esperar mais do que o necessário. Não pretendo pecar por excesso de cautela. — Espero que não. Wendel olhou para ele, indecisa. Ela tinha que perguntar. — Sabe, Crile, há alguma coisa estranha com você. Nos últimos dois meses, vinha ficando cada vez mais impaciente. Pareceu se acalmar por uns dias, e depois ficou mais agitado do que nunca. Aconteceu alguma coisa que não sei? Fisher se acalmou instantaneamente. — Não aconteceu nada. O que poderia ter acontecido? Wendel teve a impressão de que ele tinha se acalmado depressa demais, de que estava tentando aparentar uma falsa normalidade. — Estou perguntando a você o que poderia ter acontecido. Tentei preveni-lo, Crile, de que as chances de encontrarmos Rotor são remotas. E mesmo que a colônia seja localizada, não é provável que sua… que os habitantes estejam vivos. Não falei a você sobre essa… possibilidade? — Muitas vezes. — Mesmo assim, você dá a impressão de que está a caminho de uma festa. Não bom alimentar falsas esperanças. A que se deve essa nova atitude? Andou conversando com uma pessoa otimista? Fisher enrubesceu. — Por que teria de falar com alguém? Por que não poderia chegar a uma conclusão independente? Só porque não entendo de física teórica não quer dizer que não seja capaz de raciocinar. — Não, Crile. Nunca achei que você fosse incapaz de raciocinar. Diga-me o que você pensa a respeito de Rotor. — Nada de muito profundo ou sutil. Apenas me ocorreu que não há nada no espaço vazio que constitua um perigo para a segurança de Rotor. É fácil dizer que não vamos encontrar nada a não ser uma carcaça vazia, mas nesse caso o que teria acabado com a população de Rotor? Desafio você a me apontar o responsável. Uma colisão? Inteligências alienígenas? — Crile, não posso lhe dizer o que aconteceu, mas acredito que o maior risco esteja na própria propulsão hiperespacial. É uma técnica muito delicada, Crile. Acredite. Não usa nem o espaço nem o hiperespaço de maneira constante, mas navega pela interface, oscilando de um lado para o outro por breves períodos, passando do espaço para o hiperespaço e de volta para o espaço várias vezes por minuto. Em uma viagem daqui até a Estrela Vizinha, pode ser necessário passar de um para o outro mais de um milhão de vezes. — E daí? — Daí que a transição é exatamente a parte mais perigosa da viagem. Não sei até que ponto os rotorianos conheciam a teoria do hiperespaço, mas é provável que não a dominassem totalmente, caso contrário teriam chegado ao vôo superluminal. No nosso projeto, que envolveu um estudo minucioso da teoria do hiperespaço, conseguimos determinar o efeito da passagem do espaço para o hiperespaço, e vice-versa, sobre os corpos sólidos. “Se um objeto é pontual, não sofre nenhum esforço mecânico durante a transição. No caso de um objeto de dimensões finitas, porém, como uma espaçonave, existe um certo período de tempo durante o qual parte do objeto se encontra no espaço e parte no hiperespaço. Isto dá origem a uma tensão mecânica, que depende do tamanho do objeto, de sua composição, da velocidade da transição e de outros fatores. Mesmo para um objeto do tamanho de Rotor, o perigo associado a uma única transição, ou mesmo a uma dúzia de transições, é tão pequeno que pode ser ignorado. “Durante a viagem da Superluminal até a Estrela Vizinha, teremos que fazer poucas transições, entre duas e dez. Assim, o vôo será seguro. Por outro lado, em um vôo que empregue propulsão hiperespacial, serão necessários milhões de transições, o que aumenta consideravelmente a probabilidade de que a tensão mecânica exceda o limite tolerável. Fisher parecia assustado. — Então acha que eles certamente se acidentaram? — Não, certamente, não. É uma questão de probabilidades. uma nave pode sofrer um milhão de transições, ou mesmo um bilhão, em que nada aconteça. Também pode ser destruída logo na primeira transição. As probabilidades, porém, aumentam rapidamente com o número de transições. “Minha desconfiança, portanto, é de que Rotor iniciou a viagem conhecendo muito pouco a respeito dos perigos de cada transição. Se estivessem mais bem informados, talvez nem tivessem partido. Há uma grande probabilidade de que tenham sofrido algum tipo de acidente durante a viagem. Por isso, ao chegarmos lá, é possível que encontremos uma carcaça vazia, ou que não encontremos nenhum vestígio de Rotor. — Também podemos encontrar uma colônia viva e funcionando — disse Fisher, em tom de desafio. — Concordo — disse Wendel. — Também podemos ser destruídos em nossa primeira transição e, por esse motivo, jamais chegarmos à Estrela Vizinha. É tudo uma questão de probabilidades; certeza, não temos nenhuma. Não se esqueça, porém, de que aqueles que pensam no assunto mas não conhecem a fundo a teoria do hiperespaço têm menos chance de chegar a conclusões corretas. Fisher se entregou a um silêncio profundo e claramente depressivo, enquanto Wendel o observava, preocupada. Tessa Wendel havia estranhado o ambiente da Estação Quatro. Era como se alguém tivesse construído uma pequena colônia, mas a houvesse equipado apenas para ser um laboratório, um observatório e uma plataforma de lançamento. Não havia plantações, nem casas, nem qualquer das outras instalações presentes nas colônias. A estação não dispunha nem mesmo de uma rotação que lhe proporcionas uma pseudogravidade apropriada. Pensando bem, a Estação Quatro lembrava mais uma espaçonave com acromegalia do que uma colônia. Era evidente que, embora pudesse ser permanentemente ocupada, contanto que recebesse um suprimento contínuo de alimentos, ar e água (havia um sistema de reciclagem, mas não era eficiente), ninguém conseguiria viver ali por muito tempo. Crile Fisher observou, ironicamente, que a Estação Quatro era como um satélite dos primórdios da Era Espacial que houvesse, por alguma razão, sobrevivido até o século XXIII. Sob um aspecto, porém, era única. Permitia uma visão panorâmica do sistema Terra-Lua. Das colônias que giravam em torno na Terra, era difícil ver os dois astros ao mesmo tempo. Da Estação Quatro, porém, a Terra e a Lua nunca estavam afastadas mais de quinze graus, e enquanto a Estação Quatro girava em torno do centro de gravidade do sistema (o que equivalia aproximadamente a girar em torno da Terra), as mudanças de posição e de fase dos dois mundos e as variações de tamanho aparente da Lua (dependendo se estava do mesmo lado da Terra que a Estação ou do lado oposto) constituíam um espetáculo deslumbrante. A luz do Sol era bloqueada automaticamente pela máquina Ecart (Wendel teve de perguntar para descobrir que o nome vinha de “Eclipse Artificial”) e a vista só era prejudicada quando o Sol se aproximava muito da Terra ou da Lua no céu da estação. Wendel traiu sua origem ao comentar que estava apreciando a visão do sistema Terra-Lua principalmente porque isso a fazia lembrar-se de que não estava mais na Terra. Foi o que disse a Fisher, que sorriu amarelo. Ele havia reparado que, antes de falar, Wendel olhara rapidamente para um lado e para o outro. — Estou vendo que não se importa de me dizer isso, embora eu seja um terráqueo e possa ficar ofendido. Mas não se preocupe. Não vou espalhar. — Confio em você, Crile. — Sorriu para ele. Fisher havia mudado bastante desde aquela conversa, pouco depois de chegarem à Estação Quatro. Estava meio tristonho, sim, mas antes isso do que aquela expectativa febril por algo que não aconteceria. — Acha que eles ainda se lembram de que você não nasceu na Terra? — perguntou Fisher. — Claro que se lembram. São tão preconceituosos como eu, e nunca me esqueço de que são terráqueos. — Você não se lembra de que sou terráqueo. — Isso porque para mim você é Crile e nada mais do que Crile. E para você eu sou Tessa. Ponto final. — Não se arrepende de haver desenvolvido o vôo superluminal para a Terra, em vez de fazê-lo para Adelia, sua colônia natal? — Acontece que não desenvolvi o vôo superluminal para a Terra, nem o teria feito para Adelia, em outras circunstâncias. Estava pensando apenas no meu interesse. Tinha um problema para resolver e consegui resolvê-lo; por isso, vou passar para a história como a inventora do vôo superluminal. Pode parecer pretensioso, mas acho que estou fazendo isso pela raça humana, também. Não importa muito em que mundo foi feita a descoberta. A propulsão hiperespacial foi inventada em Rotor, mas hoje é conhecida em todas as colônias, e também na Terra. Daqui a algum tempo, todos vão ter o vôo superluminal. Sempre que ocorre um avanço tecnológico, toda a raça humana acaba por ser beneficiada. — No caso em questão, a necessidade da Terra é mais urgente. — Está pensando na aproximação da Estrela Vizinha, não é? As colônias podem deixar o Sistema Solar com relativa facilidade, enquanto a Terra terá que evacuar sua população. Bem, esse é um problema para os governantes da Terra. Forneci-lhes os meios para a evacuação; o resto é com eles. — Ouvi dizer que vamos partir amanhã — disse Crile. — É verdade. Finalmente. Vão filmar a partida de todos os ângulos. Ë difícil saber, porém, quando estarão dispostos a revelar o projeto para a população em geral e para as colônias. — Provavelmente, vão aguardar o nosso regresso. Não haveria sentido em anunciar nossa partida antes de terem certeza da nossa volta. E vai ser uma espera angustiante, porque não terão meios de se comunicar conosco. Quanto os astronautas pisaram na Lua pela primeira vez, estavam o tempo todo em contato com a Terra. — É verdade — concordou Wendel —, mas quando Colombo atravessou o Atlântico, os reis da Espanha tiveram que esperar sete meses para saber se a missão tinha sido bem-sucedida. — Hoje em dia, a Terra tem muito mais em jogo do que os reis da Espanha há sete séculos e meio. E realmente uma pena que não tenhamos desenvolvido as comunicações superluminais, da mesma forma como desenvolvemos os vôos superluminais. — Também acho. Eu e Koropatski, que vive me pressionando para trabalhar em um sistema de telecomunicações. Entretanto, como expliquei a ele, não sou uma máquina maravilhosa, com poderes sobrenaturais, capaz de atender instantaneamente a todos os pedidos. Uma coisa é fazer um objeto viajar no hiperespaço e outra é fazer uma onda viajar no hiperespaço. Mesmo no espaço comum, a massa e a radiação seguem leis tão diferentes que Maxwell só chegou às equações do eletromagnetismo mais de dois séculos depois de Newton haver formulado as leis da mecânica. No hiperespaço a massa e a radiação também obedecem a leis diferentes, e até agora ainda estamos tentando resolver as equações para a radiação. Um dia ainda teremos comunicações superluminais, mas é difícil dizer quando esse dia vai chegar. — É uma pena — disse Fisher, pensativo. — Talvez, sem as comunicações superluminais, os vôos superluminais em grande escala sejam impraticáveis. — Por quê? — A falta de comunicações rompe o cordão umbilical. As colônias poderiam sobreviver longe da Terra, longe do resto da humanidade? Wendel franziu a testa. — Que linha nova de filosofia é esta? — Apenas uma idéia. Tessa, como você nasceu em uma colônia, pode não ter consciência de que a vida nas colônias não é natural para os seres humanos. — Verdade? Sempre me senti à vontade em Adelia. — Isso porque você não estava realmente vivendo em uma colônia. Estava vivendo em um grande sistema de colônias, entre as quais existia um grande planeta habitado por bilhões de pessoas. Teriam os rotorianos, depois de chegarem à Estrela Vizinha, se sentido muito confinados vivendo em uma colônia? Nesse caso, deveriam ter voltado para o Sistema Solar, o que não fizeram. Teriam eles encontrado um planeta para morar? — Um planeta habitável, girando em torno de uma anã vermelha? É extremamente improvável. — A natureza tem o mau hábito de derrubar todas as nossas supostas certezas. Imagine que exista um planeta habitável no sistema da Estrela Vizinha. Não acha que deve ser minuciosa mente estudado? — Ah, estou vendo aonde quer chegar. Você acha que podemos encontrar algum tipo de planeta nas vizinhanças da Estrela Vizinha Teme que depois de uma análise superficial, feita à distância, a gente chegue à conclusão de que é desabitado e decida seguir viagem. Quer que a gente desça no planeta e faça uma busca muito mais cuidadosa, o que aumentaria a probabilidade de encontrar sua filha. E se o nosso detector neurônico não encontrar nenhum sinal de vida inteligente nas proximidades da Estrela Vizinha? Acha que mesmo assim devemos vasculhar os planetas? Fisher hesitou. — Acho. Se houver qualquer indício de que possam ser habitáveis, temos obrigação de investigá-los. Temos que descobrir o máximo possível a respeito de um planeta desse tipo. A Terra terá que ser evacuada no futuro próximo, e ainda não sabemos para onde levar nossa população. E natural que você não se preocupe com o assunto, já que as colônias podem simplesmente mu dar de sistema, sem necessidade de… — Crile! Pare de me tratar como uma inimiga! Não comece a pensar em mim como alguém das colônias. Sou Tessa. Se houver um planeta, vamos investigá-lo sem pressa. Eu prometo a você. Mas se o planeta estiver ocupado pelos rotorianos, então… bem, você passou alguns anos em Rotor, Crile. Deve conhecer Janus Pitt. — Apenas de nome. Não cheguei a conhecê-lo pessoalmente, mas minha mu… minha ex-mulher trabalhou com ele. De acordo com Eugenia, era um homem muito capaz, muito inteligente, muito decidido. — Muito decidido. Ouvimos falar dele nas outras colônias, também. E a maioria não simpatizava com Pitt. Se pretendia esconder Rotor do resto da humanidade, não podia escolher um lugar melhor que a Estrela Vizinha, já que estava próxima e sua existência era desconhecida fora de Rotor. E se, por alguma razão, queria um sistema só para ele, detestaria a idéia de ser seguido por outras colônias. Se encontrou um planeta habitável, maior a razão para não permitir a presença de intrusos — Aonde está querendo chegar? — perguntou Fisher, com ar preocupado, como se soubesse aonde Wendel estava querendo chegar — Nossa viagem começa amanhã, Em pouco tempo, estaremos chegando à Estrela Vizinha. Se ela tiver um planeta, como você acha que tem, e ele estiver ocupado pelos rotorianos, não vai ser apenas uma questão de pousarmos na superfície, dizendo: “Olá! Surpresa!” Não, Crile, posso apostar que, assim que nos vir, Pitt vai nos oferecer sua versão de boas-vindas e tentar fazer picadinho de nós! VINTE E NOVE INIMIGO Ranay D’Aubisson, como todas as pessoas que trabalhavam no Domo, visitava Rotor de tempos em tempos. Era necessário, para matar as saudades de casa, para rever os amigos, para recuperar as forças. Daquela vez, porém, D’Aubisson tinha “subido” (o termo Popular para designar a viagem de Eritro a Rotor) antes da data prevista. Na verdade, havia sido chamada pelo Comissário Pitt. Estava sentada no escritório de Janus Pitt, observando com olhos treinados os pequenos sinais de velhice que se haviam acumulado desde a última vez que o vira, alguns anos antes. Sua voz, porem, continuava firme, os olhos penetrantes, e não observou nenhum declínio na agilidade mental. — Recebi seu relatório a respeito do incidente fora do Domo — disse Pitt. — Aprecio a forma cautelosa como descreveu a situação. Agora, porém, em particular e extra-oficialmente, quero que me diga exatamente o que se passou com Genarr. Esta sala está protegida. Pode falar livremente. — Infelizmente, tudo que sei está no meu relatório — disse D’Aubisson, secamente. — Não temos a menor idéia do que aconteceu ao Comandante Genarr. A sonda cerebral revelou algumas alterações, mas eram muito pequenas e não se pareciam com nada que tivéssemos observado anteriormente. Além disso, eram reversíveis, pois desapareceram em poucos dias. — Mas aconteceu alguma coisa com ele? — Oh, sim, essa é a questão. Sabemos que aconteceu alguma coisa, mas não sabemos o quê. — Alguma forma da Praga, talvez? — Não observamos nenhum dos sintomas conhecidos da Praga. — Nos primeiros dias da Praga, as sondas cerebrais eram muito pouco precisas. Vocês não teriam observado os sinais que podem ver hoje. De modo que a possibilidade de que se trate de uma forma branda da Praga não pode ser excluída totalmente, não acha? — Concordo com o senhor, mas, por outro lado, não há nenhum indício de que isso seja verdade. Seja como for, Genarr está totalmente recuperado. — Pode parecer que está recuperado, mas não temos maneira de saber se terá uma recaída. — Também não temos nenhuma razão para supor que ele terá uma recaída. O rosto do Comissário refletiu uma leve impaciência. — Está fazendo um jogo de palavras, D’Aubisson. Sabe perfeitamente bem que Genarr tem um cargo muito importante. A situação no Domo é sempre precária, já que não sabemos quando a Praga atacará de novo. A vantagem de Genarr era que ele parecia ser imune à Praga, mas agora a situação é diferente. Alguma coisa aconteceu, e devemos estar preparados para substituí-lo. — A decisão é sua, Comissário, mas, como médica, não vejo necessidade de que Genarr seja substituído. — Mas vai mantê-lo sob observação e vai se lembrar do que falei a respeito da necessidade de substituir Genarr. — Considero isso como parte dos meus deveres como médica. — Ótimo. Especialmente porque, se Genarr não puder continuar no cargo, estava pensando no seu nome para comandante. — No meu nome? — Um breve lampejo de satisfação apareceu no rosto de D’Aubisson antes que ela conseguisse se controlar. — Sim, por que não? Todos sabem que não morro de entusiasmo pela possibilidade de colonizarmos Eritro. Acho melhor conservarmos nossa mobilidade, em vez de nos escravizarmos novamente a um grande planeta. Entretanto, seria interessante colonizarmos Eritro, não como um local de moradia, mas sim como uma imensa fonte de recursos… mais ou menos como fizemos com a Lua no velho Sistema Solar. Mas não podemos fazer isso com a Praga nos ameaçando, certo? — Não, não podemos, Comissário. — Então nossa verdadeira missão, para começar, é resolver esse problema. Não apareceram novos casos da Praga, e nós nos acomodamos. Entretanto, este último incidente mostra que o perigo ainda está presente Não sabemos se o que aconteceu a Genarr tem algo a ver com a Praga, mas sabemos que alguma coisa aconteceu a Genarr, e quero que o assunto receba prioridade absoluta. A senhora seria a pessoa mais indicada para chefiar esse projeto. — Teria muito prazer em aceitar a responsabilidade. Só teria que fazer, praticamente, o que estou fazendo no momento, mas com maior autoridade. Entretanto, não sei se estou qualificada para ser a comandante do Domo de Eritro. — Como a senhora disse, a decisão é minha. Presumo que não recusaria o cargo, se lhe fosse oferecido. — Não, Comissário. Eu me sentiria muito honrada. — Tenho certeza — disse Pitt, secamente. — E o que aconteceu com a menina? Por um momento, D’Aubisson pareceu surpresa com a súbita mudança de assunto. — Com a menina? — repetiu ela, quase gaguejando. — Sim, com a menina que estava fora do Domo com Genarr, a mesma que removeu o traje protetor. — Marlene Fisher? — Essa mesmo. Que aconteceu com ela? D’Aubisson hesitou. — Nada, Comissário. — É o que diz o seu relatório. Agora, porém, eu estou perguntando. Nada? — Nada que pudesse ser detectado em exames clínicos. — Está dizendo que enquanto Genarr, usando um traje E, passou mal na superfície de Eritro, a menina, essa tal de Marlene Fisher, que não estava usando um traje E, não foi afetada? D’Aubisson deu de ombros. — Parece que foi isso mesmo que aconteceu. — Não acha estranho? — Ela é uma mocinha estranha. Seus padrões cerebrais… — Sei como são seus padrões cerebrais. Sei também que ela tem certos dons curiosos. Já observou isso? — Oh, sim, muitas vezes. — E que acha dos dons da menina? Acha que ela é capaz de ler pensamentos, por exemplo? — Não, Comissário. Isso é impossível. A telepatia não tem nenhuma base científica. Na verdade, seria menos perigoso se ela lesse pensamentos, porque eles podem ser controlados. — Qual o seu dom que é mais perigoso do que ler pensamentos? — Ela é capaz de ler a linguagem corporal das outras pessoas, uma coisa impossível de controlar. — Disse isso com um toque de irritação que não passou despercebido a Pitt. — Já teve alguma experiência pessoal nesse sentido? — Tive — respondeu D’Aubisson, de cara feia. — É difícil chegar perto da mocinha sem experimentar algumas das inconveniências da sua percepção. — Está bem, mas o que aconteceu? — Nada muito importante, mas me aborreceu. — D’Aubisson corou e, por um momento, apertou os lábios, como se estivesse pensando em desafiar o interrogador. Mas esse momento passou. Disse, quase sussurrando: “Depois que examinei o Comandante Genarr, Marlene me perguntou como ele estava. Disse a ela que não parecia haver nada de sério e que ele provavelmente estaria recuperado em pouco tempo. Ela me perguntou: ‘Por que isso deixou você desapontada?’ “Fiquei muito surpresa e protestei: ‘Não estou desapontada. Estou satisfeita!’ “Ela insistiu: ‘Não, a senhora está desapontada. Posso ver na sua expressão. E está impaciente.’ “Embora já tivesse ouvido falar das esquisitices da mocinha, era a primeira vez que eu era exposta a esse tipo de coisa. Minha primeira reação foi protestar: ‘Por que estaria impaciente? “Ela olhou para mim, muito séria, com aqueles olhos enormes, e disse: ‘Tem alguma coisa a ver com o tio Siever. Acho que… — Tio Siever? Eles são parentes? — interrompeu-a Pitt. — Não. Acho que é apenas uma forma afetuosa de chamá-lo Ela disse: ‘Tem alguma coisa a ver com o tio Siever. Acho que a senhora quer substituí-lo no cargo de Comandante do Domo. “Disse isso e foi embora. — Como se sentiu quando ela disse isso? — Fiquei furiosa, naturalmente. — Porque estava acusando a senhora injustamente? Ou porque estava certa? — Bem, de certa forma… — Não, não. Não tergiverse, doutora. Ela estava certa ou errada? Tinha ficado mesmo desapontada com a recuperação de Genarr, ou a menina estava imaginando coisas? As palavras pareceram sair dos lábios de D’Aubisson contra a vontade dela. — Ela estava certa — declarou, olhando para Pitt com ar de desafio. — Sou humana. Tenho meus impulsos. O senhor mesmo acabou de dizer que estava pensando em me indicar para o cargo, o que mostra que me considera em condições de ocupá-lo. — Seja como for, acho que a senhora foi caluniada — disse Pitt, sem nenhum sinal de humor. — Mas pense numa coisa. Aqui está esta jovem, que se comporta de forma estranha, que apresenta um padrão cerebral fora do comum… e que, além disso, parece ser imune à Praga. Deve haver alguma relação entre o seu padrão cerebral e a resistência à Praga. Não seria um bom ponto de partida para estudarmos a doença? — Não sei. Ë possível. — Não devíamos investigar a possibilidade? — Talvez, mas como? — Vamos expô-la à influência de Eritro o máximo possível — disse Pitt, calmamente. — Para isso, bastaria fazer a vontade dela — disse D’Aubisson, com ar pensativo. — E tenho certeza de que o Comandante Genarr estaria de acordo. — Ótimo. Então a senhora, como médica, dará a autorização final. — Compreendo. E se a mocinha pegar a Praga? — Não devemos nos esquecer de que a solução do problema é mais importante que o bem-estar de um individuo. Temos um mundo para conquistar, e para isso talvez seja necessário pagar um preço. — E se o sacrifício de Marlene não nos ajudar a vencer a Praga? — É um risco que teremos de correr. Afinal de contas, é possível que ela seja realmente imune e que essa imunidade, depois de bem estudada, nos forneça os meios para compreender a Praga. Nesse caso, todos sairão ganhando. Só mais tarde, depois que D’Aubisson foi embora, que Pitt se permitiu pensar em Marlene Fisher como sua inimiga declarada. A verdadeira vitória seria se Marlene perdesse a razão e a Praga continuasse como um mistério insolúvel. Ao mesmo tempo, ficaria livre de uma mocinha inconveniente, capaz de gerar, no futuro, outros como ela; e de um mundo inconveniente, capaz, no futuro, de gerar uma população tão indesejável, tão dependente e tão imóvel quanto havia sido a população da Terra. Os três estavam sentados juntos no Domo de Eritro: Siever Genarr atento, Eugenia Insigna preocupada e Marlene Fisher impaciente. Insigna disse: — Não se esqueça, Marlene, nada de olhar para Nêmesis. Sei que foi prevenida a respeito do infravermelho, mas a verdade é que Nêmesis também está sujeita a erupções. De vez em quando, há uma grande explosão na superfície, acompanhada por um lampejo de luz branca. Dura apenas um minuto ou dois, mas pode ser suficientemente intenso para queimar a retina. E a gente nunca sabe quando vai acontecer. — Os astrônomos não podem fazer uma previsão? — perguntou Genarr. — Ainda não. É um dos muitos aspectos caóticos da natureza. Não conhecemos muito bem os mecanismos responsáveis pela turbulência estelar e alguns cientistas acreditam que nunca serão conhecidos perfeitamente. São simplesmente complexos demais. — Interessante — observou Genarr. — Não que as erupções não tenham seu aspecto positivo. Elas são responsáveis por três por cento da energia que chega a Eritro. — Não parece muito. — Mas é. Sem as erupções, Eritro seria um mundo gelado. Por outro lado, as erupções causam problemas em Rotor, que tem de ajustar rapidamente os coletores de energia solar sempre que há uma erupção, além de reforçar a blindagem de partículas. Enquanto os dois falavam, Marlene ficava olhando de um para o outro. Afinal, interveio, impaciente: — Por quanto tempo vocês vão continuar? É evidente que estão fazendo isso só para me manter aqui sentada. — Para onde pretende ir, quando estiver fora do Domo? — perguntou Insigna. — Não sei ainda. Provavelmente, vou até o regato. — Para quê? — Porque é interessante. Água correndo livremente na superfície. Você não pode ver as extremidades, e sabe que a água não está sendo reciclada. — Está, sim — protestou Insigna. — Pelo calor de Nêmesis. — Isso não conta. Quero dizer que não está sendo reciclada artificialmente. Além disso, acho aquele regato bonito de se ver. — Não vá beber a água — recomendou Insigna. — Não pretendo beber. Posso passar uma hora sem beber água. Se ficar com fome, com sede ou acontecer qualquer outra coisa, voltarei logo para o Domo. Você está se preocupando à toa. Genarr sorriu. — Suponho que você está pensando em reciclar tudo aqui no Domo. — Claro. Não é o que qualquer um faria? O sorriso de Genarr aumentou. — Sabe, Eugenia, estou convencido de que a vida nas colônias afetou os seres humanos de forma permanente. A necessidade de reciclar as matérias-primas se tornou uma segunda natureza. Na Terra, jogávamos tudo fora, supondo que as matérias-primas seriam recicladas naturalmente, o que, é claro, às vezes não ocorria. — Genarr, você é um sonhador — disse Insigna. — Pode ser que os seres humanos aprendam bons hábitos sob pressão, mas basta aliviar a pressão que os maus hábitos voltam num instante. É mais fácil descer um morro do que subi-lo. Isso é chamado de segunda lei da termodinâmica. Se um dia colonizarmos Eritro, aposto que em pouco tempo ficará tão poluído quanto a Terra. — Isso não vai acontecer — disse Marlene. — Por que não? — perguntou Genarr, curioso. — Porque não — respondeu Marlene, com impaciência. — Agora posso ir? Genarr olhou para Insigna e disse: — É melhor deixá-la ir, Eugenia. Não podemos mantê-la aqui para sempre. Além disso, Ranay D’Aubisson, que acaba de voltar de Rotor, examinou todos os registros passados e me disse ontem que os padrões cerebrais de Marlene parecem tão estáveis que, em sua opinião, não corre perigo algum em Eritro. Marlene, que estava se dirigindo para a porta, fez meia-volta e disse: — A propósito, tio Siever, eu já ia me esquecendo. Tome cuidado com a Dra. D’Aubisson. — Por quê? Ela é uma excelente neurofísica. — Não foi isso que eu quis dizer. Ela ficou satisfeita quando o senhor passou mal lá fora e desapontada quando melhorou. — Por que está dizendo isso? — perguntou Insigna, instintivamente. — Porque eu sei. — Não compreendo. Siever, você não se dá bem com D’Aubisson? — Pelo contrário. Sempre nos demos muito bem. Nunca houve nenhum problema entre nós. Mas se Marlene está dizendo… — Marlene não pode estar enganada? — Não estou, não — protestou Marlene. — Acredito em você, Marlene — disse Genarr. Depois, voltando-se para Insigna: — D’Aubisson é uma mulher ambiciosa. Se acontecer alguma coisa comigo, provavelmente será escolhida para me suceder. Tem uma grande experiência aqui em Eritro e é certamente a pessoa mais indicada para lidar com a Praga no caso de um novo surto. Além disso, é mais velha que eu e pode achar que não tem muito tempo para perder. Não posso recriminá-la por estar ansiosa para assumir o cargo e sentir novas esperanças quando fiquei doente. É provável que não tenha nem consciência desses sentimentos. — Tem, sim — insistiu Marlene, de cara feia. — Ela sabe muito bem o que quer. Tome cuidado, tio Siever. — Está bem, Marlene. Está pronta para ir? — Claro que estou pronta. — Então vou com você até a comporta. Acompanhe-nos, Eugenia, e não faça uma cara tão triste. Foi assim que Marlene pisou na superfície de Eritro, sozinha e desprotegida, pela primeira vez. Pela hora da Terra, eram 21:30 de 15 de janeiro de 2237. Pela hora de Eritro, era de manhã. TRINTA TRANSIÇÃO Crile Fisher tentou controlar-se e manter a mesma expressão calma que os outros estavam usando no momento. Não sabia onde estava Tessa Wendel. Não podia estar longe, já que a Superluminal era relativamente pequena, embora fosse dividida de tal modo que uma pessoa em um dos compartimentos não podia ver o interior dos outros compartimentos. Os outros três membros da tripulação não representavam muita coisa para Fisher. Tinham suas tarefas para cumprir e ponto final. Fisher era o único que não tinha nada específico para fazer, exceto talvez tomar cuidado para não atrapalhar o trabalho dos outros. Olhou para os outros três (dois homens e uma mulher) de maneira quase furtiva. De vez em quando conversava com eles. Eram todos jovens. O mais velho era Chao-Li Wu, que tinha trinta e oito anos e era um hiperespacialista. Depois vinham Henry Jarlow, de trinta e cinco, e Merry Blankowitz, a caçula do grupo, com vinte e sete anos e a tinta ainda fresca no diploma de doutorado. Wendel, com cinqüenta e cinco, era idosa comparada com elas, mas tinha sido a inventora, a projetista, a semideusa do vôo. Fisher era a nota discordante. Estava para fazer cinqüenta anos e não tinha formação especializada. Nem a idade nem o conhecimento lhe davam o direito de estar a bordo. Entretanto, havia morado em Rotor. Isso era importante. Wendel queria que Fisher viajasse com ela, o que era ainda mais importante. Tanayama e Koropatski concordavam com Wendel, o que era o mais importante de tudo. A nave se deslocava lentamente no espaço. Fisher sabia disso, embora não houvesse nenhuma indicação visível. Podia sentir com os tentáculos dos intestinos… isso se os intestinos tinham tentáculos. Pensou consigo mesmo: estive mais tempo no espaço que todos eles juntos, muito mais vezes em muito mais naves. Posso dizer que a nave não é nada elegante só pela maneira como estamos voando. Eles não podem. A Superluminal não podia ser elegante. Os motores normais, usados para impulsionar as naves comuns, eram menores e mais compactos na Superluminal. Tinham que ser, pois uma boa parte da nave tinha sido destinada aos motores hiperespaciais. Era como um pássaro marinho que caminhasse desajeitada- mente em terra porque havia sido projetado para a água. De repente, Wendel apareceu. O cabelo estava despenteado e o rosto coberto de suor. — Está tudo bem, Tessa? — perguntou Fisher. — Oh, sim, perfeitamente — respondeu Wendel, apoiando a cabeça em uma das convenientes depressões na parede (muito úteis, considerando o fato de que a pseudogravidade a bordo era bastante reduzida). — Nenhum problema. — Quando vamos entrar no hiperespaço? — Daqui a algumas horas. Queremos que, no momento do salto, as fontes gravitacionais produzam uma distorção exatamente igual à calculada. — Para que o efeito dessa distorção possa ser compensado? — Exatamente. — Isso não me parece muito prático. E se você não souber a localização de todas as estrelas próximas? E se estiver com pressa e não tiver tempo de calcular todas as distorções gravitacionais? Wendel olhou para Fisher e sorriu. — Você nunca me perguntou nada parecido. Por que está perguntando agora? — Nunca participei de um vôo hiperespacial. Nas condições atuais, a questão me parece mais importante, você entende? — Esta e muitas outras questões semelhantes são muito importantes para mim há vários anos. Seja bem-vindo ao clube. — Está bem, mas responda à minha pergunta. — Com muito prazer. Em primeiro lugar, existem aparelhos capazes de medir o campo gravitacional (tanto a parte escalar quanto a tensorial) em qualquer ponto do espaço, mesmo que você não conheça a localização das massas próximas. O resultado não é tão preciso quanto seria se você calculasse o campo a partir das coordenadas das massas, mas se você está com pressa, o método pode ser perfeitamente satisfatório. Se você estiver com mais pressa ainda, e se encontrar em uma região do espaço em que a gravitação é fraca, pode ignorá-la totalmente. O máximo que vai acontecer é o equivalente a uma sacudidela durante a passagem para o hiperespaço… como se você estivesse entrando em casa e tropeçasse na soleira da porta. Se isso puder ser evitado, ótimo, mas não será o fim do mundo. Naturalmente, no nosso primeiro ponto de transição, vamos fazer o possível para que as coisas corram suavemente… quando mais não seja, para nossa tranqüilidade de espírito. — Que acontece se você está com pressa, imagina que a gravitação é fraca, mas na verdade ela é muito mais forte do que você pensava? — Espero que isso nunca venha a acontecer. — Você falou que qualquer transição envolve esforços mecânicos. Isso quer dizer que nossa primeira transição pode ser fatal, mesmo que todos os efeitos da gravidade sejam levados em conta. — Pode ser, mas a probabilidade de que ocorra um acidente grave em uma dada transição é extremamente pequena. — Mesmo que não ocorra um acidente grave, a transição não pode ser desagradável? — Essa pergunta é difícil de responder, já que envolve uma avaliação subjetiva. Entenda que não há nenhuma a aceleração no processo. Na propulsão hiperespacial, uma nave tem que chegar várias vezes até a velocidade da luz, ou mesmo a uma velocidade um pouco maior, usando um campo hiperespacial de baixa energia. É uma técnica de baixa eficiência que envolve altas velocidades, riscos elevados e, francamente, não sei que tipo de desconforto. “No nossO vôo superluminal, que utiliza um campo hiperespacial de alta energia, passamos pela transição a uma velocidade relativamente baixa. Podemos estar a mil quilômetros por segundo em um momento, e no momento seguinte estaremos a um bilhão de quilômetros por segundo, sem que haja aceleração alguma. E como não há aceleração, não sentimos nada. — Como pode não haver aceleração se a velocidade aumenta um milhão de vezes em apenas um instante? — Porque a transição é matematicamente equivalente a uma aceleração. Entretanto, nosso corpo é sensível à aceleração, mas não à transição. — Como é que você sabe? — Já enviamos animais pelo hiperespaço de um lugar para outro. Eles passaram no hiperespaço apenas uma fração de microssegundo, mas era com a transição que estávamos preocupados, e não com o tempo de permanência no hiperespaço. — Que aconteceu? — Nada que pudéssemos detectar. Quando chegaram ao ponto de recepção, não podiam nos contar o que havia acontecido, naturalmente, mas estavam calmos e em perfeita saúde. Era evidente que as experiências não lhes havia causado qualquer tipo de choque. Fizemos isso com dezenas de animais de várias espécies. Chegamos a testar com macacos, todos os quais sobrevive ram em perfeito estado… com uma única exceção. — Ah! Que aconteceu nesse caso? — O animal apareceu morto e mutilado, mas a causa foi um erro na programação. Uma coisa parecida pode acontecer conosco. Não é provável, mas pode acontecer. Seria o equivalente a tropeçar na soleira de uma porta, cair e quebrar o pescoço. Já houve gente que morreu assim, mas ninguém pensa nisso toda vez que passa por uma porta. Está bem? — Acho que não tenho escolha — disse Fisher, de cara feia. — Está bem. Duas horas e vinte e sete minutos depois a nave entrou no hiperespaço, sem que nenhum dos tripulante tivesse consciência disso, e começou o primeiro vôo superluminal da história da humanidade. Pela hora da Terra, a transição ocorreu às 21:20 de 15 de janeiro de 2237. TRINTA E UM NOME Silêncio! Marlene estava adorando o silêncio… mais ainda porque podia rompê-lo na hora que quisesse. Parou para pegar uma pedra e atirá-la contra um rochedo. Ela fez um ruído seco antes de cair no chão. Tendo deixado o Domo com o mesmo tipo de roupa que usaria em Rotor, ela se sentia perfeitamente à vontade. Logo depois de sair do Domo, havia caminhado em linha reta na direção do regato. As últimas palavras da mãe tinham sido ditas em tom suplicante: “Por favor, Marlene, lembre-se de que você prometeu que não se afastaria muito do Domo.” Ela havia sorrido para a mãe, mas sem prestar atenção. Talvez permanecesse nas proximidades do Domo, talvez não. Não pretendia deixar que tolhessem a sua liberdade, fossem quais fossem as promessas que tinha sido forçada a fazer para manter a paz. Afinal estava levando um transmissor-receptor de rádio. A qualquer momento, poderiam localizá-la sem dificuldade. Ela própria podia usar o receptor para descobrir em que direção ficava o Domo. Se sofresse algum acidente (se levasse um tombo, por exemplo, e se machucasse, o socorro não demoraria a chegar. Se fosse atingida por um meteorito… bem, nesse caso não haveria nada que alguém pudesse fazer para salvá-la, mesmo que estivesse perto do Domo. A lembrança incômoda dos meteoritos não impediu que se sentisse perfeitamente em paz na superfície de Eritro. Rotor era muito barulhento. Onde quer que estivesse, seu ouvido estava sempre sendo bombardeado por ondas sonoras. Devia ser ainda pior na Terra, com seus oito bilhões de seres humanos, trilhões de animais, trovões e tempestades. Uma vez tentara ouvir uma gravação chamada “Barulhos da Terra’ mas não agüentara mais que alguns segundos. Ali em Eritro, porém, havia um silêncio maravilhoso. Marlene chegou ao regato, onde a água corria com um suave rumor. Pegou uma pedra irregular e jogou-a na água, onde mergulhou com estrépito. Os ruídos não eram proibidos em Eritro; eram simplesmente distribuídos como adornos ocasionais que ser viam para tornar o silêncio ainda mais precioso. Pisou com força no barro macio à beira do regato. Ouviu um ruído abafado e viu a vaga impressão de uma pegada. Curvou-se, pegou um pouco de água nas mãos em concha e jogou-a no solo à sua frente. A terra ficou vermelha nos pontos onde tinha sido molhada, contrastando com o rosa em torno. Acrescentou mais água e finalmente colocou o pé direito no meio da mancha escura, fazendo força para baixo. Quando levantou o pé, havia uma pegada bem nítida. Havia várias pedras espalhadas no leito do regato, e ela as usou como ponto de apoio para atravessar a correnteza. Chegando do outro lado, Marlene continuou a andar com passos rápidos, balançando os braços e inspirando profundamente. Sabia que o teor de oxigênio no ar era um pouco menor do que em Rotor. Se corresse, logo ficaria cansada, mas não estava com vontade de correr. Se corresse, usaria mais depressa o seu mundo. Queria saboreá-lo! Olhou para trás e constatou que o Domo ainda estava visível, especialmente a cúpula que abrigava os instrumentos astronômicos. Aquilo a deixou irritada. Queria estar suficientemente distante para poder olhar em volta e ver o horizonte como um círculo perfeito (embora irregular), sem nenhum sinal de civilização, exceto ela própria. (Será que devo chamar o Domo? Avisar à mamãe que vou me afastar um pouco? Não, eles vão tentar me impedir. É melhor ignorá-los.) Os olhos de Marlene estavam se acostumando à cor rosada de Nêmesis e da paisagem que a cercava. Não era só cor-de-rosa; eram muitos matizes, claros e escuros, vermelhos e alaranjados quase amarelos em alguns lugares. Com o tempo, tornar-se-ia um paleta completa de cores para os seus sentidos mais aguçados, tão variadas quanto em Rotor, só que muito mais repousantes. Que aconteceria se um dia as pessoas se estabelecessem em Eritro, introduzissem outras formas de vida, construíssem cidades? Estragariam o planeta? Ou teriam aprendido com a Terra e agiriam de forma diferente, tomando aquele planeta virgem e transformando-o em algo mais próximos dos seus ideais? Dos ideais de quem? Aquele era o problema. Pessoas diferentes têm idéias diferentes, objetivos diferentes, e muitas vezes estão dispostas a brigar para defender suas metas irreconciliáveis. Seria melhor deixar Eritro vazio? Seria certo, quando tanta gente poderia desfrutá-lo? Marlene sabia muito bem que ela não queria abrir mão daquele mundo maravilhoso. Não sabia por que, mas se sentia muito mais em casa ali do que em Rotor. Seria alguma memória atávica da Terra? A necessidade de um mundo vasto, de largos horizontes, estaria impressa nos seus genes, uma necessidade que uma pequena cidade artificial, girando no espaço, era incapaz de satisfazer? Como seria possível? A única semelhança entre a Terra e Eritro era o tamanho. E se a Terra estava nos seus genes, por que não estaria nos genes de todos os seres humanos? Tinha que haver alguma explicação. Marlene sacudiu a cabeça, como se estivesse tentando pôr as idéias em ordem, e girou várias vezes em torno de si mesma. Era estranho que Eritro não parecesse um mundo estéril. Em Rotor, era possível ver plantações de cereais, pomares de árvores frutíferas e a irregularidade retilínea das estruturas construídas por mãos humanas. Ali em Eritro, porém, o que se via era uma planície ondulada, coalhada de pedras de todos os tamanhos, como se tivessem sido espalhadas ao acaso por algum gigante; formas estranhas, silenciosas, banhadas aqui e ali por filetes de água. E nenhuma forma de vida em parte alguma, a não ser pelos trilhões de organismos unicelulares que mantinham a atmosfera oxigenada, graças à energia fornecida pela luz de Nêmesis. E Nêmesis, como qualquer anã vermelha, continuaria a despejar seu suprimento medido de energia durante mais algumas centenas de bilhões de anos, assegurando o conforto de Eritro e seus pequenos procariotes durante todo esse tempo. Muito depois da morte do Sol da Terra e de outras estrelas brilhantes, muito mais jovens, Nêmesis ainda continuaria a mesma, Eritro continuaria o mesmo e os procariotes continuariam os mesmos. Os seres humanos não tinham o direito de mudar aquele mundo tão estável. Entretanto, se ficasse sozinha em Eritro, Marlene iria precisar de alimento… e de companhia. Poderia voltar para o Domo de vez em quando para buscar suprimentos, ou para matar a solidão, mas passar a maior parte do tempo sozinha com Eritro. Mas será que outros não a seguiriam? Como impedi-los? E a vinda de outros, mesmo em pequeno número, não estragaria o Paraíso? O Paraíso não estaria sendo estragado, naquele exato momento, por causa da sua presença? — Não! — gritou Marlene, em voz alta, ansiosa de repente para ver se podia fazer a atmosfera alienígena vibrar e transportar o som para seus ouvidos. Ouviu a própria voz, mas no terreno plano não havia ecos. O grito durou apenas alguns segundos. Voltou-se novamente. O Domo era apenas uma fina sombra no horizonte. Podia quase ser ignorado. Marlene gostaria que não estivesse visível; queria ficar sozinha com Eritro. Ouviu o leve suspiro do vento, e percebeu que tinha aumentado de velocidade. Não era forte o suficiente para sentir na pele, nem a temperatura havia caído significativamente. Ouviu apenas um leve “Ah-h-h-h”. Ela imitou-o alegremente: — Ah-h-h-h-h. — Marlene olhou para o céu, curiosa. A previsão de tempo era de céu claro. Seria possível que as tempestades se formassem de repente em Eritro? O vento aumentaria de intensidade, a ponto de incomodá-la? Começaria a chover antes que tivesse tempo de voltar para o Domo. Estava sendo tola, tão tola como se estivesse com medo de meteoros. Claro que chovia em Eritro, mas no momento havia apenas uns poucos vestígios de nuvens no céu; que deslizavam preguiçosamente no céu escuro. Não havia nenhum sinal de tempestade “A-h-h-h-h”, fez o vento. “Ah-h-h-h-h ê-ê-ê-ê Era um duplo som, e Marlene franziu a testa. Qual a origem daquele som? Não podia ser apenas o vento. Ele teria que estar passando por algum tipo de obstáculo. Mas não havia nenhum à vista. “Ah-h-h-h-h ê-ê-Ê-Ê ih-h-h-h Agora era um som triplo, com o segundo som mais forte que os outros. Marlene olhou em torno, intrigada. Não dava para saber de onde estava vindo o som. Parecia alguma coisa vibrando, mas não estava vendo nada. Eritro parecia vazio e silencioso. Não podia fazer nenhum ruído. “Ah-h-h-h-h ê-ê- ih-h-h-h-h’ De novo. Mais nítido que antes. Era como se o som estivesse dentro de sua cabeça. Quando a idéia lhe ocorreu, teve um calafrio. Podia sentir os braços arrepiados; não era preciso olhar para eles. Não havia nada de errado com sua cabeça. Nada! Estava esperando o som, e ele veio. Mais alto. Ainda mais nítido. Parecia estar ganhando autoridade, como se estivesse praticando e ficando cada vez melhor. Praticando? Praticando o quê? Involuntariamente, ela pensou: é como se alguém que não sabe pronunciar consoantes estivesse tentando dizer o meu nome. Como se isso fosse um sinal, ou seu pensamento tivesse liberado outro espasmo de poder, ou talvez aguçado sua imaginação, ela ouviu… “Mah-h-h lê-ê-ê nih-h-h’ Instintivamente, sem saber o que estava fazendo, levantou as mãos e cobriu os ouvidos. Marlene, pensou… sem emitir nenhum som. E ouviu alguém imitá-la: “Mahr-lê-nih’ Da vez seguinte, foi quase perfeito: “Marlene’ Estremeceu ao reconhecer a voz. Era Aurinel, Aurinel de Rotor, a quem não via desde o dia em que lhe dissera que a Terra seria destruída. Desde aquela época, quase não havia pensado no rapaz, mas sempre que se lembrava dele era com tristeza. Por que estava ouvindo a voz de Aurinel, se ele não estava ali? Por que estava ouvindo a voz de qualquer pessoa, se estava sozinha? Rendeu-se à evidência. Só podia ser a Praga de Eritro. Saiu correndo cegamente em direção ao Domo, sem perceber que estava gritando a plenos pulmões. Levaram-na para dentro. Tinham visto quando se aproximava do Domo. Dois guardas, usando trajes E, saíram para buscá-la e a ouviram gritar. Entretanto, Marlene tinha parado de gritar antes de a alcançarem. Tinha parado de correr, também, e isso antes de se dar conta da presença dos guarda. Quando eles se aproximaram, Marlene perguntou, calmamente: — Que foi que houve? Ninguém respondeu. Um dos guardas tentou segurá-la pelo braço, e ela recuou. — Não me toquem! Vou para o Domo, se é isso que querem, mas vou por minhas próprias pernas. — Voltou para o Domo sem pressa, acompanhada pelos guardas. Parecia muito segura de si. Eugenia Insigna, muito pálida, estava tentando se controlar para não parecer histérica. — Que aconteceu lá fora, Marlene? — Nada. Absolutamente nada — respondeu Marlene, olhando para a mãe com os grandes olhos negros e impenetráveis. — Não acredito. Você estava correndo e gritando. — Só por pouco tempo. Estava tudo tão quieto, que depois de algum tempo comecei a desconfiar que tinha perdido a audição. Por causa do silêncio, você sabe. De modo que bati o pé no chão e saí correndo só para ouvir o barulho, e comecei a gritar… — Só para ouvir o barulho? — perguntou Insigna, franzindo a testa. — Isso mesmo, mamãe. — Espera que eu acredite nisso, Marlene? Ouvimos os seus gritos no rádio e não eram os gritos de alguém que está apenas querendo fazer barulho. Eram gritos de terror. Você estava assustada com alguma coisa. — Eu já lhe disse. Com o silêncio. Com a possibilidade de estar surda. Insigna voltou-se para D’Aubisson. — Não é possível, doutora, que se você não ouve nada, absolutamente nada, e está acostumada a ouvir coisas o tempo todo, seus ouvidos comecem a imaginar que você está ouvindo alguma coisa, só para mostrar serviço? O sorriso de D’Aubisson foi forçado. — É uma forma pitoresca de colocar as coisas, mas é verdade que a privação sensorial pode levar a alucinações. — Que me deixaram um pouco assustada, suponho. Mas depois que ouvi minha própria voz e o som dos meus passos, acalmei-me. Pergunte aos dois guardas que foram buscar-me. Eu estava perfeitamente calma quando eles chegaram, e voltei para o Domo com eles sem nenhum problema. Pergunte a eles, tio Siever. Genarr anuiu com a cabeça. — Eles já me contaram. E nós vimos o que aconteceu. Está bem. O que passou, passou. — Nada disso! — exclamou Insigna, ainda muito pálida de medo, de raiva ou de ambos. — Ela não vai sair de novo! A experiência está encerrada! — Não, mamãe! — protestou Marlene. D’Aubisson levantou a voz, como se quisesse impedir uma troca áspera de palavras entre mãe e filha. — A experiência não está terminada, Dra. Insigna. Independente do fato de sua filha tornar a sair ou não, temos de lidar com as conseqüências do que aconteceu — falou D’Aubisson. — Que quer dizer com isso? — perguntou Insigna. — Está muito bem falar em alucinações causadas pelo silêncio excessivo, mas outra causa possível para o ocorrido é uma certa instabilidade mental. Insigna fez cara de choro. — Está falando da Praga de Eritro? — perguntou-lhe Marlene. — Não necessariamente, Marlene — disse D’Aubisson. — Até o momento, são apenas conjecturas. Você terá de fazer outro exame com a sonda cerebral. É para o seu próprio bem. — Não! — exclamou Marlene. — Não diga que não — disse D’Aubisson. — É uma necessidade. Não temos escolha. Marlene olhou para D’Aubisson com seus olhos penetrantes e disse: — Você está torcendo para que eu esteja com a Praga! Você quer que eu esteja com a Praga! — Isso é ridículo! Como tem coragem de dizer uma coisa dessas? — protestou D’ Aubisson, empertigando-se toda. Mas era Genarr, agora, que estava olhando para D’Aubisson. — Ranay, você conhece a percepção de Marlene — manifestou-se Genarr. — Se ela disse que você quer que esteja com a Praga, é porque revelou isso a ela de alguma forma inconsciente. A não ser que Marlene esteja acusando você apenas porque está assustada. — Não, é verdade! — exclamou Marlene. — Ela parecia toda animada! — Agora entendo o que a menina está dizendo — disse D’Aubisson, franzindo a testa. — Faz alguns anos que não encontro um caso novo da Praga em estágio avançado. Na época em que estudei esses casos, logo depois que o Domo foi instalado, não tínhamos os equipamentos apropriados para um estudo mais minucioso. Profissionalmente, teria muito prazer em estudar um caso da Praga com as técnicas modernas que estão hoje ao meu dispor, o que talvez me permitisse descobrir a causa da Praga e a forma de preveni-la. Estava animada, sim. É um interesse profissional que esta menina, em sua inexperiência, interpretou como simples alegria. Não é simples. — Pode não ser simples — disse Marlene —, mas é mau. Disso eu tenho certeza. — Está enganada. Teremos que executar o exame. — Eu me recuso — disse Marlene, praticamente gritando. — Você terá que me forçar, e nesse caso o resultado não terá nenhum valor. — Não quero que minha filha faça nada contra a vontade — interveio Insigna, com voz trêmula. — Isso não depende da vontade da sua filha. É uma questão de… — D’Aubisson interrompeu o que estava dizendo e cambaleou para trás, com a mão na barriga. — Que é que você tem? — perguntou Genarr. Depois, sem esperar a resposta, deixando por conta de Insigna levar D’Aubisson para o sofá mais próximo e persuadi-la a deitar-se, voltou-se para Marlene e pediu a ela: — Marlene, concorde em fazer o exame. — Não quero. Ela vai dizer que estou com a Praga. — Não vai, não. Eu garanto. A menos que você realmente esteja com a Praga. — Não estou. — Eu também acho, mas precisamos do exame para provar. Confie em mim, Marlene. Por favor! Marlene olhou de Genarr para D’Aubisson e de volta para Genarr. — E vão me deixar sair do Domo novamente? — Claro que sim. Quantas vezes você quiser. Se estiver normal… e você tem certeza de que está normal, não tem? — Claro que sim. — Então o exame vai confirmar isso. — Talvez, mas ela vai dizer que não posso sair de novo. — Sua mãe? — Minha mãe e a doutora. — Não, elas não vão poder impedi-ia. Agora, quero que diga que concorda em fazer o exame. — Está bem. Eu concordo. Ranay D’Aubisson levantou-se com dificuldade. D’Aubisson estava examinando o resultado do exame, observada por Siever Genarr. — Um padrão curioso — murmurou D’Aubisson. — Isso nós já sabíamos — disse Genarr. — Ela é uma mocinha diferente. O que importa é: alguma mudança? — Nenhuma. — Você parece desapontada. — Não comece de novo, Comandante. Claro que estou decepcionada, do ponto de vista profissional. Gostaria de estudar a doença. — Como está se sentindo? — Eu acabo de lhe explicar… — Fisicamente, quero dizer. Ontem você passou mal sem nenhuma explicação. — Tensão nervosa, provavelmente. Não é todo dia que me acusam de querer que uma pessoa esteja seriamente enferma… e outras pessoas acreditam! — Que aconteceu? Um ataque de indigestão? — Pode ter sido. Senti fortes dores abdominais. E uma certa tontura. — Isso acontece freqüentemente com você, Ranay? — Não, não acontece. Também não sou freqüentemente acusada de trair minha profissão. — Ela é apenas uma criança. Por que a levou tão a sério? — O senhor se importa se mudarmos de assunto? Não encontrei nenhuma alteração nos padrões cerebrais de Marlene. Se era normal antes da episódio, assim continua. — Nesse caso, acha que pode continuar a explorar Eritro? — Já que tudo indica que não foi afetada, não vejo razão para proibi-la. — Está disposta a autorizar sua saída? A atitude de D’Aubisson se tornou hostil. — Sabe que tive um encontro com o Comissário Pitt. — Era mais uma afirmação do que uma pergunta. — Sei, sim — disse Genarr. — Ele me convidou para chefiar um novo projeto para estudar a Praga de Eritro, e me disse que eu poderia contar com uma verba considerável. — Acho que é uma boa idéia, e que ele não poderia escolher uma pessoa melhor. — Obrigada. Entretanto, ele não me nomeou comandante em seu lugar. Assim sendo, cabe ao senhor, como comandante, decidir se Marlene Fisher deve continuar explorando a superfície de Eritro. — Pretendo autorizar Marlene a sair do Domo quantas vezes quiser. Você concorda com isso? — Já que, de acordo com os exames, ela não apresenta sinais da Praga, não há motivo para discordar do senhor. Entretanto, a ordem terá que ser sua. Se houver necessidade de colocar alguma coisa no papel, a assinatura terá que ser sua. — Mas você concorda. — Não tenho motivos para discordar. Tinham acabado de jantar e estava tocando uma música suave. Siever Genarr, que até o momento havia conversado com Eugenia Insigna apenas sobre assuntos gerais, finalmente disse: — As palavras são de Ranay D’Aubisson, mas a força por trás delas é de Janus Pitt. — Acha mesmo? — Acho… e você deveria estar de acordo. Conhece Janus melhor do que eu. É uma pena. Ranay é uma médica muito competente, tem um cérebro privilegiado e é uma boa pessoa, mas é ambiciosa (todos nós somos, de uma forma ou de outra), e pode portanto ser corrompida. Ela quer entrar para a história como a pessoa que derrotou a Praga de Eritro. — Estaria disposta a arriscar a saúde mental de Marlene para conseguir esse objetivo? — Não no sentido de que faça isso com prazer, mas no sentido de… bem, de que talvez não haja outro meio. — Mas deve haver outros meios. É monstruoso usar Marlene como cobaia. — Não do ponto de vista dela, nem do ponto de vista de Pitt. Uma mente é um preço pequeno a pagar se com isso um mundo é salvo e se torna habitável para milhões de pessoas. Talvez seja uma forma fria de encarar a questão, mas as futuras gerações podem vir a considerar Ranay uma heroína, e concordar com ela que uma mente foi um preço bem pequeno a pagar. — Isso porque não foi a mente deles. — Naturalmente. A história está cheia de gente disposta a sacrificar outras pessoas. Pitt é um tipo assim. Você não concorda? — A respeito de Pitt, sim. Sim, eu concordo. E pensar que trabalhei com ele todos esses anos… — Então sabe que ele deve estar encarando todo esse problema de forma estritamente racional. “Tudo pelo bem da maioria”, diria ele. Ranay admite que conversou com ele quando esteve recentemente em Rotor, e tenho certeza de que foi isso que ele disse para ela, mesmo que em outras palavras. — E o que ele diria se Marlene fosse exposta, perdesse a razão, e não fosse descoberta nenhuma cura para a Praga. Que diria ele se minha filha fosse sacrificada inutilmente? Que diria a Dra. D’Aubisson? — A doutora ficaria muito triste. Disso eu tenho certeza. — Porque perderia a chance de ficar famosa? — È claro, mas também ficaria com pena de Marlene. Além de se sentir culpada. Ela não é um monstro. Quanto a Pitt… — Ele é um monstro. — Não chegaria a tanto, mas ele é um obcecado. Vê apenas o futuro de Rotor. Se alguma coisa der errada, do nosso ponto de vista, ele simplesmente dirá para si mesmo que Marlene, de qualquer forma, teria interferido em seus planos, e que foi tudo para o bem de Rotor. Não ficará com um peso na consciência. Insigna sacudiu a cabeça. — Preferiria que estivéssemos errados, que Pitt e D’Aubisson não tivessem culpa de nada. — Eu também, mas estou disposto a confiar na percepção de Marlene. Ela disse que Ranay estava feliz com a oportunidade de estudar uma vítima da Praga. Acredito nela. — D’Aubisson explicou que estava feliz por razões profissionais — disse Insigna. — Eu acredito nela, também. Afinal, sou uma cientista e posso compreender suas razões. — Claro que pode — disse Genarr, com um sorriso. — Você se mostrou disposta a deixar o Sistema Solar e partir em uma viagem incerta em busca de conhecimentos de astronomia, mesmo que isso significasse pôr em risco a vida de todos os habitantes de Rotor. — O risco não era tão grande assim. — Mas você arriscou a vida de sua filha de um ano! Poderia ter deixado Marlene com o pai. Ela estaria perfeitamente segura, mas você jamais tornaria a vê-la. Em vez disso, preferiu arriscar-lhe a vida, não para o bem de Rotor, mas para o seu próprio bem. — Pare, Siever. Você está sendo cruel. — Estou apenas tentando lhe mostrar que é possível encarar qualquer questão de dois pontos de vista opostos, se a gente tiver suficiente imaginação. Sim, D’Aubisson alegou que estava interessada em estudar a doença por razões puramente profissionais, mas Marlene a acusou de estar sendo má, e confio mais em Marlene. — Nesse caso, suponho que ela esteja ansiosa para que Marlene saia novamente do Domo. — Acho que sim, mas está sendo suficientemente cautelosa para insistir em que eu dê a ordem e mesmo para sugerir que eu coloque a ordem no papel. Quer ter certeza de que levarei a culpa se alguma coisa der errado. Está começando a pensar como Pitt. Nosso amigo Janus é contagioso. — Nesse caso, Siever, não deve deixar que Marlene saia do Domo. Por que fazer a vontade de Pitt? — Pelo contrário, Eugenia. Nós temos que deixar sua filha sair. — O quê? — Não temos escolha, Eugenia. E ela não vai correr nenhum perigo. Sabe de uma coisa? Agora acredito que você estava certa quando disse que havia alguma forma de vida no planeta que podia exercer uma influência sobre nós. Você observou que tanto eu, como você, como os guardas, fomos afetados quando contrariamos os desejos de Marlene. Foi exatamente o que aconteceu com Ranay. Quando Ranay tentou obrigar Marlene a se submeter a um exame, começou a passar mal. Quando convenci Marlene a concordar com o exame, o mal-estar passou. — Aí é que está, Siever. Se existe uma forma de vida hostil lá fora… — Espere um momento, Eugenia. Eu não disse que era hostil. Mesmo que essa forma de vida seja a responsável pela Praga, como você sugeriu, isso parou há muito tempo. Você disse que foi porque parecíamos dispostos a permanecer no Domo, mas se a forma de vida fosse realmente hostil, poderia ter acabado conosco, em vez de entrar em uma espécie de acordo. — Não acho que seja seguro tentar analisar os atos de uma criatura alienígena, a respeito da qual não sabemos praticamente nada, e deduzir daí suas emoções ou intenções. O que ela pensa e pretende pode estar totalmente além da nossa compreensão. — Concordo, Eugenia, mas até o momento não fez nada contra Marlene. Pelo contrário, todas as suas atitudes foram para proteger Marlene da interferência de outras pessoas. — Se é assim, por que Marlene ficou assustada? Por que começou a correr na direção do Domo, gritando? Não acreditei nem por um momento naquela história de que o silêncio a deixou nervosa e estava apenas tentando fazer barulho para quebrar o silêncio. — Também acho difícil de acreditar. A verdade, porem é que o pânico não durou muito. Quando os guardas a alcançaram, parecia perfeitamente normal. Imagino que alguma coisa que a forma de vida fez assustou Marlene (certamente terá tantas dificuldades para compreender nossas emoções quanto nós teremos para compreender as suas), mas, ao perceber que ela estava com medo, tratou de acalmá-la. Isso explicaria o que aconteceu e demonstraria, mais uma vez, que a forma de vida não é hostil. Insigna estava com a testa franzida. — O problema com você, Siever, é que tem essa terrível compulsão para pensar bem de todo mundo. Não posso confiar na sua interpretação dos fatos. — Confie ou não, verá que não há maneira de contrariar Marlene. Ela fará o que quiser, e os adversários serão deixados para trás, gemendo de dor ou simplesmente inconscientes. — Mas o que é essa forma de vida? — Não sei, Eugenia. — E o que me assusta mais que tudo é: o que ela quer com Marlene? Genarr sacudiu a cabeça. — Também não sei, Eugenia. Ficaram olhando um para o outro, desanimados. TRINTA E DOIS PERDIDOS Crile Fisher olhou, pensativo, para a estrela. A princípio, era brilhante demais para ser observada diretamente. Tinha olhado rapidamente para ela e passara algum tempo com uma mancha escura diante dos olhos. Tessa Wendel, que já estava muito nervosa por outras razões, o repreendera, dizendo que poderia ficar cego, de modo que ele havia tornado a janela menos transparente, reduzindo o brilho da estrela a níveis toleráveis. Com isso, as outras estrelas tinham ficado quase invisíveis. A estrela brilhante era o Sol, naturalmente. Nunca tinha sido observado de tão longe por seres humanos (exceto, naturalmente, pelos habitantes de Rotor, quando se afastavam do Sistema Solar). Estavam duas vezes mais distantes que o apogeu da órbita de Plutão, de modo que não havia um disco visível, e o Sol brilhava com a aparência de uma estrela. Mesmo assim, era cem vezes mais brilhante que a Lua cheia vista da Terra e esse brilho estava concentrado em um único ponto. Não era de admirar que fosse perigoso olhar diretamente para ele. A distância tornava as coisas diferentes. O Sol, normalmente não era nada de chamar a atenção. Ocupava uma posição solitária no céu. A pequena parte da sua luz que era espalhada pela atmosfera era suficiente para tornar invisíveis as outras estrelas, e mesmo quando isso não ocorria (com a Lua, por exemplo), a luz do Sol era tão mais intensa que não havia termo de comparação. Ali, tão longe no espaço, a intensidade da luz do Sol havia diminuído o suficiente para tornar possível a comparação. Wendel comentara que, daquele ponto de observação, o Sol era cento e sessenta mil vezes mais brilhante que Sírio, a segunda estrela mais brilhante do céu. Era aproximadamente vinte milhões de vezes mais brilhante que as estrelas mais fracas visíveis a olho nu. Isso tornava o Sol mais admirável, por comparação, do que quando reinava, soberano, no céu da Terra. Fisher não tinha muito mais para fazer do que observar o céu, pois a Superluminal estava simplesmente planando. Estava fazendo isso havia dois dias. Viajando com aquela velocidade, levaria trinta e cinco mil anos para chegar à Estrela Vizinha… se estivessem no rumo correto. E não estavam. Tinha sido isso que levara Wendel, dois dias antes, ao desespero. Até então, a viagem tinha sido tranqüila. Na hora de passarem para o hiperespaço, Fisher havia ficado um pouco tenso, temendo uma possível dor, ou no mínimo uma sensação desagradável no estômago. Nada disso ocorrera. Tudo havia acontecido depressa demais. Entraram e saíram do hiperespaço no mesmo instante. As estrelas simplesmente assumiram uma configuração diferente no céu, sem que os tripulantes pudessem dizer quando tinham deixado de ver a configuração antiga para ver a nova. Tinha sido um alívio para Fisher, sob dois aspectos. Não só ainda estava vivo, mas percebeu que se tivesse acontecido alguma coisa errada e ele tivesse morrido, a morte ocorreria tão depressa que não haveria tempo de sentir nada. O alívio foi tão grande que mal percebeu que Tessa tinha saído correndo para a sala dos motores, depois de uma exclamação de surpresa. Quando voltou, estava desgrenhada. Não havia um fio de cabelo fora do lugar, mas estava desgrenhada internamente. Olhou para Fisher como se não o conhecesse. — A posição das estrelas não devia ter mudado — afirmou. — Não devia? — Não nos afastamos o suficiente do Sistema Solar. Pelo menos, não devíamos ter nos afastado. Apenas um vírgula três milianos-luz. Isso não seria suficiente para mudar a posição aparente das estrelas, vistas a olho nu. Entretanto — acrescentou com um suspiro —, poderia ter sido pior. Por um momento, pensei que tivéssemos viajado milhares de anos-luz. — Isso seria possível, Tessa? — Claro que seria possível. No hiperespaço, é tão fácil viajar mil anos-luz quanto viajar apenas um. — Nesse caso, só temos que… Wendel adivinhou a conclusão. — Não, não podemos simplesmente voltar. Se nosso erro foi tão grande na viagem de ida, provavelmente cometeríamos um erro da mesma ordem na viagem de volta, o que nos deixaria muito, muito longe do Sistema Solar. Fisher franziu a testa. A euforia de ter passado incólume pelo hiperespaço estava começando a se dissipar. — Quando vocês mandaram objetos para o hiperespaço, conseguiram trazê-los de volta. — Eles eram muito mais leves que esta nave e foram mandados para distâncias menores. Entretanto, como eu já disse, podia ter sido pior. Acontece que viajamos a distância correta. — Mas você disse que as estrelas não deviam ter mudado de posição, e elas mudaram. — Porque saímos do curso. O eixo maior da nave sofreu um desvio de mais de vinte e oito graus. Em outras palavras, seguimos uma trajetória curva, em vez de nos movermos em linha reta, como era nossa intenção. A janela mostrava as estrelas se movendo lentamente. — Estamos manobrando para ficar de novo de frente para a Estrela Vizinha, mas apenas pelo efeito psicológico de estarmos voltados para a direção correta — explicou Wendel. — Antes de descobrirmos por que nossa trajetória se alterou, não podemos nos arriscar a mais um salto no hiperespaço. A estrela brilhante, a estrela-guia, a estrela-mãe apareceu na janela. Fisher piscou os olhos. — O Sol — disse Wendel, respondendo ao olhar surpreso de Fisher. — Há alguma explicação razoável para a mudança de rumo? — perguntou Fisher. — Se a mesma coisa aconteceu com Rotor, quem sabe onde ele foi parar — Quem sabe onde nós vamos parar? Não conheço nenhuma explicação razoável. Pelo menos, até agora. — Olhou para ele com a preocupado. — Se nossa teoria estivesse correta, deveríamos ter mudado de posição, mas não de direção. Deveríamos ter percorrido uma trajetória retilínea, uma reta euclidiana, apesar da curvatura relativística do espaço-tempo, porque, durante a viagem pelo hiperespaço, não estávamos no espaço-tempo. Pode haver um erro na programação do computador ou uma falha na teoria. Espero que seja um erro de programação, porque isso, pelo menos, sabemos corrigir. Cinco horas se passaram. Wendel entrou, esfregando os olhos. Fisher olhou para ela com ar de expectativa. Tinha começado a ver um filme, mas perdera o interesse. Limitara-se a ficar olhando para as estrelas, permitindo que a vista o hipnotizasse, como se fosse uma anestesia. — Então, Tessa? — Não há nada errado com a programação, Crile. — Isso quer dizer que a teoria está errada? — Sim, mas em que ponto? O número de possibilidades é praticamente infinito. Não temos tempo para rever todas as hipóteses. Ficaram em silêncio durante algum tempo. — Se fosse a programação — falou Wendel —, teria sido um erro bobo. Bastaria corrigi-lo, sem aprender nada de novo, tudo estaria resolvido. Agora, porém, temos que voltar aos fundamentos; podemos descobrir algo realmente importante, mas, se falharmos, nunca mais encontraremos o caminho de volta. — Segurou Fisher pelo braço. “Está entendendo, Crile? Alguma coisa está errada, e se não descobrirmos o que é, não conseguiremos voltar para casa, a não ser por uma incrível coincidência. Cada tentativa nos levará para mais longe das coordenadas corretas. O que significa que morreremos no espaço, quando nosso sistema de reciclagem falhar, nossos motores enguiçarem, ou simplesmente perdermos a vontade de viver. E a culpada sou eu. Mas a tragédia real seria a perda de um sonho. Se não voltarmos, jamais saberão o que aconteceu. Podem concluir que a transição para o hiperespaço é fatal e desistir do projeto. — Vão precisar de naves como esta para escapar da Terra. — Podem desistir de escapar; podem esconder a cabeça e ficar esperando a chegada de Nêmesis e a morte certa. — Olhou para Fisher, piscando os olhos rapidamente, o rosto parecendo terrivelmente cansado. — E seria também o fim do seu sonho, Crile. Crile não disse nada. Quase timidamente, Wendel acrescentou: — Durante alguns anos, Crile, você teve a mim. Se sua filha, se seu sonho, não se concretizar, eu terei sido suficiente? — Eu posso perguntar: se o vôo superluminal não se concretizar, eu terei sido suficiente? Não parecia haver uma resposta simples para nenhuma das duas perguntas. — Você foi um prêmio de consolação, Crile, mas um ótimo prêmio de consolação. Obrigada. Fisher anuiu com a cabeça. — Tirou as palavras da minha boca, Tessa. Se eu não tivesse tido uma filha, haveria apenas você. Seria melhor que eu não… — Não diga mais nada. Sei como se sente. Deram-se as mãos, em silêncio, e ficaram olhando para as estrelas. Merry Blankowitz apareceu na porta. — Comandante Wendel, Wu teve uma idéia. Disse que na verdade era uma idéia antiga, mas que estava com receio de mencioná-la. Wendel se levantou. — Por que estaria com receio? — Porque uma vez comentou a respeito com a senhora, e a senhora disse a ele para deixar de tolices. — Foi mesmo? E de onde ele tirou a idéia de que nunca me engano? Vou falar com ele, e se for uma boa idéia, vou quebrar-lhe o pescoço por não me ter forçado a ouvi-lo antes de nos metermos nesta enrascada. Fisher não teve nada para fazer nos dois dias seguintes, a não ser esperar. Comiam todos juntos, como sempre, mas em silêncio. Fisher não sabia se os outros dormiam. Ele, pessoalmente, só conseguia cochilar, e acordava sempre sobressaltado. Por quanto tempo poderiam agüentar? pensou, no segundo dia, enquanto admirava a beleza daquele ponto brilhante no céu que, havia tão pouco tempo, o aquecia e iluminava seu caminho na Terra. Mais cedo ou mais tarde, chegaria o fim. A tecnologia moderna era capaz de prolongar a vida dos tripulantes na nave. A reciclagem era bastante eficiente. Os alimentos durariam muito tempo, embora, no final, tivessem que se contentar com um insosso bolo de algas. Os motores de microfusão continuariam a produzir energia por um tempo considerável. Certamente, porém, nenhum deles desejaria continuar vivo quando não restassem mais esperanças de encontrar o caminho de volta. Se a morte no espaço parecesse inevitável, provavelmente todos concordariam em usar catabolizantes ajustáveis. Era o método preferido de suicídio na Terra; por que não usá-lo ali, também? A dose podia ser ajustada para um dia completo de vida razoavelmente normal, vivida da forma mais alegre possível… um último dia glorioso. No final do dia, você se sentia sonolento. Começava a bocejar e em pouco tempo passava para um sono tranqüilo, com sonhos repousantes..O sono ia ficando cada vez mais profundo, os sonhos iam diminuindo, e você não acordava nunca mais. Era a forma mais agradável de morrer. No segundo dia depois da transição, pouco antes das cinco da tarde, Tessa apareceu no quarto de Crile, ofegante. Os cabelos negros, que no último ano tinham ficado grisalhos, estavam despenteados. Fisher se levantou, preocupado. — Más notícias? — Não, boas! — exclamou Tessa, jogando-se em uma cadeira em vez de sentar-se. Fisher não estava certo de ter ouvido direito. Talvez Tessa estivesse sendo irônica. Ficou olhando para ela, esperando que se controlasse o suficiente para lhe explicar a situação. — Boas! — repetiu Wendel. — Ótimas! Maravilhosas! Crile, você está olhando para uma idiota. Acho que nunca me perdoarei por isso! — Que foi que aconteceu? — Chao-Li Wu tinha a resposta. Ele tinha a resposta o tempo todo. Ele me falou a respeito. Lembro-me perfeitamente. Há meses. Há mais de um ano, talvez. Mas eu não acreditei. Para ser franca, nem prestei atenção. — Fez uma pausa para recuperar o fôlego. Estava tão excitada que havia perdido totalmente o ritmo natural da sua fala. — O problema era que eu me considerava a maior autoridade do mundo em vôos superluminais e estava convencida de que ninguém podia me ensinar nada sobre o assunto. Quando alguém sugeria alguma coisa que me parecia estranha, era porque a idéia estava simplesmente errada e seu autor era provavelmente um idiota. Está me entendendo? — Já conheci pessoas assim — disse Fisher, balançando a cabeça. — Quase todo mundo age assim, uma vez ou outra — disse Wendel. — Acho que os cientistas se tornam particularmente suscetíveis depois de uma certa idade. Ë por isso que os jovens revolucionários da ciência se transformam em velhos conservadores depois de algumas décadas. A vaidade acaba com a imaginação, e isso é fatal. Foi o que aconteceu comigo… mas chega de divagações. Levamos mais de um dia para ajustar as equações, programar o computador e executar as simulações necessárias. Deveria ter levado uma semana, mas estávamos trabalhando como loucos. — Wendel fez uma pausa para recuperar o fôlego. Fisher segurou-lhe a mão e encorajou-a a prosseguir com um meneio de cabeça. — Isto é complicado. Vou tentar explicar. Olhe… quando fazemos uma viagem pelo hiperespaço, vamos de um ponto a outro do espaço normal em tempo zero. Para fazer isso, usamos um caminho, que depende dos pontos inicial e final. Não observamos o caminho, não podemos senti-lo, na verdade ele não existe no espaço-tempo que conhecemos. É o que chamamos de “caminho virtual”. Eu mesma defini o conceito. — Se não podemos observá-lo, se não podemos senti-lo, como sabemos que existe? — Porque pode ser calculado com o auxílio das equações que usamos para descrever o movimento no hiperespaço. As equações nos fornecem o caminho. — Como pode saber que as equações estão descrevendo um fenômeno que tem existência real? Não poderia ser apenas um artifício matemático? — Poderia ser. Eu pensei que fosse. Ignorei-o. Então Wu sugeriu que poderia ter importância prática, há mais ou menos um ano. Como uma idiota completa, rejeitei suas idéias. Um caminho virtual, disse eu, tinha uma existência virtual, imaginária. Se não podia ser medido, estava fora do alcance da ciência. Como fui cega! Jamais me perdoarei por isso… — Muito bem. Quer dizer que o caminho virtual tem um certo tipo de existência. E daí? — Nesse caso, se o caminho virtual passa por proximidades de um astro, a nave experimenta uma força gravitacional. Essa é a idéia que não levei em consideração nas minhas teorias: a de que um objeto está sujeito a forças gravitacionais mesmo quando está seguindo uma trajetória virtual. — Wendel sacudiu a cabeça, irritada. — Eu estive perto da verdade, mas pensei que, já que uma nave estaria se movendo com uma velocidade várias vezes maior que a da luz, a gravitação não teria tempo suficiente para influir na sua trajetória. Por isso, a nave viajaria em linha reta. — Mas não foi isso que ocorreu. — Não, não foi. E Wu explicou a razão. Imagine que a velocidade da luz seja tomada como ponto de referência. Nesse caso, todas as velocidades menores que a da luz serão negativas e todas as velocidades maiores que a da luz serão positivas. No Universo que conhecemos, portanto, todas as velocidades são negativas, de acordo com esta convenção matemática. “Acontece que o Universo é regido por certos princípios de simetria. Se alguma coisa fundamental como a velocidade de um corpo é sempre negativa, então outra coisa igualmente fundamental deve ser sempre positiva. Wu sugeriu que essa outra coisa é a gravidade. No Universo que conhecemos, a gravidade é sempre atrativa. Todos os objetos que possuem massa atraem todos os outros objetos que possuem massa. “Por outro lado, se um objeto se move com velocidade superluminal, isto é, mais depressa que a luz, a velocidade se torna positiva e a outra coisa que era positiva tem de tornar-se negativa. Em outras palavras, para os corpos que estão se movendo mais depressa que a luz, a gravitação é uma força repulsiva. Todos os objetos que possuem massa repelem todos os outros objetos que possuem massa. Wu me disse isso há muito tempo, mas não lhe dei ouvidos. — Mas qual é a diferença, Tessa? — quis saber Crile. — um objeto está viajando muito mais depressa que a luz e a atração gravitacional não tem tempo para afetar sua trajetória, a repulsão gravitacional também não teria. — Ah, mas não é bem assim, Crile. Aí é que está a beleza da coisa. No Universo comum de velocidades negativas, quanto maior a velocidade relativa entre dois corpos, menor o efeito da atração gravitacional sobre a trajetória desses corpos. No Universo de velocidades positivas, ou seja, no hiperespaço, quanto maior a velocidade relativa, maior o efeito da repulsão gravitacional. Isso pode não parecer razoável para nós, que estamos acostumados ao Universo comum, mas é só trocar os sinais de algumas equações que descrevem o movimento que tudo começa a fazer sentido. — Matematicamente, talvez. Mas como pode confiar nessas equações? — Comparando as previsões com os fatos. A atração gravitacional é a mais fraca de todas as forças na natureza e o mesmo se pode dizer da repulsão gravitacional a que está sujeito um corpo quando percorre um caminho virtual. DEritro da nave e dentro de nós, todas as partículas repelem todas as outras partículas enquanto estamos no hiperespaço, mas essa repulsão não pode fazer nada na presença de todas as outras forças atrativas, que não mudaram de sinal. Entretanto, nosso caminho virtual a partir da Estação Quatro nos fez passar nas proximidades de Júpiter. A repulsão que sofremos foi suficientemente intensa para modificar nossa trajetória. “Calculamos o efeito da repulsão gravitacional de Júpiter, e obtivemos uma trajetória idêntica à que nossa nave seguiu. Em outras palavras, a modificação proposta por Wu faz minhas equações funcionarem! — Você quebrou o pescoço de Wu, como havia prometido? — perguntou Fisher. Wendel riu. — Não, não quebrei. Na verdade, cheguei a beijá-lo. — Ele mereceu. — Na verdade, agora nossa volta para a Terra é mais importante do que nunca, Crile. Preciso divulgar esta descoberta e cuidar para que a contribuição de Wu seja reconhecida. É verdade que ele se baseou no meu trabalho, mas foi muito mais além. Quero dizer: pense nas conseqüências. — Posso imaginar — disse Fisher. — Não, não pode. Preste atenção. Rotor não teve problemas desse tipo, porque não viajou muito mais depressa que a luz. No nosso caso, porém, é indispensável levar em conta a repulsão gravitacional. Minhas antigas equações não servem para nada. E isso não é tudo. “Sempre achei que havia um perigo inevitável na hora de sair do hiperespaço. E se houvesse um objeto na mesma posição, no espaço normal? Haveria uma violenta explosão, e a nave e todos os seus ocupantes seriam destruídos em um trilionésimo de segundo. “Naturalmente, não vamos nos chocar com uma estrela, por que sabemos onde estão as estrelas e podemos evitá-las. Com o tempo, podemos descobrir também onde estão os planetas das estrelas. Existem, porém, milhares de cometas e bilhões de asteróides nas proximidades da maioria das estrelas. Não podemos determinar com precisão as trajetórias de todos esses corpos, e se nos chocarmos com um deles, será o fim. “A única coisa que estava do nosso lado, de acordo com o que eu pensava até hoje, eram as leis das probabilidades. O espaço é tão grande que a probabilidade de encontrarmos um objeto maior que um grão de poeira é extraordinariamente pequena. Mesmo assim, quando aumentasse o número de viagens no hiperespaço, era de se esperar que os acidentes começassem a acontecer. “De acordo com a nova visão do hiperespaço, esses acidentes simplesmente são impossíveis. Enquanto está se movendo mais depressa que a luz, nossa nave repele todos os objetos próximos. Não corremos o risco de nos chocarmos com um asteróide. Todos eles automaticamente se afastam do nosso caminho. Fisher coçou a cabeça. — Nossa trajetória também não seria alterada? Não mudaríamos de rumo de forma imprevisível? — Sim, mas se encontrássemos pela frente um objeto de tamanho moderado, a mudança de curso seria pequena e poderia ser corrigido… um pequeno preço a pagar pela segurança. Wendel respirou fundo e espreguiçou-se. — Sinto-me ótima. Isso vai fazer sensação quando voltarmos à Terra. Fisher riu. — Sabe, Tessa, antes de você chegar eu estava imaginando nossa nave perdida no espaço, para sempre, com cinco cadáveres a bordo. Pensei que um dia talvez fôssemos encontrados por seres alienígenas, que lamentariam a tragédia… — Pois isso não vai ocorrer, querido — disse Wendel, abraçando-o. TRINTA E TRÊS MENTE Eugenia Insigna parecia inconsolável. — Está mesmo disposta a sair de novo, Marlene? — Mamãe — disse Marlene, impaciente —, do jeito que você fala, até parece que tomei a decisão há cinco minutos, depois de um longo período de incerteza. Há muito tempo venho dizendo a você que meu futuro está lá fora, na superfície de Eritro. Não mudei de idéia e não pretendo mudar. — Sei que está convencida de que não corre nenhum perigo e reconheço que nada aconteceu até agora, mas… — Sinto-me segura em Eritro. Sinto-me atraída por Eritro. Tio Siever me compreende. Eugenia olhou para a filha, fez menção de dizer alguma coisa, mas se limitou a balançar a cabeça. Sabia que era impossível dissuadir Marlene. Desta vez, está mais quente na superfície de Eritro, pensou Marlene. O suficiente para tornar a brisa agradável. As nuvens deslizavam mais rapidamente no céu e pareciam mais espessas. Estava previsto chuva para o dia seguinte, e Marlene pensou como seria observá-la de perto. Os pingos fariam pequenas ondulações na água do regato, molhariam as pedras, tornariam o solo lamacento. Tinha chegado a uma grande pedra chata, perto do regato. Limpou-a com a mão e sentou-se nela, vendo a água correr por entre as pedras e pensando que ficar na chuva devia ser como tomar um banho de chuveiro. Seria como um chuveiro gigantesco, da largura do céu. Um pensamento lhe ocorreu: será que vou ter dificuldade para respirar? Não, claro que não. As chuvas na Terra eram freqüentes, e nunca tinha ouvido falar em casos de afogamento. Não, seria como no chuveiro. Era fácil respirar debaixo do chuveiro. Por outro lado, a chuva seria fria, e ela gostava de tomar banho quente. Sentiu uma grande paz. Não havia ninguém para vê-la, nem para observá-la, ninguém que ela tivesse que interpretar. Era ótimo não ter ninguém para interpretar. Que temperatura teria a chuva? Por que não a temperatura confortável da própria Nêmesis? Naturalmente, ficaria molhada, e sempre sentia frio quando saía do chuveiro molhada. Além disso, suas roupas ficariam molhadas. Seria tolice usar roupas na chuva. Ninguém entrava vestido no chuveiro. Se chovesse, tiraria a roupa. Era a coisa lógica a fazer. Só que… onde colocaria a roupa? Quando tomava banho, punha a roupa em uma máquina de lavar. Ali em Eritro, talvez pudesse colocá-las debaixo de uma pedra, ou construir um pequeno abrigo onde pudesse deixar as roupas nos dias de chuva. Afinal de contas, que sentido fazia usar roupas quando estava chovendo? Ou quando estava fazendo sol? As roupas eram necessárias para protegê-la do frio, claro. Mas nos dias quentes… Nesse caso, por que as pessoas usavam roupas em Rotor,onde nunca fazia frio? A não ser nas piscinas… isso lembrou Marlene de que os jovens esbeltos, com belos corpos, eram o primeiros a tirar as roupas e os últimos a vesti-las… E pessoas como Marlene simplesmente nunca se despiam em público. Talvez fosse por isso que as pessoas usavam roupas. Para esconder os próprios corpos. Por que as mentes também não tinham belezas para mostrar? Na verdade, tinham, só que as pessoas não apreciavam essas belezas. Admiravam corpos bem-feitos, mas torciam o nariz para mentes bem-feitas. Por quê? Ali em Eritro, porém, estava sozinha e podia tirar a roupa à vontade. Não havia ninguém para ridicularizá-la. Na verdade, podia fazer o que quisesse, porque tinha só para ela um mundo novo e confortável, um mundo vazio, um mundo que a envolvia como uma coberta macia, um mundo em silêncio. Silêncio. A palavra a deixou sobressaltada. Silêncio? Mas estava ali para ouvir de novo aquela voz. Dessa vez, não gritaria. Não ficaria com medo. Onde estava a voz? Como se a tivesse chamado, a voz disse: — Marlene! Seu coração deu um pulo. Procurou controlar-se. Não devia ficar nervosa. Olhou em torno e disse, calmamente: — Onde é que você está? — Não é… perci… preciso… falar. A voz era de Aurinel, mas não falava como Aurinel. Soava como se estivesse encontrando dificuldade para falar, mas que fosse melhorar com o tempo. — Vai melhorar — disse a voz. Marlene não tinha dito nada. Continuou calada. Limitou-se a pensar nas palavras: — Não preciso falar. Basta pensar. — Basta ajustar o padrão. Está conseguindo. — Mas ouvi você falar. — Estou ajustando seu padrão. Ë como se você estivesse me ouvindo. Marlene passou a língua nos lábios. Não devia ficar com medo. — Não há razão para ter medo — disse a voz que se parecia com a de Aurinel. — Você ouve tudo que eu penso, não ouve? — pensou ela. — Isso a incomoda. — Acho que sim. — Por quê? — Não quero que você saiba tudo que eu penso. Alguns dos meus pensamentos são particulares. — Tentou não pensar que era assim que os outros reagiam a ela, tentando esconder suas emoções, mas percebeu que era inútil. — Mas o seu padrão não é como os outros. — Meu padrão? — O padrão da sua mente. Os outros são… confusos… imperfeitos. O seu é… lindo! Marlene passou a língua de novo nos lábios e sorriu. O elogio a deixara radiante. Pensou com desdém nas outras mocinhas que tinham apenas… aparências. A voz na sua mente perguntou: — Esse último pensamento é particular? — É, sim. — Posso perceber a diferença. Não vou mais ler seus pensamentos particulares. Marlene estava ansiosa para ser elogiada de novo. — Conhece muitos padrões mentais? — Já vi muitos, desde que vocês hu… manos chegaram. Ele não tinha certeza da palavra? pensou Marlene. A voz não respondeu, e Marlene ficou surpresa. Pensando bem, a surpresa tinha sido uma sensação particular, mas ela própria não a havia encarado como particular. Talvez um pensamento particular assim o fosse, quer ela o visse daquela forma ou não. A mente havia dito que era capaz de perceber a diferença, e devia estar falando a verdade. A diferença aparecia no padrão. A voz também não respondeu a esse pensamento. Teria de fazer uma pergunta direta, mostrar que não se tratava de um pensamento particular. — A diferença aparece no padrão? Não precisava explicar melhor. A voz sabia do que estava falando. — Aparece, sim. Tudo aparece no seu padrão, porque ele é muito bem-feito. Marlene sentiu um arrepio de prazer. Achou que era de bom-tom retribuir o elogio. — O seu padrão também deve ser muito bem-feito. — É diferente. Meu padrão é muito distribuído. Ele é simples em cada ponto e só se torna complexo no conjunto. O seu é complexo para começar. Não há simplicidade nele. Além disso, o seu é diferente do dos outros seres da sua espécie, os outros são… confusos. Não consigo me comunicar com eles, impossível colocá-los em ordem, porque são muito frágeis. Eu não sabia. Meu padrão não é frágil. — Meu padrão é frágil? — Não, é muito adaptável. — Você tentou se comunicar com os outros, não tentou? — Tentei. A Praga de Eritro. (Não houve resposta. O pensamento era particular.) Marlene fechou os olhos e pensou intensamente, tentando localizar a origem dos pensamentos alienígenas. Estava fazendo aquilo de uma forma que ela própria não compreendia. Talvez estivesse fazendo tudo errado, talvez não estivesse fazendo coisa alguma. A mente poderia rir de sua falta de jeito… se fosse capaz de rir. Não houve resposta. — Pense em alguma coisa — pensou Marlene. — Em que devo pensar? — disse a voz. A voz não vinha de parte alguma. Estava no interior de sua mente. Marlene pensou (irritada com a própria incompetência): — Quando sentiu o padrão da minha mente pela primeira vez? — Quando estava no mundo dos humanos. — Em Rotor? — Em Rotor. De repente, a moça percebeu a verdade. — Você me queria. Você me chamou! — Chamei. Naturalmente. Por que sentira uma atração irresistível por Eritro? Porque estava contemplando Eritro, embevecida, no dia em que Aurinel foi dizer que a mãe estava à sua procura? Trincou os dentes. Precisava de mais informações. — Onde está você? — Em toda parte. — Você é o planeta? — Não. — Mostre-se para mim. — Aqui. — De repente, a voz tinha uma direção. Marlene estava olhando para o regato, e de repente se deu conta de que, enquanto se comunicava com a voz, o regato era a única coisa que seus sentidos podiam perceber. Era como se sua mente se tivesse fechado a todos os outros estímulos. De repente, o véu foi levantado. A água estava correndo pelo meio das pedras, borbulhando, formando um pequeno remoinho em um espaço marcado por várias daquelas bolhas. As pequenas bolhas giravam e estouravam, ao mesmo tempo que outras eram criadas, formando um padrão que, em essência, não mudava, embora os detalhes nunca se repetissem. De repente, uma por uma, as bolhas estouraram sem ruído, e a superfície da água ficou lisa, sem marcas, embora continuasse a girar. Como podia ver que estava girando se não havia marcas? Podia ver porque a superfície da água refletia a luz rósea de Nêmesis. Os reflexos formavam arcos em espiral. Seus olhos se fixaram na espiral, seguindo lentamente os arcos, que se junta ram para formar a caricatura de um rosto, com dois buracos escuros para os olhos e um risco para a boca. Enquanto observava, fascinada, o rosto foi ficando cada vez mais nítido. Afinal, conseguiu reconhecê-lo. Era o rosto de Aurinel Pampas. — Foi aí que você saiu correndo — disse Siever Genarr, pausadamente, em um esforço para abordar o assunto de forma racional. Marlene assentiu. — Da outra vez, saí correndo quando ouvi a voz de Aurinel. Desta vez, foi quando vi o rosto de Aurinel. — Uma reação muito natural. — Está dizendo isso para me consolar, tio Siever. — Que quer que eu faça? Dar-lhe umas palmadas? Deixe-me consolá-la, se isso me agrada. A mente, como você a chama, deve ter tirado a voz e o rosto de Aurinel dos seus pensamentos. Você eram muito íntimos? Marlene olhou para ele, desconfiada. — Que quer dizer com isso? — Nada de muito horrível. Eram amigos? — Éramos, sim. — Gostava dele Marlene hesitou por um momento e depois disse: — Acho que gostava, sim. — Você falou no passado. Não gosta mais? — Que adianta? Ele pensa em mim como… uma criança. Uma irmã mais moça, talvez. — O que pode ser natural, nas circunstâncias. Mas você ainda pensa nele… e é por isso que invocou sua voz, e depois o seu rosto. — Que quer dizer com “invocou”? Era a voz dele! Era o seu rosto! — Tem certeza? — Claro que tenho! — Contou à sua mãe? — Não. Nem uma palavra. — Por quê? — Ora, tio Siever! O senhor conhece a mamãe! Sabe como ficaria nervosa. Vai dizer que é porque gosta de mim, mas isso não torna as coisas mais fáceis. — Você me contou tudo, Marlene, e sabe que gosto muito de você. — Eu sei, tio Siever, mas o senhor não fica nervoso com facilidade. Encara as coisas com lógica. — Devo tomar isso como um elogio? — Foi essa a minha intenção. — Nesse caso, vamos recapitular o que sabemos e tentar analisar a situação de forma lógica. — Está bem, tio Siever. — Para começar, existe uma forma de vida superior neste planeta. — Existe. — E não é o próprio planeta. — Não, estou certa de que não. Ele próprio negou essa possibilidade. — Mas é um único indivíduo. — Essa é a minha impressão. O problema, tio Siever, é que a coisa não funciona como uma simples leitura de pensamentos. Não é como se a gente estivesse conversando, só que sem usar palavras. Recebo imagens completas, como se estivesse olhando para uma figura inteira, e não para os pontinhos claros e escuros de que é feita. — E a impressão que tem é de que se trata de um único indivíduo. — Isso mesmo. — E inteligente. — Muito inteligente. — Mas não tecnológico. Não encontramos nenhum sinal de tecnologia neste planeta. O ser inteligente e invisível que habita este mundo pode pensar, filosofar, observar, mas não faz nada de concreto. Estou certo? Marlene hesitou. — Não posso ter certeza, mas acho que você tem razão. — Foi aí que nós chegamos. Quando acha que ele percebeu que havíamos chegado? — Não faço idéia — disse Marlene, sacudindo a cabeça. — Ora, querida, ele sabia da sua existência quando você ainda estava em Rotor. Deve ter se dado conta da nossa presença assim que entramos no Sistema de Nêmesis. Não concorda? — Não, tio Siever. Acho que ele só ficou sabendo da nossa existência quando pousamos em Eritro. Isso atraiu sua atenção, ele olhou em volta e descobriu Rotor. — Pode ser. Logo em seguida, começou a fazer experiências com as mentes dos seres que haviam desembarcado em Eritro. Provavelmente, eram as primeiras mentes que conhecia, além da sua. Há quanto tempo ele existe, Marlene? Faz alguma idéia? — Não sei por que, tio Siever, mas tenho a impressão de que vive há muito tempo. Talvez seja tão antigo quanto o planeta. — Talvez. Seja como for, esta foi a primeira vez em que esteve exposto a mentes alienígenas. Concorda com isso, Marlene? — Concordo. — Ele começou a fazer experiências com essas novas mentes, e, como conhecia muito pouco a respeito delas, danificou-as sem querer. O resultado ficou conhecido como a Praga de Eritro. — Isso mesmo! — exclamou Marlene. — Ele não disse nada sobre a Praga, mas acho que faz sentido. — E quando ele percebeu que suas experiências estavam sendo prejudiciais deixou de fazê-las. — Foi por isso que não apareceram novos casos da Praga. — E isso nos mostra que o ser está bem-intencionado e não tem intenção de prejudicar outras mentes. — Isso mesmo! — exclamou Marlene, satisfeita. — Tenho certeza disso! — Mas o que é esse ser? Um puro espírito? Algo totalmente imaterial? Algo fora do alcance dos nossos sentidos? — Não faço a menor idéia, tio Siever — suspirou Marlene. — Deixe-me repetir o que ele lhe disse. Interrompa-me se eu estiver errado. Ele disse que seu padrão é “muito distribuído.” Que é “simples em cada ponto e só se torna complexo no conjunto.” Que “não é frágil”. Estou certo? — Está certo. — A única forma de vida que encontramos em Eritro foram os procariotes, os organismos unicelulares parecidos com as bactérias da Terra. Se não quisermos aceitar a existência de um ser imaterial, teremos que nos contentar com esses procariotes. É possível que essas pequenas células, que parecem independentes, sejam na verdade parte de um organismo de dimensões planetárias? Nesse caso, o padrão mental seria muito distribuído. Seria simples em cada ponto e só se tornaria complexo no conjunto. E não seria frágil, pois mesmo que perdesse uma boa parte dos seus elementos, o organismo como um todo não seria muito afetado. Marlene olhou para Genarr. — Quer dizer que estive conversando com micróbios? — Não posso dizer com certeza, Marlene. E apenas uma hipótese, mas explica muito bem o que já sabemos. Além disso, Marlene, se pensarmos nos cem bilhões de células que compõem o seu cérebro, cada uma delas, isoladamente, não é grande coisa. No seu organismo, as células cerebrais estão concentradas em uma estrutura compacta. Se em outro organismo elas estiverem distribuídas no espaço e se comunicarem, digamos, por ondas de rádio, a diferença será tão grande assim? — Não sei — disse Marlene, com ar pensativo. — Deixe-me fazer-lhe outra pergunta, mais importante ainda. O que essa forma de vida deseja de você? Marlene pareceu surpresa. — Ele pode conversar comigo, tio Siever. Pode transferir idéias para mim. — A sua impressão, portanto, é de que ele só deseja alguém para conversar? Acha que, quando nós chegamos, ele se deu conta pela primeira vez de que era um ser solitário? — Não sei. — Não teve nenhuma impressão nesse sentido? — Não. — Ele poderia nos destruir — disse Genarr, falando consigo mesmo. — Poderia nos destruir com toda a facilidade, se se cansasse de você. — Não, tio Siever. — Mas ele decididamente me atacou quando tentei impedir que você se comunicasse com ele. Também atacou D’Aubisson, sua mãe e um guarda. — É verdade, mas isso foi só para impedi-los de interferir. Não causou nenhum dano permanente. — Ele se dá a todo esse trabalho só para que você vá conversar com ele. Isso não me parece um motivo suficiente. — Talvez o motivo seja algo que não podemos compreender. Talvez sua mente seja tão diferente que ele não pode nos explicar o motivo. Talvez o verdadeiro motivo não faça sentido para nós. — Mas a mente dele não é tão diferente que ele não possa conversar com você. Ele recebe idéias de você e lhe transmite as suas, não é? Vocês dois se comunicam, não é? — É verdade. — E ele compreende suficientemente bem o seu modo de pensar para tentar tornar-se simpático adotando o rosto e a voz de Aurinel. Marlene baixou os olhos. — Já que ele nos compreende tão bem, devemos ser capazes de compreendê-lo também, e descobrir o que quer de você. Isso pode ser muito importante, pois quem sabe o que pretende fazer em seguida? Só poderemos saber isso através de você, Marlene. Marlene estava tremendo. — Não sei como fazer isso, tio Siever. — Continue a se encontrar com ele. Ele parece gostar de você e provavelmente lhe contará. Marlene olhou para Genarr e pareceu estudá-lo por alguns instantes. — Está com medo, tio Siever. — Claro que estou com medo. Estamos lidando com um ser muito mais poderoso que nós. Se quiser, poderá destruir-nos a todos. — Não foi isso que eu quis dizer, tio Siever. Está com medo de mim. Genarr hesitou. — Ainda tem certeza de que não corre perigo em Eritro, Marlene? Não corre perigo conversando com esse ser? Marlene se levantou e disse, quase com arrogância: — Claro que não corro nenhum perigo. Ele seria incapaz de me fazer mal. Parecia muito confiante, mas Genarr estava preocupado. Afinal, o cérebro de Marlene tinha sido ajustado pela mente de Eritro. Como podia confiar nela? Afinal, aquela mente constituída por trilhões de procariotes não teria planos próprios, como Pitt? Para conseguir seus objetivos, não recorreria a meios tortuosos, como Pitt? Em suma: e se a mente estivesse mentindo para Marlene? Seria justo permitir que ela corresse o risco? Por outro lado, que diferença fazia? Teria ele realmente escolha? TRINTA E QUATRO PRÓXIMOS — Perfeito — disse Tessa Wendel. — Perfeito, perfeito, perfeito. — Fez um gesto como se estivesse pregando alguma coisa na parede. — Perfeito. Crile Fisher sabia do que ela estava falando. Duas vezes, em diferentes direções, tinham passado pelo hiperespaço. Duas vezes Crile tinha visto o padrão das estrelas se modificar. Duas vezes havia procurado o Sol, achando-o um pouco mais fraco da Primeira vez, um pouco mais brilhante da segunda. Já se sentia um veterano do hiperespaço. — O Sol não está interferindo, imagino — disse para Wendel. — Oh, está, mas é uma interferência perfeitamente previsível, de modo que a presença do Sol é para mim um prazer psicológico. — O Sol está bem longe. Imagino que o efeito gravitacional deva ser bem pequeno. — Sim, é pequeno — concordou Wendel —, mas não é desprezível. Passamos duas vezes pelo hiperespaço, e das duas vezes fomos levemente repelidos pelo Sol. Wu fez todos os cálculos, e o resultado final foi exatamente de acordo com as previsões. O homem é um gênio. Sabe programar como ninguém. — Deve saber — murmurou Fisher. — Agora não há mais dúvida, Crile. Amanhã estaremos na Estrela Vizinha. Poderíamos chegar hoje, se estivéssemos realmente com pressa. Não vamos nos aproximar muito da estrela, é claro. Sairemos do hiperespaço a uma distância segura. — Balançou a cabeça, com admiração. — Aquele Wu! Quando penso no que fez, não me canso de admirá-lo! — Tem certeza de que isso não a incomoda nem um pouco? — perguntou Fisher, com cautela. — Incomoda-me? Por quê? — Olhou para Fisher, surpresa. — Acha que eu devia ficar com ciúme? — Não sei, Tessa. Há alguma possibilidade de que Chao-Li Wu receba o crédito pela invenção do vôo superluminal e você seja esquecida, ou lembrada apenas como uma precursora? — Não, de modo algum, Crile. Agradeço por se preocupar comigo, mas minha posição é segura. Afinal, toda a matemática do processo foi desenvolvida por mim. Contribuí também na parte de engenharia, embora o projeto da nave deva ser atribuído, com justiça, a outras pessoas. O que Wu fez, basicamente, foi acrescentar um fator de correção às minhas equações. Um fator muito importante, é claro, e hoje podemos ver que o vôo superluminal jamais seria uma realidade sem ele, mas é apenas a cobertura do bolo. O bolo ainda é meu. — Ótimo. Se tem certeza disso, fico muito feliz. — Na verdade, Crile, espero que Wu venha a ser o líder das pesquisas sobre o vôo superluminal nos próximos anos. Meu apogeu já passou… isto é, no plano científico. Apenas no plano científico, Crile. Fisher sorriu. — Não precisa explicar. — Cientificamente falando, está na hora de entregar o bastão. O trabalho que fiz foi o coroamento de idéias que tive quando ainda era estudante de doutorado. Foram vinte e cinco anos de pesquisa, e cheguei o mais longe que podia. O que precisamos agora é de conceitos novos, idéias totalmente originais, uma exploração do desconhecido. E isso não sou capaz de fazer. — Ora, Tessa, não se subestime. — Esse nunca foi um dos meus defeitos, Crile. Os jovens estão aí justamente para isso, para contribuir com novas idéias. Os jovens não têm apenas cérebros jovens, eles têm cérebros novos. Wu é dono de um genoma que nunca apareceu antes na história da humanidade. Teve experiências que são exclusivamente suas, de mais ninguém. Ele pode ter novas idéias. Naturalmente, essas idéias se baseiam no que fiz, e ele deve muito aos meus ensinamentos. Wu é um discípulo meu, Crile, um fruto do meu intelecto. Tudo que ele faz depõe a meu favor. Com ciúme? Sinto-me orgulhosa. O que há, Crile? Você parece infeliz… — Não ligue para minha aparência, Tessa. Sinto que você está dissertando sobre a teoria do progresso científico. Não houve casos na história da ciência, como na de todas as outras atividades humanas, em que a inveja e o ciúme levaram vantagem, e professores detestaram os discípulos que os superaram? — Claro que houve. Poderia mencionar de cor uma dúzia de casos bem conhecidos, mas a verdade é que se trata de exceções, e não me considero uma exceção. Não digo que um dia não vá perder a paciência com Wu e com o Universo, mas isso ainda não aconteceu, e pretendo saborear o momento enquanto… Bolas, que foi agora? Apertou o botão “Receber” e o rosto jovem de Merry Blankowitz apareceu em três dimensões na tela do receptor. — Comandante — disse, em tom hesitante —, estamos tendo uma discussão aqui e talvez a senhora pudesse ajudar-nos. — É algum problema de vôo? — Não, Comandante. É apenas uma discussão a respeito de estratégia. — Entendo. Bem, não precisam vir todos para cá. Vou até a sala dos motores. — Wendel desligou o receptor. — Nunca vi Blankowitz tão séria. Que será que a está preocupando, Tessa? — Não adianta ficarmos aqui especulando. Vou até lá descobrir — disse Wendel, fazendo um gesto a Fisher para que a seguisse. Ali estavam os três, sentados na sala dos motores, todos com as cadeiras no chão, embora no momento estivessem sem gravidade. Poderiam muito bem estar sentados cada um em uma parede, mas isso não seria compatível com a seriedade da situação, além de representar um desrespeito para com o comandante. Havia um código completo de etiqueta para a situação de gravidade nula. Wendel não gostava da gravidade zero. Se pudesse fazer valer seus privilégios de comandante, teria insistido em manter a nave em rotação o tempo todo, de modo a produzir uma aceleração centrífuga que simulasse a força de gravidade. Sabia perfeitamente que era mais fácil calcular uma trajetória quando a nave estava em repouso, mas o movimento de rotação não implicava uma complicação muito grande. Mesmo assim, insistir em um movimento de rotação teria sido um insulto para a pessoa que estava operando o computador. Etiqueta, de novo. Tessa Wendel tomou seu lugar, e Crile Fisher não pôde deixar de notar (com um sorriso secreto) que cambaleava ligeiramente. Apesar de haver nascido em uma colônia, não se sentia perfeitamente à vontade no espaço. Ele próprio (mais um sorriso secreto, desta vez de satisfação), embora fosse um terráqueo, podia se mover com grande desembaraço em um ambiente de gravidade zero. Chao-Li Wu respirou fundo. Tinha um rosto largo, que combinaria melhor com um corpo atarracado, mas era mais alto que a média. Seus cabelos eram pretos e perfeitamente lisos, os olhos muito puxados. — Comandante — disse, em tom respeitoso. — Que é, Chao-Li? Se me disser que houve algum erro na programação, terei vontade de esganá-lo. — Nenhum erro, Comandante. Na verdade, é a precisão dos nossos cálculos que demonstra que devemos voltar para a Terra. Gostaríamos de discutir o assunto com a senhora. — Voltar para a Terra? Por quê? Ainda não cumprimos nossa missão. — Acho que sim, Comandante. Apenas não sabíamos qual era a nossa missão. Agora dispomos de um sistema prático para voar no hiperespaço, coisa que não tínhamos quando deixamos a Terra. — É verdade, mas aonde quer chegar? — Não podemos nos comunicar com a Terra. Se formos agora para a Estrela Vizinha e alguma coisa acontecer conosco, a Terra será privada da nossa descoberta, que é essencial para a evacuação da Terra antes que a Estrela Vizinha chegue. Em minha opinião, o mais importante agora é voltarmos para a Terra para relatarmos o que aprendemos durante o vôo. Wendel tinha escutado atentamente. — Compreendo. E você, Jarlow, qual é a sua opinião? Henry Jarlow era alto, louro e triste. Havia uma melancolia em sua expressão que dava uma impressão totalmente errônea a respeito do seu caráter, e os dedos compridos (que não pareciam nada delicados) eram mágicos quando trabalhavam no interior de computadores e outros instrumentos de bordo. — Acho que Wu tem razão, comandante. Se tivéssemos um sistema de comunicações superluminal, poderíamos comunicar à Terra o que aconteceu e seguir viagem. O que acontecesse depois conosco só teria importância para nós mesmos. Do jeito que estão as coisas, porém, não podemos correr o risco de que a informação a respeito da correção gravitacional seja perdida. — E você, Blankowitz? — perguntou Wendel. Merry Blankowitz se remexeu, pouco à vontade. Era uma mulher jovem e miúda, que usava cabelos compridos e uma franjinha na testa. A impressão geral era a de uma Cleópatra em miniatura. — Não sei — respondeu ela. — Não tenho uma opinião definida a respeito, mas talvez os homens estejam certos. Não acha que é importante levarmos a informação de volta para a Terra? Descobrimos um efeito muito importante nesta viagem e precisamos de naves maiores e melhores, com computadores projetados para levar em conta a correção gravitacional. Com o auxílio da equação corrigida, será possível fazer a viagem do Sistema Solar para a Estrela Vizinha em uma única transição, começando mais perto do Sol e terminando mais perto da Estrela Vizinha. Acho que a Terra tem o direito de saber. — Compreendo — disse Wendel. — Ao que parece, o argumento é que devemos informar à Terra o mais cedo possível a respeito da correção gravitacional. Será que isso é tão importante quanto vocês pensam? Wu, você não teve a idéia da correção durante a viagem. Se bem me lembro, discutimos essa idéia faz alguns meses. — Pensou por um momento. — Faz quase um ano. — Não chegamos a discuti-la, comandante. A senhora disse que estava muito ocupada. Recusou-se a ouvir o que eu tinha a dizer. — Sim, admito que me enganei. Mas você colocou tudo no papel. Lembro-me de lhe dizer que, se me mandasse um relatório formal, eu o examinaria quando tivesse tempo. — Levantou a mão. — Sei que não cheguei a ler o relatório, e nem mesmo me lembro de tê-lo recebido, mas se conheço você, Wu, preparou um relatório detalhado, com todas as demonstrações matemáticas. Não fez isso, Wu? Não preparou um relatório? — Sim, preparei um relatório, mas era tudo especulação, e não esperava realmente que alguém acreditasse nele… como a senhora não acreditou, comandante. — Por que não? Nem todos são tão estúpidos como eu, Wu. — Mesmo que o levassem a sério, não haveria como demonstrar que eu estava certo. Quando chegarmos, poderemos apresentar uma prova concreta. — Depois de lançada a idéia, alguém se encarregará de testá-la. Você sabe como a ciência funciona. — Alguém — repetiu Wu, devagar. — Agora entendo porque está tão preocupado. Não tem medo de que a Terra fique privada do vôo superluminal, e sim de que você não receba o crédito pela descoberta. É isso? — Comandante, não pode me censurar. Um cientista tem todo o direito de se preocupar com questões de prioridade. Wendel parecia furiosa. — Já se esqueceu de que eu sou a comandante desta nave e sou eu que tomo as decisões? — Não me esqueci — disse Wu —, mas isto não é uma caravela do século XVIII. Somos todos cientistas, e nossas decisões devem ser tomadas de forma democrática. Se a maioria decidir voltar… — Espere — interrompeu Fisher. — Antes de continuar, se importa se eu disser uma coisa? Sou o único que ainda não se pronunciou. Se vai ser uma decisão democrática, tenho direito de manifestar minha opinião. Posso, comandante? — Vá em frente — disse Wendel, abrindo e fechando a mão como se estivesse com vontade de agarrar alguém pela garganta. — Há sete séculos e meio — começou Fisher —, Cristóvão Colombo partiu da Espanha, navegando para oeste. Algum tempo depois, descobriu a América, embora na ocasião não soubesse que se tratava de um novo continente. No caminho, observou que o desvio da bússola em relação ao norte geográfico, a chamada “declinação magnética”, variava com a longitude. Esta era uma descoberta muito importante. Na verdade, trata-se da primeira descoberta puramente científica realizada durante uma viagem marítima. “Agora me digam: quantos sabem que foi Colombo que descobriu a variação da declinação magnética? Quase ninguém. Quantos sabem que Colombo descobriu a América? Quase todo mundo. Suponham que, depois de observar a variação, Colombo tivesse resolvido fazer meia-volta e ir para a Espanha comunicar a descoberta ao rei Fernando e à rainha Isabel, para garantir a prioridade como descobridor do fenômeno. A comunicação seria recebida com um certo interesse. Mais tarde, os monarcas enviariam outra expedição, comandada, talvez, por Américo Vespúcio, que nesse caso teria sido o primeiro a chegar à América. Nesse caso, quem se lembraria de Colombo, o sujeito que tinha descoberto alguma coisa a respeito da bússola? Ninguém. Quem se lembraria de Vespúcio, que tinha descoberto a América? Todo mundo. “Vocês querem mesmo voltar? A descoberta da correção gravitacional será lembrada por uns poucos cientistas do ramo como um pequeno efeito colateral das viagens no hiperespaço. Mas a tripulação da próxima expedição, que nesse caso será a primeira a chegar à Estrela Vizinha, passará para a história como a primeira a chegar a outra estrela através do hiperespaço. Vocês três, incluindo você, Wu, não merecerão mais que uma nota de pé de página. “Podem estar com a impressão de que, como recompensa pela grande descoberta de Wu, serão convocados para fazer parte da segunda expedição, mas não penso assim. Igor Koropatski, que é Diretor do Serviço de Informações da Terra e aguarda ansiosamente o nosso retorno, está particularmente interessado em informações a respeito da Estrela Vizinha e seu sistema planetário. Vai explodir como a ilha de Krakatoa quando souber que voltamos no meio da viagem. Além disso, a Comandante Wendel será forçada a explicar que vocês três se amotinaram, o que constitui uma falta extremamente grave, mesmo que isto não seja uma caravela do século XVIII. Longe de serem convocados para a próxima expedição, vocês provavelmente seriam sumariamente demitidos. Não subestimem a frustração de Koropatski. “É melhor refletirem bastante, vocês três. Devemos continuar em direção à Estrela Vizinha? Ou voltar para casa? Houve um pesado silêncio. Por alguns instantes, ninguém disse nada. — Bem — disse Wendel, afinal —, acho que Fisher explicou a situação com muita clareza. Alguém tem alguma coisa a dizer? — Pensando melhor, acho que devemos prosseguir a viagem — disse Blankowitz. — Eu também — murmurou Jarlow. — E você, Chao-Li Wu? — perguntou Wendel. Wu franziu a testa. — Respeito a vontade da maioria. — Então está decidido. Vamos esquecer este incidente, mas espero que minha autoridade não volte a ser questionada, Quando ficaram sozinhos, Fisher disse: — Espero que não tenha se importado com minha interferência. Estava com medo de que você perdesse a calma sem necessidade. — Não, foi ótimo. A analogia com a viagem de Colombo foi simplesmente perfeita. Obrigada, Crile. — Tomou-lhe a mão e apertou-a. Fisher sorriu. — Tinha de justificar de alguma forma minha presença a bordo. — Você fez mais do que isso. Não tem idéia de como a atitude de Wu me deixou irritada, especialmente no momento em que eu acabava de lhe dizer como me sentia orgulhosa dele. Estava me sentindo tão satisfeita comigo mesma e com a ética da ciência que atribui a cada um o que lhe é devido, e ele coloca o orgulho pessoal acima do projeto! — Somos todos humanos, Tessa. — Eu sei. E constatar que Wu tem defeitos de caráter não altera o fato de que possui uma inteligência incrivelmente aguçada. — Tenho de admitir que minha própria intervenção se deveu a razões pessoais e não ao bem comum, por assim dizer. Quero chegar à Estrela Vizinha por motivos que nada têm a ver com o projeto. — Sei disso. Mesmo assim, obrigada. — Abraçou Fisher com lágrimas nos olhos. Ele a beijou. Era apenas uma estrela, ainda muito fraca para se destacar das outras. Na verdade, Crile Fisher não a teria localizado se não fosse pelos círculos concêntricos que a destacavam na tela. — Parece uma estrela comum, não acha? — comentou Fisher. Merry Blankowitz, que era a única que estava com ele no painel de observação, disse: — Isso é tudo que ela é, Crile. Uma estrela. — Estou querendo dizer que ela parece uma estrela como as outras, apesar de estarmos muito próximos. — Próximos é maneira de falar. Ainda estamos a um décimo de ano-luz de distância, o que não é tão próximo. A comandante é muito cautelosa. Eu teria saído do hiperespaço mais perto dela. Muito mais perto. Mal posso esperar. — Antes desta última transição, você estava disposta a voltar para casa, Merry. — No íntimo, queria continuar. Foram os outros que me convenceram. Quando você acabou de falar, senti-me uma perfeita idiota. Estava convencida de que, se voltássemos, seríamos chamados para uma segunda expedição, mas você tornou as coisas bem claras para mim. A verdade é que estou louca para usar o DN. Fisher sabia o que era o DN. Era o detector neurônico. Também estava ansioso para vê-lo em funcionamento. Detectar sinais de inteligência seria saber que haviam descoberto algo muito mais importante que todos os metais, rochas, gelos e vapores que poderiam existir em órbita em torno da Estrela Vizinha. — O DN não pode ser usado a esta distância? — Oh, não! Vamos ter de chegar muito mais perto. E não podemos nos aproximar simplesmente voando no espaço normal. Levaríamos mais de um ano. Depois que a comandante completar os estudos preliminares da Estrela Vizinha, vamos fazer mais uma transição. Em dois dias, no máximo, deveremos estar a uma ou duas unidades astronômicas da Estrela Vizinha. Aí poderei começar minhas observações e fazer algo de útil. É horrível a gente se sentir um peso morto. — Sim — murmurou Fisher, secamente. — Eu sei. Blankowitz olhou para ele, preocupada. — Desculpe, Crile. Eu não estava pensando em você. — Mas bem que podia estar. Não vou fazer nada de útil mesmo quando estivermos mais perto da Estrela Vizinha. — Você poderá ser útil se detectarmos sinais de inteligência. Poderá conversar com eles. Afinal, é um rotoriano. Fisher deu um sorriso triste. — Fui um rotoriano apenas por uns poucos anos. — Isso é suficiente, não acha? — Vamos ver. — Mudou deliberadamente de assunto. — Tem certeza de que o detector neurônico vai funcionar? — Certeza absoluta. Poderíamos seguir qualquer colônia em órbita só por sua irradiação de plexons. — Que são plexons, Merry? — Apenas um nome que inventei para designar as emissões fotônicas dos cérebros de mamíferos. Podemos detectar cavalos, você sabe, se a distância não for grande, mas aglomerações de seres humanos podem ser detectadas a distâncias muito maiores. — Por que plexons? — O nome vem de “complexidade”. Um dia, alguém vai usar os plexons não só para detectar a presença de vida mas também para estudar o funcionamento do cérebro. Inventei um nome para isso, também: “plexofisiologia”. Ou talvez “plexoneurologia”. — Você considera os nomes importantes? — Considero, sim. Os nomes científicos ajudam a transmitir idéias de forma concisa. Você não tem de dizer: “aquele campo da ciência que trata da relação entre isto e aquilo”. Você diz “plexoneurologia”… sim, este nome soa melhor. É uma abreviação. Economiza tempo. Além disso… — ela hesitou. — Sim? Além disso? As palavras saíram rapidamente: — Se eu inventar um nome e ele pegar, isso bastara para me assegurar um lugar na história da ciência. Já posso imaginar “O nome ‘plexon’ foi usado pela primeira vez por Merrilee Augina Blankowitz, em 2237, por ocasião do primeiro vôo da nave Superluminal.” Não soaria bem? — E se você detectar os seus plexons, Merry, e não houver seres humanos presentes? — Se descobrirmos uma forma de vida alienígena, você quer dizer? Isso seria ainda mais emocionante do que encontrar pessoas. Mas acho que as probabilidades são mínimas. Nossas decepções têm sido freqüentes nesta área. Achamos que poderia haver ‘pelo menos formas de vida primitivas na Lua, em Marte, em Calisto, em Titã. Não encontramos nenhuma. Tem havido especulações de todos os tipos: galáxias vivas, nuvens de poeira vivas, vida na superfície de uma estrela de nêutrons, coisas assim. Não há provas de que nada disso possa existir. Não, se detectarmos alguma coisa, serão seres humanos. Estou convencida disso. — Você não vai detectar os plexons emitidos pelas cinco pessoas a bordo? Nossas emissões não vão mascarar tudo que você possa receber do espaço? — Isto é uma complicação, Crile. Temos de compensar o DN de tal forma que todas as nossas emissões sejam canceladas. Basta haver uma pequena descompensação, e não seremos capazes de detectar coisa alguma. Um dia, Crile, detectores neurônicos automáticos serão enviados através do hiperespaço para procurar formas de vida em todo o Universo. Não haverá seres humanos nas vizinhanças, e só isso os tornará muito mais sensíveis que o detector que temos a bordo. Vamos saber onde a inteligência existe muito antes de visitá-la pessoalmente. Chao-Li Wu apareceu na porta. Olhou para Fisher com cara de nojo e perguntou à moça: — Que tal a Estrela Vizinha? — Não dá para dizer grande coisa, desta distância — respondeu Blankowitz. — Vamos fazer outra transição amanhã ou depois, e depois disso estaremos bem mais próximos — disse Wu. — Vai ser emocionante, não vai? — observou Blankowitz. — Vai, sim… se encontrarmos os rotorianos — disse Wu. Olhou para Fisher. — Mas será que vamos encontrá-los? Se era uma pergunta dirigida a Fisher, ele não respondeu. Ficou olhando para Wu, impassível. Será que vamos? pensou Fisher. A longa espera estava para terminar. TRINTA E CINCO CONVERGÊNCIA Como já foi observado, Janus Pitt não se permitia o luxo da autopiedade. Em qualquer outra pessoa, consideraria esse sentimento como um sinal imperdoável de fraqueza. Havia, porém, ocasiões em que se revoltava com o fato de que os habitantes de Rotor deixavam sempre as decisões desagradáveis por sua conta. Na verdade, havia um Conselho, legalmente eleito, que votava todas as leis e tomava todas as decisões… menos as importantes, as decisões das quais dependia o futuro de Rotor. Essas decisões ficavam por sua conta. Não que lhe fossem submetidas conscientemente. As questões importantes eram simplesmente ignoradas pelo Conselho, tornadas inexistentes por consenso. Ali estavam, em um sistema inabitado, construindo sem pressa novas colônias, convencidos de que o tempo se estendia, ilimitado, à sua frente. Em toda parte havia a calma convicção de que quando acabassem de colonizar o cinturão de asteróides (o que ainda iria levar várias gerações), a técnica da propulsão hiperespacial teria evoluído a tal ponto que seria relativamente fácil procurar e ocupar novos planetas. Havia tempo de sobra. Pitt parecia ser o único a compreender que o tempo era curto, que a qualquer momento, sem nenhum aviso prévio, o tempo de que dispunham poderia chegar ao fim. Quando o Sistema Solar descobriria Nêmesis? Quando alguma colônia resolveria seguir o exemplo de Rotor? Mais cedo ou mais tarde, aquilo tinha que acontecer. Já que Nêmesis estava se aproximando do Sol, a descoberta da estrela pelos habitantes do Sistema Solar se tornava cada vez mais provável a cada dia que passava. Com a ajuda de um programador que estava convencido de estar trabalhando em um problema de interesse apenas acadêmico, o computador de Pitt havia calculado que em menos de mil anos a descoberta de Nêmesis seria inevitável e as colônias começariam a se dispersar. Pitt então havia feito a pergunta: as colônias se dirigiriam para Nêmesis? A resposta era não. Aquela altura, a propulsão hiperespacial seria muito mais eficiente, muito mais barata. As colônias saberiam muito mais a respeito das estrelas próximas: quais as que tinham planetas, que tipo de planetas. Não se interessariam por uma anã vermelha, mas procurariam estrelas mais parecidas com o Sol. Com isso, restaria apenas a Terra, que estaria desesperada. Com medo do espaço, em franca decadência, mergulhando cada vez mais na lama e na miséria, que fariam quando o perigo de Nêmesis se tornasse evidente? Não podiam agüentar longas viagens. Eram terráqueos. Presos à superfície. Teriam de esperar até que Nêmesis se aproximasse. Seria sua única esperança. Pitt teve a visão de um mundo em ruínas procurando refúgio no sistema de Nêmesis, um sistema suficientemente compacto para manter a integridade durante a passagem pelo Sistema Solar, para permanecer ileso enquanto o Sistema Solar era destruído. Era um cenário terrível, mas inevitável. Por que Nêmesis não podia estar se afastando do Sol? Como tudo seria diferente! A descoberta de Nêmesis ficaria cada vez menos provável com o passar do tempo, e mesmo que a Terra a descobrisse, o seu uso como lugar de refúgio se tornaria cada vez menos conveniente. Se Nêmesis estivesse se afastando, a Terra nem precisaria de um lugar de refúgio. Mas a verdade era outra. Os terráqueos chegariam, hordas de homens degenerados, de todas as raças e culturas. Que podiam os rotorianos fazer a não ser destruí-los enquanto ainda estivessem no espaço? Mas teriam um Janus Pitt para mostrar a eles que era a única solução possível? Teriam um Janus Pitt nos anos anteriores à invasão, para armá-los e prepará-los para o embate? Entretanto, a análise do computador não queria dizer grande coisa. O Sistema Solar descobriria Nêmesis em menos de mil anos, dissera o computador. E se a descoberta ocorresse no dia seguinte? E se tivesse ocorrido havia três anos? Haveria alguma colônia a caminho? Todo dia Pitt acordava pensando: será este o dia? Por que o destino lhe reservara este papel? Por que todos dormiam tranqüilamente, certos de que seu mundo estava seguro, enquanto ele próprio tinha de conviver com a possibilidade de um desastre? Naturalmente, Pitt tinha tomado providências. Instalara um Serviço de Rastreamento no cinturão de asteróides, um órgão cuja função era supervisionar os receptores automáticos que constantemente varriam o céu, procurando detectar, à maior distância possível, as emissões de energia que indicariam a aproximação de uma colônia. Tinha levado algum tempo para implantar o sistema, mas fazia doze anos que todos os sinais suspeitos eram investigados. De vez em quando, algo parecia suficientemente estranho para ser comunicado a Pitt. Toda vez que isso acontecia, um alarma começava a tocar na cabeça de Pitt. Entretanto, todos os indícios até o momento tinham resultado em nada, e o alívio inicial era invariavelmente seguido por uma espécie de raiva dos técnicos do Serviço de Rastreamento. Em caso de dúvida, lavavam as mãos e levavam o caso a Pitt. Ele que decidisse, ele que se preocupasse, ele que tomasse as decisões difíceis. Era nesse ponto que a autopiedade de Pitt se tornava lacrimogênea e ele começava a se preocupar com a possibilidade de estar fraquejando. Havia este caso, por exemplo. Pitt manuseou o relatório que o computador tinha decodificado, e que dera origem àquele retrospecto mental dos serviços que desinteressadamente vinha prestando ao povo de Rotor. Era o primeiro relatório do Serviço de Rastreamento que lhe chegava às mãos em quatro meses, mas não lhe parecia importante. Uma fonte de energia suspeita estava se aproximando, mas parecia ser uma fonte pequena, dez mil vezes menor que o que seria de se esperar de uma colônia. Uma fonte tão pequena que era difícil de separar do ruído. Poderiam ter-lhe poupado o trabalho de examinar o relatório. A afirmação de que haviam captado uma configuração especial de comprimentos de onda, que parecia ser de origem humana, era positivamente ridícula. Como poderiam saber alguma coisa a respeito de uma fonte tão fraca, a não ser o fato de que não se tratava de uma colônia e portanto não poderia ser de origem humana? Aqueles idiotas não deviam me incomodar com bobagens, pensou Pitt. Pôs o relatório de lado e pegou a última mensagem de Ranay D’Aubisson. Aquela menina, Marlene, ainda não estava com a Praga. Insistia em expor-se ao perigo… e mesmo assim, permanecia ilesa. Pitt suspirou. Talvez não fizesse diferença. A garota queria ficar em Eritro, e se ficasse, seria tão conveniente como se pegasse a Praga. Eugenia Insigna certamente ficaria com ela em Eritro, e ele se livraria das duas. Na verdade, se sentiria mais seguro se o comando do Domo estivesse a cargo de D’Aubisson, e não de Genarr. Daria um jeito para que isso acontecesse no futuro próximo, de uma forma que não fizesse de Genarr um mártir. Seria seguro nomeá-lo Comissário de Novo Rotor? Isso seria certamente considerado como uma promoção e era pouco provável que Genarr se recusasse, pois, pelo menos em tese, ficaria no mesmo nível que o próprio Pitt. Ou seria arriscado oferecer a Genarr tanto poder? Havia uma alternativa? Teria de pensar no assunto. Ridículo! Como seria mais fácil se aquela menina Marlene tivesse feito uma coisa simples como pegar a Praga! Irritado com a recusa de Marlene em atendê-lo, pegou de novo o relatório a respeito da fonte de energia. Olhe para isso! Por que incomodá-lo com uma fonte tão pequena? Não podia ficar assim. Digitou no computador uma mensagem para ser transmitida imediatamente. Não queria mais ser incomodado com trivialidades. Estejam atentos para os Sinais de uma colônia! A bordo da Superluminal, as descobertas aconteceram como uma série de golpes de martelo, uma após outra. Ainda estavam a grande distância da Estrela Vizinha quando se tornou evidente que ela possuía um planeta. — Um planeta! — exclamou Crile Fisher, triunfante. — Eu sabia… — Não — disse Tessa Wendel —, não é o que você está pensando. Meta na cabeça, Crile, que existem planetas e planetas. Praticamente todas as estrelas dispõem de um sistema planetário. Afinal de contas, mais de metade das estrelas da Galáxia fazem parte de sistemas múltiplos, e os planetas são simplesmente estrelas pequenas demais para serem estrelas. Este planeta que estamos vendo não é habitável. Se o fosse, não poderíamos vê-lo a esta distância, especialmente iluminado pela luz fraca da Estrela Vizinha. — Está querendo dizer que é um gigante gasoso? — Claro que é. Teria ficado surpresa se não houvesse nenhum gigante gasoso girando em torno da Estrela Vizinha. — Mas se existe um planeta grande, pode haver planetas pequenos, também. — Talvez haja — admitiu Wendel —, mas duvido que sejam habitáveis. Ou serão frios demais ou a rotação estará sincronizada com a translação, caso em que uma face será muito fria e a outra muito quente. Tudo que Rotor poderia fazer, se estivesse aqui, seria colocar-se em órbita em torno da estrela, ou talvez em torno do gigante gasoso. — Pode ser que tenham feito exatamente isso. — Durante todos esses anos? — Wendel deu de ombros. — Não é impossível, mas não conte com isso, Crile. Os golpes seguintes foram mais chocantes. — Um satélite? — disse Tessa Wendel. — E por que não? Júpiter tem quatro satélites de grande porte. Que há de estranho em este gigante gasoso possuir um? — Este satélite não se parece com os que conhecemos no Sistema Solar, comandante — disse Henry Jarlow. — De acordo com as medidas que acabei de fazer, é aproximadamente do tamanho da Terra. — E o que é que você conclui desse fato? — perguntou Wendel, ainda indiferente. — Nada, necessariamente — disse Jarlow —, mas esse satélite me parece estranho. Gostaria de ser um astrônomo! — No momento — disse Wendel — eu gostaria que alguém a bordo fosse astrônomo, mas continue, por favor. Nós todos conhecemos alguma coisa de astronomia. — A questão é que, como o satélite gira em torno do gigante gasoso, mostra sempre a mesma face para o gigante gasoso. Em conseqüência, não mostra sempre a mesma face para a Estrela Vizinha, o que seria inevitável a esta distância, se fosse um planeta. Além disso, a temperatura na superfície, de acordo com minhas medidas, é relativamente uniforme e está acima do ponto de congelamento da água. E existe uma atmosfera relativamente densa. Não estou afirmando que sou capaz analisar todos os fatores. Co mo já disse, não sou astrônomo. Entretanto, em minha opinião, existe uma boa chance de que esse satélite seja um mundo habitável. Crile Fisher recebeu a notícia com um largo sorriso. — Para mim, não é surpresa — manifestou-se Fisher. — Igor Koropatski previu a existência de um planeta habitável, embora não dispusesse de nenhuma informação concreta. Foi apenas uma questão de raciocínio. — Verdade? Quando foi que ele lhe disse isso? — Algum tempo antes de partirmos. Ele afirmou que não achava provável que tivesse acontecido alguma coisa a Rotor durante a viagem até a Estrela Vizinha; se eles não voltaram, foi porque encontraram um planeta para colonizar. Aí está ele. — Por que ele lhe disse isso, Crile? Crile pensou um pouco e depois explicou: — Ele estava interessado em que o planeta fosse explorado tendo em vista sua possível ocupação pelos terráqueos, quando chegasse a hora de evacuar nosso antigo planeta. — E por que acha que ele não me disse? — Talvez tenha achado, Tessa, que eu seria o mais impressionável dos dois, o mais ansioso para explorar o planeta… — Por causa da sua filha? — Ele conhece a minha situação, Tessa. — E por que você não me contou nada até agora? — Não estava certo de que houvesse alguma coisa para contar. Achei melhor esperar para ver se Koropatski tinha razão. Agora sei que ele estava certo, e é por isso que estou lhe contando. De acordo com o raciocínio dele, o planeta tem de ser habitável. — Não é um planeta, e sim um satélite — corrigiu Wendel, visivelmente contrariada. — Isso não faz a menor diferença. — Escute, Crile — disse Wendel. — Ninguém parece estar levando em conta minha posição neste projeto. Koropatski diz um monte de bobagens para convencê-lo a explorar o sistema e levar as notícias para a Terra. Wu se mostra ansioso para voltar com as novidades antes mesmo de chegarmos a este sistema. Você está ansioso para se encontrar com a sua família. Em tudo isso, ninguém parece se lembrar de que eu sou a comandante e sou eu que vou tomar as decisões. — Seja razoável, Tessa — disse Fisher, em tom conciliador. — Que decisões são essas que você vai tomar? Tem alguma escolha? Você afirmou que Koropatski disse um monte de bobagens, mas a verdade é que o planeta esta aí. Ou satélite, se você prefere. Ele deve ser explorado. Sua existência pode significar a salvação dos terráqueos. Podemos estar diante do futuro lar da humanidade. Pode ser que uma pequena parte da humanidade já esteja vivendo ali. — Você é que precisa ser razoável, Crile. Um mundo pode ser do tamanho adequado, possuir uma temperatura amena e mesmo assim ser inabitável. Suponha que ele tenha uma atmosfera venenosa, um número enorme de vulcões ou um alto nível de radiatividade. Ele dispõe apenas de uma anã vermelha para lhe fornecer luz e calor, e está nas proximidades de um gigante gasoso. Não é um ambiente normal para um planeta do tipo da Terra, você não concorda? — Ainda acho que devemos explorá-lo. Mesmo que seja para descobrir, no final, que ele é inabitável. — Para isso, talvez tenhamos de pousar — disse Wendel, de cara feia. — Vamos chegar mais perto para termos uma idéia melhor da situação. Crile, procure não se entusiasmar demais. Não quero que se decepcione. Fisher assentiu. — Vou tentar… mas Koropatski me disse que havia um planeta habitável, quando todos os cientistas julgavam isso impossível. Você entre eles, Tessa. Mas aí está ele, e pode ser habitável. De modo que é melhor me deixar com a minha esperança. Talvez os habitantes de Rotor estejam naquele mundo, e talvez minha filha esteja lá, também. — A comandante está mesmo furiosa — disse Chao-Li Wu, com indiferença. — A última coisa que queria era encontrar um planeta aqui… um mundo, quero dizer, já que não gosta que a gente o chame de planeta… que pode ser habitável. Isso significa que vamos ter de explorá-lo e depois teremos de voltar para a Terra a fim de relatar nossa descoberta. Você sabe que não é isso que ela quer. É a primeira e única oportunidade que ela tem para explorar outros sistemas. Depois que terminar esta viagem, nunca mais poderá sair do Sistema Solar. Outros cientistas vão desenvolver as naves superluminais; outros comandantes vão explorar o espaço. Ela vai ficar na Terra, como assessora do projeto. E vai detestar. — E você, Chao-Li? Voltaria ao espaço, se lhe oferecessem uma nova oportunidade? — perguntou Blankowitz. — Acho que não gostaria de ficar vagando pelo espaço — respondeu Wu sem hesitar. — Não tenho alma de explorador. Mas sabe de uma coisa? A noite passada, me ocorreu que talvez eu gostasse de me estabelecer lá embaixo… se aquele mundo for habitável. E você? — Me estabelecer lá embaixo? Claro que não! Não digo que esteja disposta a passar o resto da vida na Terra, mas quero voltar para lá e matar a saudade antes de começar outra viagem. — Estive pensando. Este satélite é uma descoberta muito importante. Quem imaginaria encontrar um mundo habitável no sistema de uma anã vermelha? Ele deve ser explorado. Estou mesmo disposto a passar algum tempo aqui e pedir a alguém para defender na Terra minha prioridade na questão do efeito gravitacional. Você concordaria em defender meus interesses, Merry? — Claro que sim, Chao-Li. A Comandante Wendel também. Ela tem todos os dados, assinados e testemunhados. — É isso aí. E acho que a comandante está errada em querer explorar a Galáxia. Ela pode visitar cem estrelas sem encontrar um mundo tão interessante como este. Por que se preocupar com quantidade quando você tem qualidade bem à mão? — Para mim, o que preocupa a comandante é a filha de Fisher. E se ele conseguir encontrá-la? — Qual o problema? Pode levar a filha para a Terra com ele. Por que a comandante se importaria? — Há uma esposa envolvida, você sabe. — Já ouviu Fisher falar nela? — Acha que ele não… — Interrompeu-se ao ouvir o barulho de alguém chegando. Crile Fisher entrou e cumprimentou os dois. Blankowitz disse rapidamente, como que para desfazer o efeito da conversa anterior: — Henry terminou as medidas espectroscópicas? Fisher sacudiu a cabeça. — Não sei. O coitado está nervoso. Tem medo de interpretar os dados erradamente, penso eu. — Essa não! — exclamou Wu. — É o computador que interpreta os dados. Ele não precisa fazer nada. — Está sendo muito injusto! — protestou Blankowitz, com veemência. — Compreendo como Henry se sente. Vocês teóricos acham que tudo que nós físicos experimentais temos a fazer é colocar os dados em um computador, apertar uma tecla ou duas e ler os resultados. Não é bem assim. O que um computador diz depende do modo como foi programado, e nunca vi um teórico criticar um resultado experimental sem pôr a culpa no observador. Nunca ouvi um teórico dizer: “Deve haver alguma coisa errada com o compu…” — Espere aí! — interrompeu Wu. — Não vamos começar uma briga sem necessidade. Já me viu recriminar os observadores? — Se não gosta das observações de Henry… — Mesmo assim, estou interessado nelas. Não tenho nenhuma teoria a respeito deste mundo. — E por isso que está disposto a aceitar qualquer coisa que ele lhe fornecer? Nesse ponto, Henry Jarlow entrou, seguido de perto por Tesa Wendel. Ela parecia uma nuvem decidindo se estava disposta ou não a chover. — Muito bem, Jarlow, estamos todos aqui — falou Wendel. — Agora nos diga. O que descobriu? — O problema é que a radiação ultravioleta dessa estrela nanica não daria para avermelhar a pele de um albino. Tive de trabalhar com microondas, mas descobri, por exemplo, que existe vapor d’água na atmosfera do satélite. Wendel deu de ombros, impaciente. — Isso nós já sabemos. Um mundo do tamanho da Terra, com uma temperatura acima do ponto de congelamento da água, tem de ter vapor d’água na atmosfera. O que aumenta a probabilidade de ser habitável, mas não muito. — Oh, mas o mundo é habitado! — declarou Jarlow. — Quanto a isso, não há dúvida. — Por causa do vapor d’água? — Não. Tenho algo bem melhor. — O quê? Jarlow olhou em torno e perguntou: — Vocês diriam que um mundo é habitável se descobrissem que, de fato, ele é habitado? — Acho que sim — respondeu Wu, calmamente. — Está me dizendo que pode observar que ele é habitado desta distância? — perguntou Wendel. — É exatamente o que estou dizendo, comandante. Existe oxigênio livre na atmosfera… e em grande quantidade. Pode me dizer como o oxigênio foi parar lá sem fotossíntese? E pode me dizer como pode haver fotossíntese na ausência de vida? E pode me dizer como um mundo pode ser inabitável se possui formas de vida que produzem oxigênio? Todos ficaram em silêncio por um momento. — Isso é extremamente improvável, Jarlow. Tem certeza de que não cometeu um erro de programação? — retrucou Wendel. Blankowitz piscou o olho para Wu, como quem diz: “Está vendo?” Jarlow respondeu, muito sério: — Nunca cometi um erro de programação desse tipo em toda a minha vida. Entretanto, estou pronto a me retratar se algum dos presentes achar que entende mais de análise espectroscópica do que eu. Crile Fisher, que havia adquirido uma autoconfiança considerável desde o episódio da exigência de Wu de que voltassem para a Terra, não hesitou em se manifestar: — Escutem, quando estivermos mais próximos teremos mais dados para julgar, mas por que não supomos que a análise do Dr. Jarlow está correta e tentamos raciocinar a partir desta hipótese? Se existe oxigênio na atmosfera deste mundo, não podemos imaginar que ele foi terraformado? Todos olharam para ele. — Terraformado? — repetiu Jarlow, surpreso. — Isso mesmo, terraformado. Por que não? Temos um mundo com todas as condições necessárias à vida, exceto pelo fato de possuir uma atmosfera composta de nitrogênio e dióxido de carbono, característica dos mundos estéreis, como Marte e Vênus. Alguém joga algumas algas no oceano e em pouco tempo, “Adeus, dióxido de carbono”, “Seja bem-vindo, oxigênio”. Ou talvez seja preciso fazer outra coisa. Não sou perito no assunto. Ainda estavam olhando para ele. — A razão pela qual toquei no assunto é que me lembrei de que aprendi alguma coisa a respeito de terraformação quando morava em Rotor. Assisti a alguns seminários sobre o assunto porque achei que poderiam ter alguma coisa a ver com o programa de propulsão hiperespacial. Estava enganado, mas pelo menos fiquei sabendo o que era terraformação. — Sabe quanto tempo leva para terraformar um planeta, Fisher? — disse Jarlow. Fisher abriu os braços. — Por que você não conta para nós? — Está bem. Rotor levou dois anos para chegar aqui… se é que chegou. Isso significa que está aqui há treze anos. Se Rotor fosse feito inteiramente de algas e se todas essas algas fossem jogadas no oceano, se reproduzissem e passassem a produzir oxigênio, para chegar ao nível atual, que calculo em dezoito por cento de oxigênio e apenas traços de dióxido de carbono, seriam necessários alguns milhares de anos. Talvez algumas centenas de anos, se as condições fossem extremamente favoráveis. Certamente levaria muito mais que treze anos. E, francamente, as algas são adaptadas às condições da Terra. Em outro mundo, poderiam não se reproduzir, ou se reproduzir muito lentamente, até se adaptarem. Treze anos seriam um prazo excessivamente curto para ocorrer qualquer mudança. Fisher pareceu não se abalar. — Ah, mas esse mundo tem muito oxigênio e pouco dióxido de carbono, de modo que se os rotorianos não têm nada a ver com isso, qual é a causa? Não acha que devemos supor que existe alguma forma de vida alienígena nesse mundo? — Foi o que eu supus — disse Jarlow. — É o que nós todos devemos supor — disse Wendel. — Uma vegetação nativa, capaz de executar a fotossíntese. O que não quer dizer que os rotorianos estejam nesse mundo, ou mesmo que tenham chegado a este sistema. Fisher parecia aborrecido. — Bem, comandante — disse, com formalidade proposital —, devo observar que também não quer dizer que os rotorianos não estejam neste mundo, ou que não tenham chegado a este sistema. Se o planeta possui uma vegetação nativa, isso significa apenas que os rotorianos puderam colonizá-lo imediatamente, sem necessidade de terraformá-lo primeiro. — Não sei — disse Blankowitz. — Não acho provável que seres humanos possam se alimentar de plantas alienígenas. Duvido que nosso organismo seja capaz de digeri-las e assimilá-las. Seria capaz de apostar que a maioria das plantas seria venenosa para nós. E se há vida vegetal, deve haver vida animal, com conseqüências imprevisíveis. — Mesmo nesse caso — disse Fisher —, é possível que os rotorianos cercassem um pedaço de terra, matassem toda a vegetação nativa e começassem a cultivar suas plantas. Imagino que essa plantação alienígena, se querem chamá-la assim, tenderia a se espalhar. — Suposição em cima de suposição — murmurou Wendel. — Seja com for — disse Fisher —, é inútil ficarmos aqui sentados, especulando, quando o lógico é explorarmos o mundo o melhor que pudermos, e da menor distância possível. Mesmo da superfície… se isso for praticável. — Concordo integralmente! — declarou Wu, com entusiasmo inesperado. — Sou biofísica, e se há vida no planeta, tenho obrigação de examiná-la — manifestou-se Blankowitz. Wendel olhou de um para outro, corou ligeiramente e disse: — Acho que tem razão. — Quanto mais perto chegamos, quanto mais informações colhemos, mais confusa fica a situação — disse Tessa Wendel. — Alguém duvida que este parece um mundo morto? Não há nenhuma iluminação artificial no hemisfério escuro; não há sinais de vegetação ou de qualquer outra forma de vida. — Não há sinais visíveis — disse Wu, friamente —, mas alguma coisa deve estar acontecendo para haver todo esse oxigênio no ar. Como não sou químico, não posso imaginar nenhum processo químico que seja capaz de conseguir esse feito. Alguém pode? “Na verdade — prosseguiu, sem esperar a resposta—, acho pouco provável que um químico pudesse oferecer uma explicação química. Se o oxigênio está lá, deve ter sido produzido por um processo biológico. “Isso se nos basearmos na experiência que temos com exatamente uma atmosfera que contém oxigênio: a da Terra. Pode ser que a Galáxia esteja cheia de atmosferas de oxigênio que não têm nenhuma relação com a vida. Pode ser que a Terra seja um dos poucos planetas com uma atmosfera cujo oxigênio tem origem biológica. — Não! — protestou Jarlow, zangado. — Não pode argumentar assim, comandante. Pode imaginar ambientes diferentes do da Terra, mas não pode esperar que as leis da natureza mudem de acordo com as suas conveniências. Se quer postular uma origem não-biológica para o oxigênio, precisa sugerir um mecanismo. — Não há nenhum sinal de clorofila na luz refletida por aquele mundo — argumentou Wendel. — Por que haveria? — disse Jarlow. — É provável que a luz da anã vermelha seja absorvida por outro composto biológico. Posso dar uma sugestão? — Vá em frente — disse Wendel, de mau humor. — Está bem. Tudo que podemos dizer no momento é que os continentes daquele mundo parecem totalmente desertos. Isso não quer dizer nada. Até uns quatrocentos milhões de anos atrás, os continentes da Terra também eram estéreis, mas o planeta tinha muitas formas de vida. — Vida no mar. — Isso mesmo, comandante. Não há nada de errado com vida no mar. E isso inclui algas ou vegetais equivalentes, plantas microscópicas que funcionam como verdadeiras fábricas de oxigênio. As algas dos mares da Terra produzem oitenta por cento do oxigênio que todo ano é injetado na atmosfera. Isto não explica tudo? Explica a atmosfera de oxigênio e também a aparente ausência de vida. Também significa que podemos explorar o planeta em segurança, pousando em terra, onde não há vida, e estudando o mar com os instrumentos de que dispomos. Estudos mais detalhados podem ficar para a próxima expedição. — Está certo, mas os seres humanos são animais terrestres. Se Rotor tivesse chegado a este sistema, seus habitantes certamente teriam tentado colonizar os continentes do planeta, e não encontramos nenhum indício dessa colonização. Será mesmo necessário continuar a investigar este mundo? — perguntou Wendel. — É, sim — respondeu Wu. — Não podemos voltar apenas com deduções. Precisamos de fatos. Pode haver algumas surpresas. — E isso que você espera? — perguntou Wendel, com um toque de irritação na voz. — Não importa o que eu espero. Podemos voltar para a Terra e informar (sem realmente termos certeza) que não houve surpresas? Isso não seria muito lógico. — Fico surpresa ao ver que mudou tão radicalmente de posição. Era você que queria voltar para casa antes mesmo de chegarmos ao sistema da Estrela Vizinha. — Se bem me lembro, fui voto vencido — disse Wu. — Seja corno for, dadas as circunstâncias, temos obrigação de investigar. Sei, comandante, que se sente tentada a aproveitar a oportunidade para visitar outros sistemas estelares, mas agora que aparentemente encontramos um mundo habitável, devemos obter o máximo possível de informações a respeito de algo que pode ser muito mais importante para a Terra do que qualquer levantamento global que possa fazer. Além do mais — acrescentou, apontando para a janela com uma expressão que parecia ser de surpresa —, eu quero observar esse mundo mais de perto. Tenho a sensação de que será perfeitamente seguro. — A sensação? — disse Wendel, em tom irônico. — Tenho direito aos meus palpites, comandante. — Também tenho meus palpites, comandante, e estou preocupada — disse Merry Blankowitz, com voz rouca. Wendel olhou, admirada, para Merry. — Está chorando, Blankowitz? — indagou Wendel. — Não senhora. Estou apenas muito nervosa. — Por quê? — Estive usando o DN. — O detector neurônico? Naquele mundo deserto? Por quê? — Porque estou aqui para usá-lo. Por que esse é o meu trabalho. — E os resultados foram negativos — disse Wendel. — Sinto muito, Merry, mas quando visitarmos outros sistemas você terá novas oportunidades de usar seu aparelho. — Aí é que está, comandante. Os resultados não são negativos. Estou detectando sinais de inteligência naquele mundo e é por isso que estou nervosa. E um resultado ridículo, e não sei o que está errado. — Talvez o aparelho não esteja funcionando como devia — sugeriu Jarlow. — E tão novo que duvido que seja muito confiável. — Mas por que não estaria funcionando? Será que está fornecendo uma indicação falsa? Nesse caso, ele deveria fornecer indicações falsas quando fosse focalizado em outros astros, também. Experimentei o gigante gasoso, a Estrela Vizinha e pontos no espaço vazio, escolhidos ao acaso. Só obtenho uma resposta quando aponto o aparelho para o satélite. — Quer dizer — disse Wendel — que neste mundo, onde não detectamos ainda nenhum sinal de vida, você pode detectar sinais de inteligência? — É uma resposta muito fraca, mas está lá. — Comandante — interveio Fisher —, que tal o argumento de Jarlow? Se existe vida nos oceanos daquele mundo e não podemos detectá-la porque a água é opaca, pode ser vida inteligente, e nesse caso a Dra. Blankowitz poderia captar alguma coisa! — Fisher está certo — disse Wu. — A vida no mar, mesmo inteligente, não tem muitas oportunidades para desenvolver uma tecnologia. Afinal, não se pode usar o fogo dentro d’água. Uma espécie não-tecnológica pode ser quase invisível a distância, por mais inteligente que seja. Por outro lado, não deve ser perigosa, especialmente se não puder deixar o oceano e nós permanecermos em terra. O que torna ainda mais desejável uma investigação. — Vocês falam tão depressa que não tenho tempo de dar minha opinião — disse Blankowitz, irritada. — Estão todos errados. Se houvesse uma forma de vida marinha que fosse inteligente, o sinal que estou detectando viria apenas do mar. Na verdade, vem de todo o planeta, tanto dos continentes como dos oceanos. É incompreensível. — Vem da terra, também? — disse Wendel, incrédula. — Então o aparelho deve estar com defeito. — Mas não consigo encontrar nada de errado — disse Blankowitz. — É isso que me deixa aflita. Simplesmente não dá para entender. — Depois, acrescentou, com voz cansada: — É um sinal muito fraco, mas está lá. — Acho que posso explicar — disse Fisher. Todos os olhos se voltaram para ele, que se colocou imediatamente na defensiva. — Posso não ser um cientista — disse —, mas isso não significa que eu não possa contribuir para a discussão. Existe inteligência no mar, mas não podemos vê-la por causa da água. Isso faz sentido. Acontece que também existe inteligência nos continentes. Ora, essa inteligência também pode estar escondida. Pode estar no subsolo. — No subsolo? — repetiu Jarlow, indignado. — Por que estaria no subsolo? Não há nada errado com o ar, com a temperatura, com nenhum dos parâmetros ambientais. De que a forma de vida estaria se protegendo? — Da luz, por exemplo — sugeriu Fisher. — Estou me referindo aos rotorianos. Suponha que eles realmente colonizaram o planeta. Por que se submeteriam a viver sob a luz vermelha da Estrela Vizinha, luz na qual nenhuma planta rotoriana poderia florescer, luz que provavelmente deixaria os próprios habitantes deprimidos? No subsolo, eles poderiam ter iluminação artificial, mais adequada a suas necessidades. Além disso… — fez uma pausa. — Prossiga. Que mais? — quis saber Wendel. — Bem, é uma característica dos rotorianos. Eles sempre viveram no interior de um mundo artificial. É a isso que estão acostumados, é isso que consideram normal. Não gostariam de viver na superfície de um mundo. Achariam mais natural construir cidades subterrâneas. — Acha, então, que o detector neurônico está revelando a presença de seres humanos sob a superfície do planeta? — perguntou Wendel. — Isso mesmo. Por que não? É a camada de solo entre as cidades subterrâneas e a superfície enfraquece consideravelmente o sinal. — Mas Merry está dizendo que obteve a mesma resposta no mar e em terra — objetou Wendel. — No planeta inteiro. O sinal é praticamente constante — confirmou Blankowitz. — Nenhum problema — disse Fisher. — Inteligência nativa no mar, rotorianos em terra, no subsolo. Que tal? — Um momento — disse Jarlow. — Você está obtendo sinais em toda parte, não é verdade, Blankowitz? — Isso mesmo. As flutuações são muito pequenas. De acordo com o aparelho, a inteligência está uniformemente distribuída por todo o planeta. — Talvez isso seja possível no mar — disse Jarlow —, mas como seria possível nos continentes? Você supõe que os rotorianos, em apenas treze anos, conseguiram construir um complexo de túneis em toda a superfície terrestre deste mundo? Se o detector tivesse indicado uma ou duas concentrações de vida inteligente, eu aceitaria a possibilidade de se tratar dos rotorianos. Mas toda a superfície? E impossível! — Devo concluir, Henry — disse Wu —, que você acredita que exista uma inteligência alienígena espalhada por todo o subsolo? — Não vejo a que outra conclusão podemos chegar — afirmou Jarlow —, a menos que o aparelho de Blankowitz esteja fornecendo resultados totalmente espúrios. — Nesse caso — disse Wendel —, talvez não seja seguro descermos para investigar. Não podemos garantir que a inteligência alienígena seja amistosa, e a Superluminal não é uma nave de guerra. — Acho que é cedo para desistirmos — disse Wu. — Temos de descobrir como é essa vida alienígena e se pode interferir com nossos planos de trazer para cá a população da Terra. — Existe um lugar onde o sinal é um pouco mais intenso — disse Blankowitz. — A diferença não é grande. Querem que eu o localize de novo? — Vá em frente — disse Wendel. — Podemos examinar cuidadosamente as vizinhanças e decidir se é seguro ou não descer lá. Wu sorriu. — Estou certo de que não vamos correr nenhum perigo. Wendel se limitou a olhar para ele, muito séria. O traço mais estranho da personalidade de Saltade Leverett (na opinião de Janus Pitt) era que ele gostava de viver no cinturão de asteróides. Aparentemente, havia pessoas que realmente gostavam da solidão, que apreciavam o vazio. — Não que eu não goste das pessoas — costumava explicar Leverett. — Posso vê-las na holovisão, conversar com elas, escutá-las, rir com elas. Posso fazer o que quiser, menos sentir o seu toque e o seu odor, e quem está interessado nisso? Além do mais, estamos construindo cinco colônias no cinturão de asteróides; posso visitar qualquer uma delas se sentir saudade do cheiro das pessoas. Nas raras ocasiões em que Leverett visitava Rotor (a “metrópole”, como insistia em chamá-lo), ficava olhando de um la do para o outro, como se estivesse com medo que as pessoas o cercassem. Olhava desconfiado até para as cadeiras, e se sentava escorregando para o lado, como se quisesse se livrar da aura que o ocupante anterior havia deixado. Janus Pitt sempre havia achado que ele era o Comissário ideal para o Projeto Asteróides. O cargo lhe conferia uma autoridade absoluta sobre tudo que acontecia na periferia do Sistema Nemesiano. Isso incluía não só as colônias em construção, mas o próprio Serviço de Rastreamento. Tinham acabado de almoçar no apartamento de Pitt, pois Saltade preferia passar fome a fazer um refeição em um lugar público. Pitt, na verdade, tinha ficado surpreso por Leverett concordar em comer com ele. Pitt examinou-o disfarçadamente. Leverett era tão magro e curtido, seus músculos e tendões eram tão visíveis, que parecia que nunca tinha sido criança e nunca ficaria velho. Os olhos eram de um azul aguado, os cabelos de um louro pálido. — Quando foi a última vez que esteve em Rotor, Saltade? — perguntou-lhe Pitt. — Há quase dois anos, e acho uma falta de consideração me fazer passar por isso de novo, Janus. — Ora, que foi que eu fiz? Tenho certeza de que não fui eu que mandei chamá-lo, embora, como meu velho amigo, você seja bem-vindo a qualquer hora. — Foi como se tivesse me mandado chamar. Que mensagem foi aquela que mandou, dizendo que não queria ser incomodado com trivialidades? Será que ficou tão importante que não pode mais se ocupar das tarefas do dia-a-dia? O sorriso de Pitt ficou amarelo. — Não tenho a menor idéia do que está falando, Saltade. — Mandamos um relatório para você, informando que tinha sido observada uma radiação suspeita proveniente do espaço. Você respondeu dizendo que não queria ser incomodado com trivialidades. — Oh, isso! — (Pitt se lembrou. Tinha sido aquele momento de irritação e autopiedade. Ele também tinha direito de se irritar, às vezes.) — Saltade, o seu pessoal está lá para me avisar se alguma colônia for detectada. Não precisa me comunicar tudo que acontece. — Se é assim que deseja, está muito bem. Acontece que eles observaram uma coisa que não é uma colônia e ficaram com medo de enviar um relatório para você. Mandaram um para mim e pediram que o encaminhasse a você, apesar de sua recomendação para não incomodá-lo com informações banais. Acham que sei lidar com você, Janus, mas estou começando a desconfiar que isso não é verdade. A idade está deixando você rabugento, Janus? — Deixe de conversa fiada, Saltade. Que foi que eles observaram? — disse Pitt, com um jeito mais do que rabugento. — Eles observaram uma nave. — Uma… nave? Não era uma colônia? Leverett levantou a mão. — Não era uma colônia. Como eu disse, era uma nave. — Não compreendo. — Que há para compreender? Precisa de um computador? O seu está logo ali. Uma nave é um veículo espacial, com uma tripulação a bordo. — É muito grande? — Deve ter capacidade para meia dúzia de pessoas. — Então tem que ser uma das nossas. — Não é, não. Sabemos onde se encontram todas as nossas naves. Esta simplesmente não foi fabricada em Rotor. O Serviço de Rastreamento fez algumas investigações por conta própria. Nenhum computador, em parte alguma do sistema, esteve envolvido na construção de uma nave como aquela, e ninguém poderia construir uma nave como aquela sem o auxilio de um computador. — Qual é a conclusão? — A conclusão é que não se trata de uma nave rotoriana. Tem de vir de outro lugar. Enquanto ainda havia a possibilidade de que tivesse sido fabricada por nós, meus rapazes ficaram quietos e evitaram incomodá-lo, atendendo a suas instruções. Quando verificaram que não podia ser uma das nossas, vieram falar comigo e disseram que você devia ser avisado, mas não tinham coragem de fazê-lo. Sabe, Janus, às vezes maltratar as pessoas pode ser contraproducente. — Cale a boca! — disse Pitt, impaciente. — Como pode não ser uma das nossas? De onde viria? — Só pode vir do Sistema Solar. — Impossível! Uma nave do tamanho que você descreveu, com meia dúzia de tripulantes a bordo, jamais poderia fazer a viagem do Sistema Solar para o Sistema Nemesiano. Mesmo que eles tenham descoberto a propulsão hiperespacial, meia dúzia de pessoas não poderiam sobreviver no espaço durante dois anos. Nada menos que uma colônia completa, um mundo auto- suficiente, poderia completar com sucesso a viagem interestelar! — Acontece que detectamos uma nave de pequeno porte que não foi fabricada em Rotor. Isso é um fato, e não temos escolha a não ser aceitá-lo. De onde você acha que ela vem? A estrela mais próxima, depois de Nêmesis, é o Sol, não é? Se a nave não vem do Sistema Solar, vem de outro sistema ainda mais distante. Se acha que uma viagem de dois anos no espaço é impossível, uma viagem mais longa também o seria. — E se a nave não tiver sido construída por seres humanos? — argumentou Pitt. — Suponha que haja outras formas de vida capazes de permanecer no espaço por períodos mais longos… — Ou suponha que haja seres deste tamanhinho — disse Leverett, mostrando uma distância de um centímetro com o polegar e o indicador —, e a nave seja uma colônia para eles. Acontece que isso não pode ser. Eles não são alienígenas. Não são pigmeus. Os tripulantes da nave podem não ser rotorianos, mas são humanos. Uma raça alienígena não construiria naves tão parecidas com as naves humanas. Não, a nave que detectamos tem de ser uma nave humana. Até o código de série que aparece no casco está escrito no alfabeto terrestre! — Você não tinha me dito. — Achei que não era necessário. — Pode ser uma nave humana, mas automática — sugeriu Pitt. — Talvez a tripulação seja composta de robôs. — Pode ser — concordou Leverett. — Nesse caso, será que é melhor acabar com ela? Não havendo seres humanos a bordo, não haverá nenhum problema ético. Estaremos destruindo propriedade alheia, mas, afinal de contas, eles invadiram nosso espaço aéreo. ― É uma idéia a ser considerada Leverett sorriu. ― Esqueça. Aquela nave não passou dois anos no espaço. ― Como assim? ― Já se esqueceu do estado em que Rotor estava quando chegamos aqui? Nós passamos mais de dois anos no espaço, metade desse tempo viajando no espaço normal, com uma velocidade ligeiramente menor que a da luz. A essa velocidade, a superfície sofreu a erosão resultante de colisões com átomos, moléculas e partículas de poeira. Foi preciso polir e remendar a superfície. Você não lembra? ― E essa nave? ― perguntou Pitt, sem se dar ao trabalho de confirmar que se lembrava. ― O casco está brilhando de novo. É como se tivesse viajado apenas alguns milhões de quilômetros no espaço normal. ― Isso é impossível. Não me venha com charadas! ― Não é impossível. Eles só viajaram alguns milhões de quilômetros no espaço normal. O resto do percurso… foi no hiperespaço. ― De que está falando? ― A paciência de Pitt estava chegando ao fim. ― De um vôo superluminal. ― Isso é teoricamente impossível. ― É mesmo? Se tiver outra explicação para os fatos, sou todo ouvidos. Pitt olhou para ele de boca aberta. ― Mas… ― Eu sei. Os físicos dizem que é impossível, mas mesmo assim eles estão aqui. Agora preste atenção. Se eles têm naves superluminais, têm também comunicações superluminais. O Sistema Solar sabe que estão aqui e o que está acontecendo. Se destruirmos a nave, o Sistema Solar ficará sabendo, e, um dia desses, seremos atacados por uma frota de naves superluminais. ― O que faria então? ― Pitt estava temporariamente incapaz de pensar. ― Que fazer a não ser recebê-los amistosamente, descobrir quem são, o que estão fazendo e o que pretendem? Desconfio que vão pousar em Eritro. Devemos ir para lá, também, e conversar com eles. ― Em Eritro? ― Se forem para Eritro, Janus, para onde acha que devemos ir? Pitt sentiu o cérebro começar a funcionar de novo. ― Já que foi você que teve a idéia, que tal fazer isso pessoalmente? Posso ceder-lhe uma nave e uma tripulação, Leverett. ― Quer dizer que você não vai? ― Um Comissário? Não ficaria bem. Afinal, ainda nem sei quem são. ― Entendo. Quer que eu enfrente sozinho os alienígenas, pigmeus, robôs ou quem quer que sejam. ― Vamos estar permanente em contato, Saltade. Som e imagem. ― À distância. ― É verdade, mas você será generosamente recompensado. ― É mesmo? Nesse caso… ― Leverett olhou para Pitt, especulativamente. Pitt esperou um pouco e depois disse: ― Vai fixar um preço? ― Vou sugerir um preço. Em troca por me encontrar com eles em Eritro, eu quero Eritro. ― Como assim? ― Eritro será meu novo lar. Estou farto dos asteróides. Estou farto dos rastreadores. Estou farto das pessoas. Quero um mundo deserto, só para mim. Quero ter uma boa casa, com uma área plana em volta para plantar e criar animais. ― Há quanto tempo está com essa idéia? ― Não sei. A coisa tomou forma aos poucos. Depois que cheguei aqui e pude provar de perto os ruídos e aglomerações de Rotor, Eritro me parece cada vez mais sedutor. Pitt franziu a testa. ― Não é só você que pensa assim. Está falando igualzinho àquela menina maluca. ― Que menina maluca? ― A filha de Eugenia Insigna. Conhece Insigna, não conhece? ― A astrônoma? Naturalmente. Mas não conheço a filha dela. ― É totalmente louca. Quer ficar em Eritro. ― Não acho que isso seja sinal de loucura. Pelo contrário. Se ela quer ficar em Eritro, isso mostra que tem juízo. Pensando bem, uma esposa até que não seria… Pitt levantou a mão. — Eu disse “menina”. — Quantos anos ela tem? — Quinze. — É? Vai ficar mais velha num instante. Infelizmente, eu também vou. — Ela não é uma das suas beldades… — Se você prestar atenção, Janus, ver que eu também não sou nenhum galã. Muito bem. Já conhece minhas condições. — Quer que eu registre oficialmente no computador? — Não custa nada, não é, Janus? Pitt não sorriu. — Está bem. Vamos tentar descobrir onde aquela nave vai pousar, e prepará-lo para a viagem a Eritro. TRINTA E SEIS ENCONTRO — Marlene estava cantando esta manhã — disse Eugenia Insigna, em um tom que parecia um misto de surpresa e irritação. — Alguma coisa como “Lar, lar nas estrelas, os mundos são todos livres e felizes”. — Conheço a música — disse Siever Genarr. — Cantaria para você, mas sou muito desafinado. Tinham acabado de almoçar. Almoçavam juntos todos os dias, o que para Genarr era motivo de satisfação, embora a conversa invariavelmente recaísse em Marlene. Genarr desconfiava que Insigna podia estar recorrendo a ele por falta de opção, já que não podia conversar com mais ninguém a respeito da filha. Mesmo assim, não se importava. Qualquer que fosse o motivo… — Foi a primeira vez que a ouvi cantar — afirmou Insigna. — Descobri, para minha surpresa, que tem uma bela voz de contralto. — Deve ser sinal de que se sente feliz. Acho que encontrou um lugar no Universo, uma razão para viver. Não são todos têm essa sorte, Eugenia. A maioria atravessa a existência procurando um significado sem encontrá-lo e termina a vida imerso em desespero ou resignação. Sou do tipo resignado. Insigna forçou-se a sorrir. — Desconfio que não pensa o mesmo de mim. — Você não é do tipo desesperado, Eugenia, mas continua a lutar batalhas perdidas. Insigna baixou os olhos. — Está se referindo a Crile? — Se acha que estou, então estou. Na verdade, estava pensando em Marlene. Ela já saiu do Domo uma dúzia de vezes. Adora a experiência. Diverte-se muito, enquanto você fica aqui, sofrendo. O que a incomoda tanto, Eugenia? Insigna remexeu a comida com o garfo e disse: — E a sensação de perda. Sinto-me injustiçada. Crile fez sua escolha e eu o perdi. Marlene fez sua escolha e sinto que vou perdê-la… se não para a Praga, pelo menos para Eritro. — Eu sei. — Genarr estendeu-lhe a mão. Insigna segurou-a, distraidamente. — Marlene parece cada vez mais ansiosa para sair e cada vez menos interessada em ficar conosco. Vai passar cada vez mais tempo lá fora, até que um dia não voltará mais. — Você provavelmente tem razão, Insigna, mas a vida é uma sinfonia de perdas sucessivas. Perdemos nossa mocidade, nossos pais, nossos amores, nossos amigos, nosso conforto, nossa saúde e finalmente nossa vida. Negar as perdas é perder tudo isso de qualquer maneira e perder, além disso, o autocontrole e a paz de espírito. — Ela nunca foi uma criança feliz, Siever. — Você se culpa por isso? — Poderia ter sido mais compreensiva. — Nunca é tarde para começar. Marlene queria um mundo inteiro só para ela e está prestes a concretizar o seu sonho. Queria converter uma habilidade que sempre lhe trouxe embaraços em um método para se comunicar diretamente com outra Inteligência, e está conseguindo isso. Vai obrigá-la a desistir? Para não perdê-la, vai forçá-la a sofrer uma perda ainda maior? Insigna estava rindo, embora seus olhos estivessem cheios de lágrimas. — Você sabe convencer as pessoas, Siever. — Será? Minhas palavras nunca foram tão eloqüentes quanto os silêncios de Crile. — Havia outras influências — disse Insigna. Franziu a testa. — Não importa. Você está aqui agora, Siever, e está sendo um grande consolo para mim. — É o sinal mais seguro de que finalmente amadureci o fato de me sentir consolado por ser um consolo para você — disse Genarr, com um sorriso triste. — Não há nada de errado nisso. — Claro que não. Desconfio que muitos casais experimentaram as chamas da paixão e os delírios do êxtase sem jamais encontrarem consolo um no outro e, no final, estariam dispostos a trocar tudo por um pouco de carinho. Não sei. As pequenas vitórias são assim. Essenciais, mas pouco notadas. — Como você, meu pobre Siever? — Eugenia, passei a vida inteira tentando evitar a autopiedade. Não fique me tentando só para me ver estrebuchar. — Oh, Siever, não quero vê-lo assim. — E exatamente o que eu queria que você dissesse. Vê como sou esperto? Mas falando sério: se precisar de alguém para consolá-la pela ausência de Marlene, pode contar comigo. Um mundo inteiro não será suficiente para me afastar de você… se me pedir para ficar. Insigna apertou-lhe a mão. — Não mereço você, Siever. — Não use isso como desculpa para me recusar, Eugenia. Estou disposto a dedicar minha vida a você. Não deve impedir- me de fazer este sacrifício supremo. — Não encontrou ninguém melhor que eu? — Não procurei. Nem observei, entre as mulheres de Rotor, alguma que se interessasse por mim. Além disso, não acha que seria prosaico oferecer-me como prêmio a alguém que merecesse o meu amor? Não é muito mais romântico ser um prêmio imerecido, ser uma dádiva caída do céu? — Ser magnânimo, como um deus diante de um pecador. — Gostei disso. Você está começando a captar a idéia. Insigna riu de novo, mais à vontade. — Você é maluco! Sabe que nunca havia notado? — Tenho segredos insondáveis. Quando quer conhecer ainda melhor… o que vai levar algum tempo, naturalmente… — Foi interrompido pelo zumbido do intercomunicador. Franziu a testa. — Sou mesmo um azarado, Eugenia. Chego ao ponto (nem sei como) em que você está prestes a se jogar nos meus braços, e somos interrompidos. Espere aí! — O tom de voz mudou completamente. — Saltade Leverett. — Quem é ele? — Você não o conhece. Quase ninguém o conhece. É um homem de poucos amigos. Trabalha no cinturão de asteróides porque se sente bem lá. Faz alguns anos que não vejo o velho Saltade. Não sei por que disse “velho”, porque ele é da minha idade. “É uma mensagem confidencial. Para poder vê-la, vou ter de mostrar minhas impressões digitais. Isso significa que eu de via pedir a você para sair. Insigna fez menção de se levantar, mas Genarr fez um gesto para que ficasse. — Não seja boba, Eugenia. O segredo é a doença dos burocratas. Não ligo para essas coisas. — Colocou os polegares nos lugares apropriados, e a mensagem começou a aparecer. — Sempre imaginei como faria uma pessoa sem braços… — Interrompeu o que estava dizendo e passou a mensagem para Insigna. — Tenho permissão para ler? Genarr sacudiu a cabeça. — Claro que não, mas quem está se importando? Vá em frente. Insigna leu rapidamente a mensagem e olhou para Genarr. — Uma nave alienígena? A caminho daqui? Genarr assentiu. — Pelo menos é o que diz ai. — E Marlene? — exclamou Insigna, assustada. — Ela está lá fora! — Eritro a protegerá. — Como sabe? Os alienígenas podem ter poderes que desconhecemos. O ente de Eritro pode ser impotente contra eles. — Somos alienígenas para Eritro, e mesmo assim ele nos controla com facilidade. — Preciso ir lá fora. — De que vai adiantar? — Tenho que ir buscar Marlene. Venha comigo. Ajude-me. Vamos trazê-la de volta para o Domo. — Se estamos sendo invadidos por alienígenas todo-poderosos, não será mais seguro ficarmos aqui dentro? — Oh, Siever, isso é hora de usar a lógica? Por favor. Quero ver minha filha! Tinham tirado fotografias e agora as estavam examinando. Tessa Wendel sacudiu a cabeça. — É inacreditável. O mundo inteiro é absolutamente despovoado. Exceto por isto aqui. — Há sinais de inteligência em toda parte — disse Merry Blankowitz. — Não há margem para dúvidas, agora que estamos tão próximos. Despovoado ou não, os sinais de inteligência estão lá. — Mas são mais intensos naquele domo, certo? — Certo, comandante. Bem mais intensos. E mais familiares. Fora do domo, os sinais são estranhos, não consigo interpretá-los muito bem. — Nunca observamos nenhuma forma de inteligência que não fosse humana — disse Wu —, de modo que… Wendel voltou-se para ele. — Acha que a inteligência fora do domo não é humana? — Já que todos nós concordamos que seres humanos não poderiam ter colonizado todo o subsolo do planeta em apenas treze anos, não há outra conclusão possível. — E o domo? E humano? — Isso é diferente, e não depende dos plexons de Blankowitz — disse Wu. — Existem instrumentos astronômicos bem à vista. O domo, ou parte dele, é certamente um observatório astronômico. — Que impede os alienígenas de serem astrônomos? — perguntou Jarlow, em tom ligeiramente irônico. — Nada — disse Wu. — Mas eles teriam instrumentos próprios. Quando vejo o que me parece um espectrômetro de infravermelho computadorizado, exatamente do tipo que é fabricado na Terra… bem, vamos colocar as coisas desta forma. Esqueça a natureza dos seres. Estou vendo instrumentos que foram fabricados no Sistema Solar ou a partir de projetos desenvolvidos no Sistema Solar. Quanto a isso, não há a menor dúvida. É inconcebível que seres alienígenas pudessem construir esses instrumentos. independentemente dos seres humanos. — Muito bem — disse Wendel. — Concordo com você, Wu. Haja o que houver neste mundo, a lógica diz que existem, ou existiram, seres humanos debaixo daquele domo. — Não diga “seres humanos”, comandante — interveio Crile Fisher. — Eles são rotorianos. Não pode haver outro tipo de seres humanos neste mundo. — O domo é pequeno — observou Blankowítz. — Rotor era habitado por dezenas de milhares de pessoas. — Sessenta mil — murmurou Fisher. — Não caberiam todas nesse domo. — Nada impede que haja outros domos — disse Fisher. — Poderíamos dar mil vezes a volta a este mundo e deixar de ver objetos de todos os tipos. — Este é o único lugar do planeta onde captei um tipo diferente de plexons — declarou Blankowitz. — Também pode ser que esta seja apenas a parte visível de uma grande estrutura, que se estenda por vários quilômetros abaixo da superfície — argumentou Fisher. — Os rotorianos vieram para cá em uma colônia — lembrou Wu. — Talvez essa colônia ainda exista. Pode ser que existam várias colônias. Este domo pode ser apenas uma base avançada. — Não vimos nenhuma colônia — disse Jarlow. — Nem procuramos — retrucou Wu. — Até agora, nós nos concentramos exclusivamente neste mundo. — Este mundo foi o único lugar onde detectamos sinais de inteligência — disse Blankowitz. — Também não procuramos esses sinais em outros lugares — disse Wu. — Para detectar uma ou mais colônias, teríamos que esquadrinhar os céus, mas depois que você observou plexons neste mundo, interrompeu a busca. — Posso recomeçá-la, se acharem que é necessário. Wendel levantou a mão. — Se existem colônias, por que elas não nos detectaram ainda? Não tomamos nenhuma medida para ocultar nossas emissões de radiação. Afinal, tínhamos quase certeza de que não havia ninguém neste sistema. — Eles podem ter cometido o mesmo erro, comandante — disse Wu. — Não estavam nos esperando, e por isso não nos viram chegar. Ou, se nos viram, podem não saber ao certo quem somos (ou o que somos), e ainda estão decidindo o que fazer. O certo é que conhecemos um lugar na superfície desse enorme satélite onde deve haver seres humanos. Acho que devemos pousar e fazer contato com eles. — Acha seguro fazer isso? — perguntou Blankowitz. — Acho, sim — disse Wu, com firmeza. — Eles não vão atirar em nós assim que nos virem. Certamente vão querer saber alguma coisa a nosso respeito antes de tomarem uma atitude tão drástica. Além do mais, se é para ficarmos aqui parados, melhor voltarmos para casa para contar o que descobrimos. A Terra mandará uma frota inteira de naves superluminais, mas eles não vão ficar satisfeitos se chegarmos lá com tão poucas informações. Entraremos para a história como a expedição que correu da raia. — Sorriu suavemente. — Está vendo, comandante? Aprendi alguma coisa com Fisher. — Então você acha que devemos pousar e tentar fazer contato? — disse Wendel. — Exatamente — disse Wu. — E você, Blankowitz? — Estou curiosa. Não a respeito do domo, quanto à possibilidade de encontrarmos uma forma de vida alienígena. Também acho que devemos pousar. — Jarlow? — Gostaria de contar com armas mais apropriadas, ou um sistema de hipercomunicações. Se formos aniquilados, a Terra não saberá de nada, absolutamente nada, a respeito da nossa viagem. A próxima expedição chegará aqui na mesma ignorância do que nós. Por outro lado, se sobrevivermos ao contato, poderemos voltar com importantes informações. Acho que vale a pena corrermos o risco. — Não vai perguntar a minha opinião, comandante? — disse Fisher. — Aposto que você quer pousar para tentar falar com os rotorianos. — Exatamente Minha sugestão é a seguinte: vamos pousar sem chamar a atenção. Depois, saio sozinho da nave para fazer um reconhecimento. Se acontecer alguma coisa comigo, decolem novamente e voltem para a Terra. Sou dispensável, mas a nave deve voltar a qualquer custo. — Por que você? — perguntou Wendel, franzindo a testa. — Porque já conheço os rotorianos. Além disso… eu quero ir. — Eu, também — disse Wu. — Vou com você. — Por que arriscar dois de nós? — perguntou Fisher. — Porque dois correm menos risco do que um. Porque, se formos atacados, um de nós poderá ir buscar ajuda enquanto o outro se defende. Mais que tudo, porque, como você disse, já conhece os rotorianos. Talvez não consiga avaliar a situação de forma imparcial. — Está bem — disse Wendel. — Vamos pousar. Fisher e Wu sairão da nave para investigar. Caso, em algum momento, os dois não cheguem a um acordo quanto à melhor atitude a tomar, a decisão final será de Wu. — Por quê? — perguntou Fisher, indignado. — Wu acha que talvez você não consiga avaliar a situação de forma imparcial, e concordo com ele — respondeu Wendel, muito séria. Marlene estava feliz. Sentia-se como se estivesse aninhada em braços macios, protegida, defendida. Podia ver a luz avermelhada de Nêmesis e sentir o vento no rosto. Podia ver as nuvens cobrirem de vez em quando o grande disco de Nêmesis, tornando a luz mais fraca e acinzentada. Entretanto, podia ver tão facilmente com a luz cinzenta como com a luz vermelha, e podia ver sombras e matizes que formavam desenhos fascinantes. E embora o vento ficasse mais frio quando o disco de Nêmesis estava coberto, não chegava a ser desagradável. Era como se Eritro estivesse querendo agradá-la, aquecendo o ar em torno do seu corpo quando necessário, fazendo tudo para que se sentisse confortável. E ela podia conversar com Eritro. Tinha começado a pensar nas células que viviam em Eritro como o próprio Eritro. Como o planeta. Por que não? Individualmente, as células eram apenas células, tão primitivas (muito mais primitivas, na verdade) quanto as células do seu próprio corpo. Entretanto, o conjunto de todas as células procariotes formava um organismo, constituído por um quintilhão de pequenas peças interligadas, que se estendia a todo o planeta, e que podia muito bem ser imaginado como sendo o próprio planeta. Era estranho, pensou Marlene. Antes da chegada de Rotor, aquela gigantesca forma de vida jamais conhecera outro ser vivo exceto ela própria. Suas perguntas e sensações não tinham que existir inteiramente em sua mente. Eritro aparecia às vezes diante dela, como uma fumaça cinzenta, tomando a forma de uma diáfana figura humana Havia sempre uma sensação de movimento, de plasticidade. Ela não podia ver, mas sabia, sem sombra de dúvida, que milhões de células estavam partindo a cada segundo e sendo imediatamente substituídas por outras. As células procariotes não podiam sobreviver por muito tempo fora de uma película de água, de modo que contribuíam apenas temporariamente para a formação da figura, mas a figura em si era estável e nunca perdia sua identidade. Eritro não havia assumido novamente a forma de Aurinel. Chegara à conclusão de que a visão do rapaz deixava Marlene agitada. Por isso, só adotava formas neutras, impessoais, que mudavam ligeiramente de acordo com a ocasião. Eritro podia acompanhar as flutuações delicadas das configurações mentais de Marlene e ajustar a figura a essas configurações, fazendo-a parecer-se com alguém que ocupasse os pensamentos da moça naquele momento. Entretanto, quando Marlene tentava concentrar-se na figura e identificá-la, ela se transformava em outra coisa. Ocasionalmente, podia reconhecer alguma coisa: as maçãs do rosto da mãe, o nariz do tio Siever, traços de colegas da escola. Era uma sinfonia interativa. Mais que um diálogo, suas conversas com Eritro eram um balé mental impossível de descrever, uma experiência incrivelmente repousante, de uma variedade infinita, constituída em parte por imagens, em parte por vozes, em parte por pensamentos. Era uma conversa em tantas dimensões que a idéia de voltar a uma comunicação puramente verbal a deixava se sentindo vazia, sem vida. O seu dom de interpretar a linguagem corporal se desenvolvera em algo que jamais imaginara. Tornara-se capaz de trocar pensamentos com muito mais fluência (e profundidade) do que através de um método primitivo como o da fala. Eritro lhe explicou (ou por outra, lhe transmitiu) o choque que havia sentido ao encontrar outras mentes. Mentes. Plural. A idéia de uma mente diferente da sua não era difícil de assimilar. Outro mundo, outra mente. Mas encontrar muitas mentes, todas diferentes, reunidas em um único local, lhe parecia uma coisa inacreditável. Os pensamentos que permeavam a mente de Marlene enquanto Eritro se comunicava com ela podiam ser expressos em palavras apenas de forma vaga e pouco satisfatória. Por trás dessas palavras, suplantando-as e abafando-as, estavam as emoções, os sentimentos, as vibrações neurônicas que forçavam Eritro a reformular todos os seus conceitos. Eritro havia tentado aproximar-se das mentes, apalpá-las. Não como um ser humano “apalparia”, mas uma coisa bem diferente, que os humanos não tinham palavras para descrever. Depois disso, algumas das mentes tinham ficado amarrotadas, rotas, desagradáveis. Eritro deixou de apalpar mentes ao acaso; começou a procurar mentes que resistissem ao contato. — Foi aí que você me achou? — perguntou Marlene. — Foi aí que achei você. — Mas por quê? Por que estava me procurando? A figura se tornou um pouco menos nítida. — Só para encontrá-la. Aquilo não era resposta. — Por que quer que eu fique com você? A figura ficou quase invisível, e o pensamento foi fugidio. — Só para ficar comigo. A figura desapareceu. Apenas a imagem de Eritro havia desaparecido. Marlene ainda podia sentir sua proteção, seu abraço suave. Mas por que a figura não estava mais lá? Será que Marlene o havia aborrecido com suas perguntas? Ouviu um som. Em um mundo deserto, é fácil reconhecer os sons, porque eles não são muitos. Há o ruído de água corrente e o som mais delicado do vento. Há os ruídos previsíveis que você mesmo provoca, como o som de passos, o barulho das roupas roçando no corpo, o ruído da respiração. Marlene ouviu alguma coisa que não conseguiu identificar e voltou-se na direção do som. Atrás de uma grande pedra, à sua esquerda, apareceu a cabeça de um homem. Sua primeira idéia, naturalmente, foi que alguém tinha saído do Domo para buscá-la, o que a deixou furiosa. Talvez fosse melhor não usar mais o transmissor; assim, não teriam como localizá-la. Entretanto, não reconheceu o homem, e àquela altura já conhecia todo mundo no Domo. Podia não conhecer a todos pelo nome, mas certamente, ao cruzar com alguém no interior do Domo, lembrava-se de já ter visto antes aquele rosto. Marlene nunca tinha visto antes o rosto do homem que estava atrás da pedra. Os olhos do homem estavam pregados nela. A boca estava entreaberta, como se a pessoa estivesse ofegante. De repente, a pessoa saiu correndo em sua direção. Marlene esperou onde estava. Sentia-se protegida por Eritro. Não tinha medo. O homem parou a três metros de distância, com os olhos arre galados, inclinando-se para a frente com se tivesse se chocado com uma barreira impenetrável, e exclamou, com voz estrangulada: — Roseanne! Marlene ficou olhando para ele, curiosa. Seus micromovimentos eram ansiosos, transmitiam uma sensação de propriedade: posse, proximidade, minha, minha, minha. Ela recuou um passo. Como era possível? Por que ele a chamaria de… Uma memória distante de uma holografia que havia visto quando era pequena… Não, não havia como negar. Por mais impossível que parecesse… Envolveu-se no manto protetor e disse, timidamente: — Papai? Ele correu para ela como se quisesse tomá-la nos braços, e Marlene recuou de novo. Ele parou, cambaleante, e levou a mão à cabeça, como se estivesse tonto. — Marlene. Eu queria dizer Marlene. Um segundo homem chegou e ficou de pé ao lado dele. Tinha cabelos pretos, muito lisos, rosto largo, olhos puxados, pele amarela. Marlene nunca tinha visto ninguém como ele. Teve que fazer um esforço para não abrir a boca. — Essa é a sua filha, Fisher? — disse o segundo homem, em tom incrédulo. Marlene arregalou os olhos. Fisher! Era mesmo o seu pai. O pai não estava olhando para o outro homem. Apenas para ela. — É, sim. O outro observou, com voz ainda mais macia: — Sorte de principiante, Fisher? Você chega aqui e a primeira pessoa que encontra é a sua filha? Fisher pareceu fazer um esforço inútil para tirar os olhos da filha. — Deve ser, Wu. Marlene, seu sobrenome é Fisher, não é? Sua mãe é Eugenia Insigna, certo? Meu nome é Crile Fisher e sou seu pai. — Estendeu os braços para ela. Marlene sabia muito bem que a expressão de afeto no rosto do pai era absolutamente autêntica, mas mesmo assim recuou de novo e perguntou, friamente: — Que está fazendo aqui? — Vim da Terra procurar você… depois de todos esses anos. — Que quer comigo? Você me abandonou quando eu era um bebê. — Fui forçado a isso, mas sempre tive a intenção de voltar para buscá-la. Outra voz, áspera, inflexível, interveio: — Então você voltou por causa de Marlene? Foi a única razão? Eugenia Insigna estava ali de pé, muito pálida, os lábios quase sem cor, as mãos trêmulas. Atrás dela estava Siever Genarr, com uma expressão de espanto no rosto. Nenhum dos dois usava roupas protetoras. Insigna disse, quase histérica, atropelando as palavras: — Achei que podiam ser habitantes de outra colônia, gente do Sistema Solar. Achei que podiam ser alienígenas. Pensei em várias possibilidades quando me disseram que uma nave desconhecida estava pousando aqui. Jamais me ocorreu que pudesse ser Crile Fisher, chegando de volta. E para buscar Marlene! — Vim com outros, em uma importante missão. Este é Chao-Li Wu, um colega de tripulação. E.. e… — E tornamos a nos encontrar. A idéia lhe passou pela cabeça? Ou seus pensamentos estavam inteiramente voltados para Marlene? Qual era a sua importante missão? Encontrar Marlene — Não. Não era essa a missão. Apenas meu desejo particular. — E eu? Fisher baixou os olhos. — Vim por causa de Marlene. — Veio por causa dela? Para levá-la com você? — Pensei que… — começou Fisher, mas não pôde continuar. Wu olhou para ele, pensativo. Genarr amarrou a cara. Insigna voltou-se para a filha. — Marlene, você iria a algum lugar com este homem? — Não vou com ninguém a lugar nenhum, mamãe — declarou Marlene, com toda a calma. — Aí está sua resposta, Crile — disse Insigna. — Não pode me deixar com minha filha de um ano e voltar quinze anos depois com um “A propósito, vou levá-la agora”. E nem um pensamento para mim. Ela pode ser sua filha biológica, mas nada mais que isso. É minha pelo direito de quinze anos de amor e convivência. — Não vale a pena discutirem por minha causa — disse Marlene. Chao-Li Wu deu um passo à frente. — Com licença. Fui apresentado, mas ninguém foi apresentado a mim. A senhora é…? — Eugenia Insigna Fisher. — Ela apontou para Fisher. — Ex-esposa dele. — E esta é a sua filha, madame? — Isso mesmo. O nome dela é Marlene Fisher. Wu fez uma mesura. — E este outro cavalheiro? — Sou Siever Genarr, Comandante do Domo que pode ver perto do horizonte, atrás de mim. — Ah, ótimo. Comandante, gostaria de conversar com o senhor. E lamentável que esteja havendo uma discussão de família, mas ela nada tem a ver com nossa missão — Qual é a sua missão? — perguntou outra voz. Um homem de cabelos brancos se aproximou do grupo, carregando algo que se parecia muito com uma arma. — Olá, Siever — disse, ao passar por Genarr. Genarr olhou para ele, surpreso. — Saltade! Que faz aqui? — Estou representando o Comissário Janus Pitt, de Rotor. Vou repetir a pergunta, cavalheiro. Qual é a sua missão? E como se chama? — Meu nome, pelo menos, é fácil. Sou o Dr. Chao-Li Wu. E o senhor? — Saltade Leverett. — Saudações. Nossa missão é pacífica — acrescentou Wu, olhando para a arma. — Espero que seja — disse Leverett, de cara feia. — Tenho seis naves comigo, todas com armas apontadas para a sua nave. — E mesmo? — disse Wu. — Esse pequeno Domo? Com uma frota? — Esse pequeno Domo é apenas uma base avançada — disse Leverett. — A frota existe. Não estou blefando. — Vou acreditar na sua palavra — disse Wu. — Nossa pequena nave vem da Terra. Conseguimos chegar aqui graças a um dispositivo superluminal. Sabe o que quero dizer? Viajamos mais depressa que a luz. — Sei o que quer dizer. — O Dr. Wu está dizendo a verdade, Marlene? — perguntou Genarr. — Está, sim, tio Siever — respondeu Marlene. — Interessante — murmurou Genarr. — É um prazer ver minhas palavras confirmadas pela mocinha. Quem é ela? Suponho que seja uma especialista em vôos superluminais… — Não precisa supor nada — disse Leverett, impaciente. — Por que está aqui? Não foi convidado. — Não, não fui. Não sabíamos que havia alguém aqui para nos receber. Peço-lhe, por favor, para não se exaltar desnecessariamente. Um movimento em falso e nossa nave desaparecerá no hiperespaço. — Ele não está certo disso — observou Marlene. Wu franziu a testa. — Estou, sim. Mesmo que consigam destruir a nave, nossa base na Terra sabe onde estamos. Se alguma coisa acontecer conosco, a próxima expedição contará com cinqüenta cruzadores superluminais. De modo que é melhor não fazer nenhuma bobagem, cavalheiro. — É mentira — afirmou Marlene. — O que é mentira, Marlene? — perguntou Genarr. — Quando ele disse que a Terra sabe onde eles estão, estava mentindo, e sabia que estava mentindo. — Obrigado, Marlene — disse Genarr. — Saltade, eles não têm meios de hipercomunicação. A expressão de Wu não mudou. — Vai acreditar nas especulações de uma adolescente? — Não são especulações. É uma certeza. Saltade, eu explico mais tarde. Confie em mim. — Pergunte ao meu pai. Ele sabe — interveio Marlene. A própria Marlene não entendia como o pai podia saber a respeito do seu dom. Certamente ela ainda não o possuía, ou pelo manos não podia demonstrá-lo, quando tinha um ano de idade. Mesmo assim, podia sentir claramente a compreensão do pai. — Não adianta, Wu. Marlene pode ler nossos pensamentos — confirmou Fisher. Pela primeira vez, Wu pareceu perder a calma. Franziu a testa e disse, em tom cortante: — Como pode saber alguma coisa a respeito dessa menina, mesmo sendo sua filha? Você não a vê desde que era um bebê. — Tive uma irmã mais moça — murmurou Fisher. — Então é hereditário! — exclamou Genarr, entrando na conversa. — Interessante! Bem, Sr. Wu, como pode ver, é inútil blefar. Vamos ser francos. Por que vieram a este mundo? — Para salvar o Sistema Solar. Pergunte à mocinha, já que ela parece ser a autoridade absoluta aqui, se desta vez estou dizendo a verdade. — Claro que está dizendo a verdade, Dr. Wu — disse Marlene. — Sabemos tudo a respeito do perigo. Quem o descobriu foi minha mãe. — Nós o descobrimos, também — disse Wu. — E sem nenhuma ajuda da sua mãe. Saltade Leverett olhou de um para outro e disse: — Posso saber de que estão falando? — Por que não pergunta a Janus Pitt? — disse Genarr. — Sinto muito que ele não tenha contado a você, Saltade, mas se chamá-lo agora, ele se abrirá com você. Diga-lhe que estamos lidando com pessoas que podem viajar mais depressa do que a luz e que talvez seja possível fazermos um trato. Os quatro estavam no apartamento de Siever Genarr, no Domo, e Genarr se sentia como se estivesse participando de um ato histórico. Era o primeiro caso conhecido de negociação interestelar. Dois e dois. Do lado do Sistema Solar (do lado da Terra, na verdade, e quem teria pensado que a Terra decadente estaria representando o Sistema Solar, que a Terra, e não as colônias, seria a primeira a desenvolver o vôo superluminal?) estavam Chao-Li Wu e Crile Fisher. Wu era loquaz e insinuante; um matemático ao qual não faltavam qualidades de político. Fisher, por outro lado (e Genarr ainda não conseguira se acostumar à idéia de que Fisher estava de volta), estava muito quieto, com ar pensativo, contribuindo muito pouco para a discussão. Do outro lado estavam Saltade Leverett e Siever Genarr. Saltade parecia pouco à vontade, desconfiado, mas ao mesmo tempo firme. Não era eloqüente como Wu, mas sabia dizer exatamente o que pensava. Quanto a Genarr, estava tão calado quanto Fisher, mas estava na verdade à espera de que os outros terminassem… porque sabia algo que os outros três desconheciam. As horas se passaram. Foi servido o almoço, e depois o jantar. Houve alguns intervalos para aliviar a tensão; durante um deles, Genarr foi ver Eugenia Insigna e Marlene. — Não está indo muito mal — disse Genarr. — Os dois lados têm muito a ganhar. — E Crile? — perguntou Insigna, nervosa. — Ele comentou sobre Marlene? — Sinceramente, Eugenia, o assunto nem foi tocado. Acho que ele ficou muito triste com a reação de Marlene. — Ele mereceu — disse Insigna, com amargura. Genarr hesitou. — O que você acha, Marlene? Marlene olhou para ele com seus olhos escuros e impenetráveis. — É assunto encerrado, tio Siever. — Você está sendo muito inflexível — murmurou Genarr. — Por que não seria? — interveio Insigna. — Afinal, Marlene foi abandonada por ele. — Não sou inflexível — disse Marlene, pensativa. — Se puder confortá-lo, tanto melhor. Mas meu lugar não é ao lado dele. Nem do seu, mamãe. Sinto muito, mas pertenço a Eritro. Tio Siever, o senhor me dirá o que ficou decidido, não é? — Já lhe prometi. — E importante. — Eu sei. — Eu devia estar lá como representante de Eritro. — Imagino que Eritro esteja lá, mas você também terá oportunidade de participar. Mesmo que eu não assegurasse isso a você, Marlene, tenho certeza de que Eritro tomaria suas providências. — Dito isso, voltou para a reunião. Agora, Chao-Li Wu estava pedindo a palavra. O rosto astuto não mostrava nenhum sinal de cansaço. — Deixem-me resumir — disse ele. — Na ausência de vôos superluminais, esta Estrela Vizinha (vou chamá-la de Nêmesis, como vocês) é a estrela mais próxima do Sistema Solar, de modo que todas as naves a caminho das estrelas têm de parar aqui primeiro. Depois que toda a humanidade tiver os vôos superluminais, a distância deixará de ser um fator importante e os seres humanos não estarão mais interessados na estrela mais próxima, e sim na mais apropriada. A busca será por estrelas parecidas com o Sol, em torno das quais girem planetas parecidos com a Terra. Nêmesis será esquecida. “Rotor, que até agora, aparentemente, tem mantido este sistema em segredo, para não reparti-lo com a Terra e com outras colônias, não tem mais necessidade de fazê-lo. Não só este sistema se tornou indesejável para as outras colônias como o próprio Rotor talvez não o queira mais. Pode escolher, se assim quiser, estrelas mais parecidas com o Sol. Existem bilhões de estrelas como o Sol nos braços espirais da Galáxia. “Vocês podem ter tido a idéia de apontar uma arma para mim e exigir que eu revele tudo que sei a respeito do superluminal. Sou um matemático e as informações de que disponho são muito limitadas. Mesmo que capturassem nossa nave, não descobririam grande coisa. O que devem fazer é enviar uma delegação de cientistas e engenheiros para a Terra, onde poderão ser adequadamente treinados. “Tudo que queremos em troca é este mundo, que vocês chamam de Eritro. Pelo que sei, é desabitado, a não ser por este Domo, que é usado apenas para pesquisas astronômicas e de outros tipos. Vocês vivem em colônias. “Enquanto as colônias do Sistema Solar podem viajar pela Galáxia em busca de estrelas parecidas com o Sol, a população da Terra não tem a mesma mobilidade. São oito bilhões de pessoas que terão de ser evacuadas em uns poucos milhares de anos; quando Nêmesis estiver mais próxima do Sistema Solar, será fácil usar Eritro como pousada temporária para os terráqueos, enquanto buscamos planetas parecidos com a Terra em outros sistemas. “Vamos voltar para a Terra levando um rotoriano, escolhido por vocês, como prova de que estivemos aqui. Outras naves serão construídas e voltarão aqui. Podem estar certos de que voltarão, porque precisamos de Eritro. Levaremos então alguns cientistas rotorianos para a Terra, onde aprenderão a técnica do vôo superluminal, uma técnica que pretendemos oferecer também às outras colônias. Isto resume adequadamente o que ficou decidido? — Não será tão fácil — disse Leverett. — Para poder sustentar um número significativo de terráqueos, Eritro terá que ser terraformado. — Não houve tempo para discutirmos todos os detalhes — disse Wu. — Isso será feito por outras pessoas. — O Comissário Pitt e o Conselho ainda terão que aprovar as nossas decisões em nome de Rotor — disse Leverett. — E o Congresso Global terá que aprová-las em nome da Terra — disse Wu. — Teremos que estabelecer salvaguardas. Até que ponto podemos confiar na Terra? — Até que ponto podemos confiar em Rotor? Podemos levar um ano para estabelecer as salvaguardas. Ou cinco anos. Ou dez anos. Seja como for, vamos precisar de vários anos para construir uma frota de naves superluminais, mas temos um programa que deverá durar milhares de anos, e culminará com a evacuação da Terra e o começo da colonização da Galáxia. — Supondo que não haja outras formas de vida inteligentes para competir conosco — argumentou Leverett. — Uma hipótese que podemos adotar até sermos forçados a abandoná-la. Quer consultar agora o seu Comissário? Quer escolher o rotoriano que nos acompanhará? Gostaríamos de voltar para a Terra o mais cedo possível. Fisher pediu a palavra. — Gostaria de propor minha filha, Marlene, como… Genarr não permitiu que ele concluísse a frase. — Sinto muito, Crile. Marlene já disse que não quer sair daqui. — Se a mãe for com ela, talvez… — Não, Crile. Isso não tem nada a ver com a mãe de Marlene. Mesmo que você quisesse Eugenia de volta, e ela estivesse disposta a ir com você, Marlene ficaria em Eritro. E se você decidisse ficar aqui, também não faria diferença. Ela não pertence mais a você, nem à mãe dela. — Marlene é uma criança! — protestou Fisher, zangado. — Não pode tomar esse tipo de decisão! — Infelizmente para você, e para Eugenia, e para nós todos aqui, e talvez para toda a humanidade, Marlene pode tomar esse tipo de decisão. Na verdade, prometi a ela que quando terminássemos, o que acredito que esteja para acontecer, seria colocada a par de nossas decisões. — Isto certamente não é necessário — disse Wu. — Ora, vamos, Siever, não precisamos pedir permissão a uma garotinha! — disse Leverett. — Escutem-me, por favor — falou Genarr — Isso é necessário. Nós temos que pedir permissão a ela. Deixem-me fazer uma experiência. Gostaria de trazer Marlene aqui e contar a ela o que ficou decidido. Se algum de vocês não estiver de acordo, peço que se retire. — Acho que perdeu o juízo, Siever — disse Leverett. — Não estou disposto a negociar com crianças. Vou me comunicar com Pitt. Onde fica o transmissor? — Ele se levantou e, logo depois, cambaleou e caiu. Wu fez menção de levantar-se, assustado. — Sr. Leverett… Leverett rolou o corpo e estendeu os braços. — Alguém me ajude a levantar! Genarr ajudou-o a levantar-se e a sentar-se de volta na cadeira. — Que aconteceu? — perguntou Genarr. — Não sei muito bem — disse Leverett. Senti uma terrível dor de cabeça, mas durou apenas um momento. — A dor foi para que não pudesse sair da sala. — Genarr voltou-se para Wu. — Já que não acha necessário falarmos com Marlene, será que também gostaria de sair da sala? Muito devagar, com os olhos fixos em Genarr, Wu levantou- se da cadeira, hesitou e sentou-se de novo. — Talvez seja melhor recebermos a mocinha — concordou Wu, afinal. — É o que manda o bom senso — disse Genarr. — Neste planeta, pelo menos, o que aquela mocinha diz é lei. — Não! — exclamou Marlene, com tanta veemência que foi quase um grito. — Vocês não podem fazer isso! — Não podemos fazer o quê? — perguntou Leverett, com a testa franzida. — Usar Eritro como pouso temporário… ou para qualquer outro fim. Leverett olhou para ela, zangado, e abriu a boca, como se fosse falar, mas foi interrompido por Wu. — Por que não, mocinha? É um mundo vazio, sem uso. — Ele não está vazio! Ele não está sem uso. Diga para eles, tio Siever! — O que Marlene está querendo dizer é que Eritro é ocupado por um número muito grande de procariotes fotossintéticos. É por isso que a atmosfera de Eritro contém oxigênio. — Muito bem — disse Wu. — Que diferença isso faz? Genarr pigarreou. — Individualmente, as células são extremamente primitivas, mas, ao que parece, não podem ser tratadas individualmente. Juntas, formam um organismo extremamente complexo. Um organismo que se estende a todo este mundo. — Um organismo? — perguntou Wu. — Um único organismo, e Marlene o chama pelo nome do planeta, já que os dois estão intimamente ligados. — Está falando sério? — perguntou Wu. — O que você sabe a respeito desse organismo? — Principalmente o que Marlene me contou. — O que a mocinha lhe contou — disse Wu. — Como sabe que ela não é uma… uma histérica? Genarr levantou o dedo em sinal de advertência. — Cuidado com o que diz a respeito de Marlene. Não sei o que Eritro (o organismo) é capaz de fazer para defendê-la. Sabemos principalmente através de Marlene, mas não inteiramente. Quando Saltade Leverett se levantou para sair, foi derrubado no chão. Há alguns momentos, quando você fez menção de se levantar, talvez para sair, não se sentiu bem. Essas foram reações de Eritro. Ele protege Marlene agindo diretamente sobre nossas mentes. Nos primeiros dias de existência do Domo, ele causou sem querer uma pequena epidemia de doenças mentais que chamamos de Praga de Eritro. Temo que se quiser, ele seja capaz de produzir danos mentais irreversíveis, ou até de matar. Por favor, não o ponham à prova! — Quer dizer que não é Marlene que… — começou Fisher. — Não, Crile. Marlene tem certas habilidades, mas não chegam ao ponto de fazer mal a outras pessoas. Eritro, sim, que é perigoso. — Como podemos fazê-lo deixar de ser perigoso? — perguntou Fisher. — Para começar, escutando o que Marlene tem a dizer. Deixem-me falar com ela. Afinal, Eritro já me conhece. E acreditem em mim quando digo que quero salvar a Terra. Não quero de modo algum me sentir responsável pela morte de bilhões de pessoas. — Voltou-se para Marlene: — Você compreende que a Terra está em perigo, certo? Sua mãe lhe mostrou que a passagem de Nêmesis pode destruir a vida na Terra. — Eu sei disso, tio Siever — disse Marlene, em tom agoniado —, mas Eritro pertence a si mesmo! — Pode estar disposto a compartilhar o que possui, Marlene. Ele permite que o Domo continue a existir. Não parece se incomodar com a nossa presença. — Acontece que existem menos de mil pessoas no Domo e elas ficam no Domo. Eritro permite que o Domo exista porque isso lhe permite estudar mentes humanas. — Ele poderá estudar muito mais mentes humanas quando os terráqueos vierem para cá. — Oito bilhões de terráqueos? — Não, nem todos de uma vez. Estarão aqui apenas temporariamente. Depois, irão para outro lugar. A população nunca chegará a mais que uma pequena fração da população da Terra. — Mesmo assim, serão milhões. Será impossível alojar a todos no Domo. Será impossível alimentá-los com comida trazida de fora. Vão ter que espalhá-los na superfície de Eritro. Vão ter que terraformar o mundo. Eritro não sobreviveria. Ele vai ter que se defender. — Tem certeza? — Você não se defenderia? — Poderia significar a morte de bilhões de pessoas. — Não posso evitar. — Marlene apertou os lábios e depois — Há outra maneira. — O que a menina está dizendo? — perguntou Leverett, de mau humor. — Que outra maneira? Marlene olhou rapidamente na direção de Leverett e depois voltou-se para Genarr. — Não sei. Eritro sabe. Pelo menos… pelo menos ele diz que o conhecimento está aqui, mas não pode explicar. Genarr levantou os dois braços para evitar o que teria sido uma enxurrada de perguntas. — Deixem-me falar. — Depois, disse, sem levantar a voz — Marlene, fique calma. Se está preocupada com Eritro, é desnecessário. Sabe que ele é capaz de se defender contra tudo. Diga-me o que quer dizer quando afirma que Eritro não pode explicar. Marlene estava ofegante. — Eritro sabe que o conhecimento está aqui, mas não tem experiência nos assuntos humanos, no modo humano de pensar. Ele não compreende. — O conhecimento está nas mentes dos humanos aqui presentes? — Está, tio Siever. — Ele não pode ler as mentes? — Não sem lhes causar mal. Entretanto, ele pode ler a minha mente sem me causar mal. — Espero que sim — disse Genarr. — Mas você tem o conhecimento? — Não, claro que não. Mas ele pode usar minha mente para sondar as mentes das outras pessoas. A sua. A do meu pai. Todas. — Isso é seguro? — Eritro acha que sim, mas… oh, tio Siever, estou com medo. — Isto é loucura — sussurrou Wu. Genarr prontamente fez sinal para que fizesse silêncio. Fisher levantou-se. — Marlene, você não deve… Genarr fez um gesto para que ele se calasse. — Não há nada que você possa fazer, Crile. Existem bilhões de seres humanos em perigo, não nos cansamos de repetir, e O organismo deve ter oportunidade de se manifestar. Marlene. Os olhos de Marlene se reviraram para cima. Ela parecia estar em transe. — Tio Siever — murmurou. — Segure-me. — Meio cambaleando, meio caindo, ela se aproximou de Genarr. Ele a segurou e abraçou com força. — Marlene… calma… está tudo bem… — Ele se sentou de novo, ainda segurando o corpo rígido da menina. Era como uma explosão silenciosa de luz, capaz de obliterar o mundo. Nada existia, além da luz. Genarr não estava consciente nem mesmo de ser Genarr. O eu não existia mais. Só existia uma névoa luminosa de grande complexidade, que se expandia e se dividia em filamentos que, mesmo separados, conservavam sua complexidade. Depois de se separarem, tornavam a juntar-se de novo, explodiam e tornavam a se expandir. Vezes sem conta, hipnoticamente, como alguma coisa que sempre existiu e sempre vai existir, até o final dos tempos. Caindo sem cessar em uma abertura que se alargava sempre, sem ficar mais larga. Mudanças contínuas, sem que nada se alterasse. Pequenos tufos engendrando novas complexidades. Vezes sem conta. Sem ruído. Sem sensações. Sem imagens. Uma consciência de alguma coisa que possuía as propriedades da luz sem ser luz. Era a mente percebendo a si própria. Afinal, dolorosamente (se é que existia a dor no Universo), e com um soluço (se é que existia o som no Universo), começou a esmaecer e a girar, cada vez mais depressa, transformando-se em um ponto luminoso que piscou e desapareceu. O Universo era intrometido em sua existência. — Todos experimentaram isso? — disse Wu, espreguiçando-se. Fisher assentiu. — Agora, eu acredito — manifestou-se Leverett. — Se é loucura, estamos todos loucos. Mas Genarr ainda estava segurando Marlene, que respirava com dificuldade. — Marlene! Marlene! Fisher levantou-se com esforço. — Ela está bem? — Não sei — murmurou Genarr. — Está viva, mas isso não basta. Os olhos de Marlene se abriram. Olhou para Genarr, com olhos vazios, fora de foco. — Marlene — sussurrou Genarr, assustado. — Tio Siever — respondeu Marlene. Genarr respirou aliviado. Pelo menos ela podia reconhecê-lo. — Não se mexa — recomendou. — Espere até passar. — Já passou. Ainda bem que já passou. — Mas você está bem? Marlene fez uma pausa e depois disse: — Sim, sinto-me bem. Eritro diz que estou bem. — Descobriu o tal conhecimento oculto que nós tínhamos? — quis saber Wu. — Descobri, sim, Dr. Wu. Descobri. — Passou a mão na testa coberta de suor. — Na verdade, quem tinha o conhecimento era o senhor. — Eu? O que era? — Eu não consigo entender. Talvez o senhor consiga, depois que eu explicar. — Explicar o quê? — Tem alguma coisa a ver com uma força de gravidade que repele as coisas em vez de atraí-las. — A repulsão gravitacional — disse Wu. — Faz parte da teoria do vôo superluminal. — Respirou fundo e seu corpo se retesou. — É uma descoberta que fiz. — Muito bem — disse Marlene. — Se uma nave passa perto de Nêmesis em um vôo superluminal, ela é repelida. Quanto maior a velocidade, maior a repulsão. — Isso mesmo. — Nêmesis não seria repelida da direção oposta? — Sim, mas a força varia na razão inversa das massas. O deslocamento de Nêmesis seria extremamente pequeno. — E se a repulsão fosse repetida um grande número de vezes, durante centenas de anos? — Mesmo assim, o deslocamento sofrido por Nêmesis seria muito pequeno. — Mesmo um deslocamento pequeno seria suficiente para alterar a trajetória de Nêmesis de forma a não perturbar a órbita da Terra no ponto de máxima aproximação. — Bem… — começou Wu. — Uma coisa dessas é viável? — interrompeu-o Leverett. — Podemos tentar. Um asteróide, transferido para o hiperespaço por um trilionésimo de segundo e de volta para o espaço normal. Asteróides em órbita em torno de Nêmesis, sempre sendo transferidos para o hiperespaço no mesmo lado da órbita. — por um momento, pareceu perdido em pensamentos. Depois, acrescentou, em tom defensivo: — Eu mesmo teria tido essa idéia, se me dessem um pouco mais de tempo. — Você merece crédito por ela — disse Genarr. — Afinal, Marlene tirou-a do seu cérebro. — Olhou em torno para os outros. — Bem, cavalheiros, a menos que ocorra um contratempo, podemos esquecer a idéia de usar Eritro como pouso temporário, coisa que ele, de qualquer forma, não permitiria. Não precisamos mais nos preocupar com a evacuação da Terra… se conseguirmos fazer uso da repulsão gravitacional. Acho que valeu a pena ouvirmos Marlene. — Tio Siever. — Que é, querida? — Estou com tanto sono… Tessa Wendel olhou para Crile Fisher e disse, muito séria: — Fico repetindo para mim mesma: “Ele voltou.” Depois que ficou claro que você tinha localizado os rotorianos, cheguei a temer que não voltasse. — A primeira pessoa que vi, a primeira, mesmo, foi Marlene. Parecia em estado de choque, e Wendel resolveu deixá-lo em paz. Necessitaria de tempo para se recuperar do encontro com a filha. Tinham muitos outros assuntos para se preocupar. Pretendiam levar de volta com eles uma rotoriana: Ranay D’Aubisson, a neurofísica do Domo. Vinte anos antes, ela havia trabalhado em um hospital na Terra. Muita gente ainda se lembraria dela. Haveria registros, que serviriam para.identificá-la. Ela seria a prova viva do que haviam conseguido fazer. Wu era uma pessoa mudada, também. Estava cheio de planos para fazer uso da repulsão gravitacional para mudar a trajetória da Estrela Vizinha. (Começara a chamá-la de Nêmesis, como os rotorianos, mas se fosse bem-sucedido, a estrela, no final das contas, não seria a nêmesis da Terra.) E Wu estava mais modesto. Não queria receber o crédito pela descoberta, o que para Wendel parecia inacreditável. Explicou que o projeto tinha sido esboçado durante a conferência, mas não quis entrar em detalhes. Além do mais, estava planejando voltar ao Sistema Nemesiano… e não era só para dirigir o projeto. — Eu gosto daqui — afirmou. Wendel percebeu que Fisher estava olhando para ela, com a testa franzida. — Por que achou que eu poderia não voltar, Tessa? Wendel resolver ser franca. — Sua mulher é mais jovem do que eu, Crile, e certamente não quer se separar da filha. Como você também não parecia disposto a abrir mão de sua filha, eu pensei… — Pensou que eu ficaria com Eugenia para poder ficar com minha filha? — Mais ou menos isso. Fisher sacudiu a cabeça. — Não daria certo. Logo que vi Marlene, pensei que fosse Roseanne… minha irmã. Os olhos eram idênticos, e havia outras semelhanças. Mas ela era muito mais que Roseanne. Tessa, ela não era humana, ela não é humana. Depois eu explico a você. Eu… — Sacudiu a cabeça. — Está bem, Crile. Depois você me explica. — Não foi um fracasso total. Consegui vê-la. Está viva. Está bem. Pensando bem, eu não queria mais que isso. Por alguma razão, depois da minha… experiência, Marlene se tornou… apenas Marlene. Para o resto da minha vida, Tessa, você é tudo que desejo. — Tem certeza, Crile? — Absoluta, Tessa. Vou me divorciar de Eugenia. Depois, poderemos nos casar. Deixaremos Rotor e Nêmesis a cargo de Wu, e eu e você iremos viver na Terra, ou na colônia que você escolher. Nós dois vamos receber boas pensões e poderemos deixar os problemas da Galáxia para a nova geração. Está na hora de nos divertirmos um pouco. O que você acha? — Mal posso esperar, Crile. Uma hora depois, ainda estavam nos braços um do outro. — Ainda bem que eu não estava lá — disse Eugenia Insigna. — pobre Marlene. Deve ter ficado tão assustada! — Ficou, sim, mas foi ela que tornou possível salvar a Terra. Nem Pitt poderá impedir que isso aconteça. Os planos dele foram totalmente frustrados. Não só o seu projeto de fundar secretamente uma nova civilização deixou de fazer sentido, mas terá que ajudar a supervisionar os trabalhos para mudar a trajetória de Nêmesis. Ele não tem alternativa. Rotor não está mais escondido. Toda a raça humana, na Terra e nas colônias, se voltará contra nós se não nos incorporarmos novamente à humanidade. Nada disso seria possível se não fosse Marlene. Insigna não estava pensando em termos tão gerais. — Quando Marlene estava assustada, realmente assustada, foi para você, e não para Crile, que se voltou em busca de apoio. — É verdade. — E foi você que a apoiou, não Crile. — E verdade, Eugenia, mas não acho que haja nisso nada de extraordinário. Afinal, ela me conhece muito bem. — Você encontra uma explicação lógica para tudo, Siever. Mesmo assim, fico satisfeita de que ela tenha escolhido você. Crile não a merecia. — Também acho. Ele não a merecia. Mas agora… por favor, Eugenia, esqueça o assunto. Crile vai embora. Não vai voltar nunca mais. Conseguiu ver a filha. Estava presente quando Marlene descobriu um meio de salvar a Terra. Não tenho raiva dele, e acho que você não deve ter, também. Agora, se não se importa, vamos falar de outra coisa. Você sabia que Ranay D’Aubisson vai com eles? — Sabia. Todos estão comentando. Não vou sentir falta dela. Acho que não foi muito gentil com Marlene. — Você também não foi, algumas vezes, Eugenia. Para Ranay, é uma excelente oportunidade. Depois que ficou provado que a Praga de Eritro não é um campo de estudos promissor, o trabalho dela aqui perdeu a razão de ser. Na Terra, poderá introduzir as técnicas avançadas de sondagem cerebral e ter uma excelente vida profissional. — Melhor para ela. — Mas Wu vai voltar. É um homem muito inteligente. Foi no cérebro dele que nasceu a idéia que permitirá salvar a Terra. Sabe, ele vai voltar com a desculpa de trabalhar no Efeito de Repulsão, mas a verdade é que está irremediavelmente ligado a Eritro. O organismo de Eritro o escolheu, como escolheu Marlene. O engraçado é que também escolheu Leverett, ao que parece. — Que sistema será que ele usa, Siever? — Está querendo dizer por que ele escolheu Wu e não Crile? Por que quer ficar com Leverett e não comigo? — Eu sei que Wu é um homem muito mais brilhante que Crile, Siever, mas, por outro lado, você é muito melhor que Leverett. Não que eu queira perdê-lo, é claro. — Obrigado. Provavelmente o organismo de Eritro tem critérios próprios. Tenho até uma vaga idéia de quais são esses critérios. — Verdade? — Verdade. Durante a reunião, quando minha mente estava sendo analisada, o organismo de Eritro, através de Marlene, esteve em contato comigo. Acho que captei um lampejo dos seus pensamentos. Não foi nada consciente, é claro, mas quando tudo terminou, eu sabia coisas que desconhecia antes. Marlene tem um estranho talento que lhe permite comunicar-se com o organismo e também lhe permite interpretar a linguagem corporal das outras pessoas, mas acho que o organismo de Eritro a escolheu por outra razão. — Que razão? — Imagine que você é um pedaço de linha, Eugenia. Como se sentiria se de repente se visse diante de um bordado? Imagine que é um parafuso. Como se sentiria se encontrasse uma máquina? Eritro só conhecia um tipo de mente: a sua. É uma mente gigantesca, mas prosaica. Seu poder resulta apenas do fato de ser composta de trilhões e trilhões de unidades celulares, todas frouxamente ligadas. “Um dia, ele conheceu as mentes humanas, que continham um número relativamente pequeno de unidades celulares, mas um número incrível de conexões. Elas apresentavam um grau de complexidade muito maior que o da sua própria mente. Bordados, em lugar de fios de linha. Deve ter ficado fascinado com a beleza da mente dos humanos. E achou que a mente de Marlene era a mais bonita de todas. Foi por isso que fez tudo para atraí-la. Você não faria o mesmo, se tivesse a oportunidade de ter em casa um original de Rembrandt ou Van Gogh? Foi por isso que a protegeu com tanto zelo. Você não protegeria uma grande obra de arte? Entretanto, arriscou-a pelo bem da humanidade. Foi duro para Marlene, mas representou uma atitude nobre por parte do organismo. “Seja como for, é assim que encaro o organismo de Eritro. Para mim, ele é um apreciador da arte, um colecionador de mentes belas. Insigna riu. — Se você está certo, Wu e Leverett devem ter mentes lindas! — Aos olhos de Eritro, provavelmente sim. E quando os cientistas da Terra chegarem, ele vai aumentar sua coleção. Sabe de uma coisa? No final, vai acabar com um grupo de homens bem diferentes do normal. O grupo de Eritro. Pode ajudá-los a encontrar novos lares no espaço e, a longo prazo, talvez a Galáxia venha a ter dois tipos de mundos, mundos de terráqueos e mundos de pioneiros mais eficientes, os verdadeiros espaciais. Imagino qual será o resultado final. Provavelmente, o futuro pertencerá aos espaciais. De certa forma, isso me deixa triste. — Não pense no assunto — disse Insigna. — Deixe as pessoas do futuro cuidarem do futuro quando ele chegar. No momento, eu e você somos seres humanos, analisando um ao outro por padrões humanos. Genarr sorriu; suas feições simples, agradáveis se iluminaram. — Fico satisfeito de que seja assim, porque acho sua mente linda, e talvez você ache a minha igualmente linda. — Oh, Siever, eu sempre achei. Sempre! O sorriso de Genarr diminuiu um pouco. — Mas existem outros tipos de beleza, você sabe. — Não para mim. Você tem todos os tipos de beleza. Siever, perdemos a manhã, você e eu. Mas ainda temos a tarde. — Nesse caso, que mais eu posso querer, Eugenia? A manhã não tem importância… se podemos passar a tarde juntos. Suas mãos se tocaram. EPÍLOGO Mais uma vez, Janus Pitt estava sozinho. A anã vermelha não era mais uma mensageira da morte. Era apenas uma anã vermelha a ser posta de lado por uma humanidade cada vez mais arrogante, cada vez mais poderosa. Entretanto, Nêmesis ainda existia, embora não mais como uma estrela. Durante bilhões de anos, a vida na Terra estivera isolada, fazendo suas experiências em separado, criando e destruindo, florescendo e sofrendo extinções em massa. Talvez a vida existisse em outros mundos, isolados uns dos outros durante bilhões de anos. Experiências, apenas experiências… todas, ou quase todas, destinadas ao fracasso. Talvez uma ou duas desse certo, justificando assim todas as outras. Para isso, porém, era preciso que as experiências fossem executadas separadamente. Se Rotor, a sua Arca, conseguisse se isolar por tanto tempo quanto a Terra e o Sistema Solar tinham estado isolados, talvez fosse a experiência bem-sucedida. Agora, porém… Cerrou os punhos, furioso… e desesperançado. Porque sabia que a humanidade saltaria de estrela em estrela com tanta facilidade como havia saltado de continente em continente e, antes disso, de região em região. Não haveria mais isolamento, não haveria mais experiências independentes. A sua grandiosa experiência tinha sido descoberta e neutralizada. A anarquia, a degeneração, o imediatismo, as disparidades culturais e sociais que caracterizavam a civilização dos terráqueos seriam exportados para toda a Galáxia. Que haveria agora? Impérios galácticos? Todos os pecados e tolices de um mundo multiplicados por milhões de mundos? Todos os males e misérias incrivelmente ampliados? Quem poderia administrar com competência uma Galáxia, quando ninguém conseguira administrar com competência um único planeta? Quem poderia aprender a interpretar as tendências e prever o futuro em uma Galáxia inteira, pululando de vida? Nêmesis tinha realmente chegado. SUMÁRIO PRÓLOGO 11 UM MARLENE • 13 DOIS NÊMESIS • 24 TRÊS MÃE • 36 QUATRO PAI • 41 CINCO PRESENTE • 54 SEIS APROXIMAÇÃO • 59 SETE DESTRUIÇÃO? • 68 OITO AGENTE • 77 NOVE ERITRO • 85 DEZ PERSUASÃO • 95 ONZE ÓRBITA • 102 DOZE ÓDIO • 106 TREZE DOMO • 115 QUATORZE PESCARIA • 134 QUINZE PRAGA • 144 DEZESSEIS HIPERESPAÇO • 151 DEZESSETE A SALVO? • 162 DEZOITO SUPERLUMINAL • 170 DEZENOVE PERMANÊNCIA • 182 VINTE PROVA • 190 VINTE E UM SONDA CEREBRAL • 204 VINTE E DOIS ASTERÓIDE • 216 VINTE E TRÊS VIAGEM AÉREA • 220 VINTE E QUATRO DETECTOR • 232 VINTE E CINCO SUPERFÍCIE • 241 VINTE E SEIS PLANETA • 254 VINTE E SETE VIDA • 263 VINTE E OITO DECOLAGEM • 272 VINTE E NOVE INIMIGO • 283 TRINTA TRANSIÇÃO • 292 TRINTA E UM NOME • 296 TRINTA E DOIS PERDIDOS • 310 TRINTA E TRÊS MENTE • 320 TRINTA E QUATRO PRÓXIMOS • 331 TRINTA E CINCO CONVERGENCIA • 342 TRINTA E SEIS ENCONTRO • 365 EPÍLOGO 394